Samuel,
nobre Samuel

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Nunca fui amigo de Samuel Ribeiro, embora quisesse sê-lo no início, quando o conheci. Acompanhei seus primeiros passos nas letras por alguns anos, quando o lia nos idos de dois mil e poucos num blogue. Aliás, lamento minha nesciência — defeito do qual o Aquinate diz, com todas as letras, isentar do inferno e da perdição seu portador — e me sinto aliviado, embora um pouco constrangido. Explico: é que apesar de gostar um bocado dos escritos de Samuel à época, jamais imaginei ser ele quem era. Samuel é rebento do pai Affonso, o grande jurista e escritor Affonso Ribeiro Albuquerque, nobre, descendente direto dos barões de São Paulo de Piratininga e membro emérito da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a cadeira de número dezenove e amicíssimo de dona Lygia Fagundes Telles.

O mundo é pequeno, e meu conhecimento deveras menor: quem diria que o jovem Samuel Ribeiro tinha linhagem e seguia a tradição familiar das belas letras – embora, devo dizer em seu caso, não tão belas; diria perspicazes. Sim, pois apesar de Samuel mostrar inegável verve e picardia, e apesar de gostar um tanto além da conta da iconoclastia a ilustres, bem, eu não podia afirmar assim, com a mão na consciência, que o jovem fosse lá muito brilhante na escrita. Não como o pai, ao menos. Não, não. Mas mostrava wit, sem dúvida, talvez como talentoso jornalista. Nada que o desabone: jornalistas às vezes tornam-se homens de letras, Euclides da Cunha não me deixa mentir. De sorte que era deixar Samuel a cargo do tempo. Estava jovem ainda, como eu, seu fã; fã em termos, sem ardor; fã um pouquinho.

Ora, o tempo acomete a todos, a juventude inclusive. E eu, levado por mil circunstâncias as quais seria enfadonho elencar, afastei-me dos textos de Samuel por uns tempos. Vicissitudes. Anos depois, quando acesso o blogue novamente, vejo que está fora do ar. Pena: passados alguns anos, queria saber em que pé andava a formação literária de nosso jovem prodígio, em que pese naquele tempo próximo passado eu já ter descoberto sua origem nobiliárquica, soube ser filho de quem era.

Deixei estar, paciência. A vida e seus desencontros.

Então, certo dia, fiquei feliz ao tomar conhecimento de que Samuel Ribeiro saiu de seu blogue amador para um grande portal, o maior do país: surpreso, constato que o talento que eu identificara lá no início não foi apenas senso de desbravador, de olheiro. Mais alguém lia Samuel, tudo indica; alguém importante. Sim, e que bom para ele. O bloguezinho rendeu frutos…

Volto a lê-lo, agora no grande portal da internet. Noto que o tempo fê-lo adquirir alguma gravidade, olho sua expressão séria na foto preto e branca que o identifica. Abaixo da assinatura, consta mestre nalguma coisa, de modo que ele avançou também na vida acadêmica. Não sabia do mestrado. Segue uma carreira bem trilhada o jovem Samuel, agora não tão jovem: anda aí pelos trinta e uns e está casado. Ocupa um espaço merecido, suponho, em que pesem a fidalguia e o renome. Repenso, não fui feliz na colocação: a malícia quer insinuar contatos paternos a pessoas certas, algo que tornasse a trajetória de Samuel algo mais fácil. Maldade. Era ler Samuel e ver sua argúcia ainda ali, patente em cada sarcasmo, em cada ironia; não fina ou machadiana, mas ironia ainda assim, sem dúvida.

Firme na grande mídia, Samuel trocou a perspicácia do início por outro tom, bem-pensante e fundamentado: escreve como quem se profissionalizou e absorveu as sensatezes recomendadas e as vertia agora ao texto. Jamais se opunha aos grandes consensos, mas os conciliava com compreensão de jovem esclarecido, feito um irmão mais velho que explica as decisões do pai ao caçula rebelde. De todo modo, Samuel concordava: rodeava e rodeava, mas sempre concordava. Jamais arriscava uma originalidade, um nome incomum, um atrevimento leve de quem bebe de outras fontes. Em seus artigos, transforma uma prevenção temerosa em esperta manutenção da carreira: arroubos nunca, jamais, sob pena de chocar o respeitável público que agora paga para lê-lo. De sorte que ele vertia o latim sempre com os pés no chão e sem jamais elevar o espírito.

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Quanto a mim, a milhas da fama e sem qualquer nesga de fidalguia, busquei na literatura que admirava e na contemplação das artes que me eram acessíveis aquilo que me livrasse da média de cafezinho de escritório. Achei algo que me mostrou algum escape para além do ramerrão corporativo, das ordens sem justificativa dadas a meros técnicos como eu.

Não fosse a literatura — pela qual me apaixonei como se a mulher da minha vida — viveria a mesma vidinha besta de cidadão comportado e bem criado pela família operária: iniciaria e terminaria os dias (semanas, meses, anos, décadas) do mesmo jeito: trabalha, cansa, descansa, trabalha, cansa, descansa. Tudo isso no mais insignificante anonimato, na mais miserável irrelevância.

Não que eu buscasse o arrivismo; como poderia, sem nem estar nos salões? Só queria um espírito mais cultivado por dentro e uns meios de expressão por fora. Contudo, nem mesmo isso é fácil como se supõe (se alguém supusesse; ninguém supõe nada que envolva literatura referindo-se a técnicos; não há tal mistura de quesitos na média classe-média.)

Então penso o quão bem faz um sobrenome. Ora, ninguém negue, facilita muito. Digam logo inveja, não importa; mas se tivesse a linhagem de um Samuel Ribeiro, se como ele fluísse a nobreza nas veias, certamente não me faltariam canais para verter os vislumbres a que chegava ao ler o filósofo num trem ou o romancista num ônibus.

Samuel podia isso e muito mais. Ainda pode e, no entanto, nunca demonstrou um enlevo, um único que fosse. Nada o consegue surpreender, nada o encanta, nada o fascina. Agora em áudio e vídeo, suas falas sempre rastejam no pedestre esclarecido, no banal bem alimentado que se sabe especial, no fundo; jamais cita o poema belo, o trecho sublime, como se não os houvesse (ou soubesse).

Quando perguntado, autores de primeira grandeza descem à normalidade de um zé-das-couves em sua boca, exceto se o consenso instruir o contrário. Tudo lhe parece trivial e perfeitamente ignorável a princípio, tudo, tudo. O meu ótimo é apenas o passável dele e o meu excelso apenas seu razoável. Nada merece a admiração de Samuel, na melhor das hipóteses um reconhecimentozinho, quiçá uma concessão – ele jamais passa da oficialidade uniforme e da opinião de carimbo.

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Não acho que eu seja o exato oposto de Samuel, mas estou paralelo a ele. Não nos oporíamos frontalmente, apenas nos separamos na bifurcação das paixões: seguimos diferentes trilhas do destino que jamais se cruzarão, tudo leva a crer. De cá, à distância — e obviamente sem ter circulado nos meios em que ele circula desde menino, quando decerto fazia reinações nos ilustres jantares do pai —, dediquei-me a uma carreira recente e incerta de escritor, e pus o ponto final num manuscrito há coisa de três meses.

Publiquei o livrinho, caprichadinho, um pequeno orgulho. Guardo uma esperança ingênua de autor novato e não escondo um sonho de que um mecenas sensível consiga me achar por aí. Seria um belo acaso do destino. Todavia, tivesse um Ribeiro Albuquerque nos registros, um simples telefonema escancararia as portas, e eu andaria nos tapetes vermelhos, a receber boas-vindas e sorrisos receptivos. Uma vantagem que a nobreza dá a poucos eleitos.

O que me resta? Como predica o apóstolo, ter fé, esperança e amor – o quinhão dos pobres. Caprichei no trabalho, agora é esperar a colheita: uma década de desânimos, reânimos e abnegações, condensadas em três centenas de páginas. Deus me ajude.

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Um dia, vejo Samuel num vídeo da internet. Com aquele ar de eterno vestibulando, com aqueles all-star nos pés e jeans surrado de quem disfarça ser quem é, ele comenta a respeito de meu livro numa entrevista. Não é possível! Como chegou a ele? Ouço tudo com calma, volto o trecho várias vezes. Guardo bem na memória o melhor adjetivo que ele me concedeu: “esforçado”.

Esforçado? Puxa…

Não reclamo do elogio nem digo que é mentira. Realmente foi um esforço escrever o romance; embora fosse mais que esforço, foi algo do coração, houve um derramar da alma ali. Eu disse alma, coração? Duas palavrinhas que jamais vi Samuel Ribeiro Albuquerque pronunciar, me dou conta agora. Pois não seria a primeira vez aquela, justo quando falava de meu modesto – e esforçado – livrinho publicado há poucos dias.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 19 (14/4/2024)



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(Selo criado por Beth Spencer)

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