Manuel morreu

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Manuel morreu. Marcaram o velório no Cemitério da Capelinha, uma salinha desse tamanhinho. Quase não deu tempo de avisar a ninguém que o Manuel morreu, foi tudo às pressas, de ontem pra hoje. Infarto fulminante, puf, morreu.

Avisaram no trabalho do Manuel: “o Manuel morreu.” A menina disse “depois eu falo, tá todo mundo em reunião agora.” Ela cumpriu a promessa e disse depois da reunião: “Seu Juracy, o Manuel não vem hoje.” Ia completar que o Manuel morreu, mas o chefe não perguntou nada, só grunhiu e deu as costas.

Marcaram o enterro para as duas da tarde. O velório começou cedinho, às nove: estavam lá a mulher do Manuel e o filho do Manuel, um rapagão que trabalhava como Uber. Fora os dois esperavam o quê, umas três, quatro pessoas. A sobrinha do Manuel disse que ia, mas lembrou que tinha entrevista de emprego, disse que não ia não; mandou áudio avisando.

Deu nove, deu dez, deu onze da manhã. Uma tia do Manuel disse que vinha, mas mandou os sentimentos por aplicativo mesmo, até chorou. Tinha consulta no SUS, disse. “Se eu perder a consulta no SUS, é um custo remarcar. Demora meses na fila. Não posso ir, não.”

“Melhor enterrar logo, ninguém vai chegar mesmo”, disse a mulher ao filho, “vá chamar o pessoal do cemitério”.

Deu meio-dia. Uns carros começam a estacionar no pátio, um atrás do outro. Movimento repentino. Era cada carrão desse tamanho, parecia gente importante. Depois chega uma van daquelas bem chiques de hotel: sai um pessoal todo arrumado, umas senhoras grã-finas. Mais pessoas chegam, não param de chegar: jovens, adolescentes, uma gente com cara de alta sociedade. Surge um carro oficial que abre um clarão no pessoal: Ministro de Estado, disseram. A polícia escoltava.

Uma pequena multidão se forma na entrada do Cemitério da Capelinha. Estranhos param à entrada, curiosos se aproximam, uns fingem conhecer o morto, “que perda, meu Deus”. A polícia põe barricadas, organiza o local. Batedores desviam o trânsito, os ônibus se apertam por ruazinhas estreitas. A pequena multidão toma o cemitério, a rua, a praça em frente.

Conduzem o Ministro de Estado à viúva: “meus sentimentos; seu marido é um grande orgulho do país.”

“O Manuel, moço?”

A mulher estranha a fala e estranha o Ministro, não sabe quem é; este olha consternado o rosto do defunto enquanto os flashes disparam.

A mulher copia o Ministro e também olha o rosto lívido do morto. E não é que parecia em paz, o Manuel? A pele exibe um branco da paz.

De repente, um apresentador de televisão se aproxima da mulher, tonitruante:

“A senhora não imagina o quanto o Manuel me ajudou na hora mais difícil… tá filmando, Pereira? Vai de novo. Um, dois, três: a senhora não imagina o quanto o Manuel me ajudou na hora mais difícil…”

A mulher se espanta: ninguém menos que Carlinhos Moura em pessoa, bem ali diante dela. Ela não perdia um programa, o Domingo Show. “Seu Carlinhos? Ah, seu Carlinhos… o Manuel, o senhor precisava conhecer… ele ajudava muito o pessoal, sempre quando dava ele ajudava…”

A mulher queria a compaixão do apresentador; o apresentador queria as lágrimas da mulher. O cameraman buscava um bom close. Carlinhos Moura arrisca umas perguntas comoventes:

“Mas deixa eu perguntar para a senhora, eu sei a dor que a senhora sente: como foi conviver todos esses anos ao lado desse brasileiro tão querido, desse grande artista nacional?”

“O Manuel?… ah, ele era muito trabalhador, né? Muito honesto… bom pai…”

“Manuel Dias de Souza, Brasil. Um orgulho da pátria, um homem que abrilhantou nosso nome lá fora.” Carlinhos Moura passa o braço por sobre a mulher, como a ampará-la. Do outro lado do caixão, o cameraman força espaço com os ombros para captar o melhor ângulo. “A viúva está muito emocionada, Brasil. É visível. As palavras fogem numa hora dessas. Vamos entender esse momento tão delicado para ela.” O cameramanzoom no rosto da mulher. Depois, filma o caixão. O caboman aponta a luz fortíssima para o defunto, que parece branquíssimo, quase reluz.

“Pronto, deu? Vamos, vamos, Pereira.” Súbito, o apresentador se apressa. “Meus sentimentos!”, diz à viúva, sem olhá-la, esbarrando e abrindo espaço para sair.

A mulher mal entende o que houve e quase esquece do marido morto. O filho se aproxima: “eles vão enterrar daqui a pouco, mãe”.

Um grupo de meninas se aproxima com um livro em punho, todos de capa dura. Fazem selfies tristes com o caixão ao fundo, falam chorosas entre si. “Estou aqui ao lado do Manuel, gente. Adorava tanto o que ele escrevia, tudo, tudo…”, diz uma delas ao próprio smartphone. Faz uma live.

“Moça, meu pai trabalhava na contabilidade, viu? Analista contábil pleno!” Sávio tenta esclarecer as coisas, fica nervoso com a confusão.

“Não, ele é escritor, moço. Por que vocês não querem falar nisso?”

“Nossa, moça. Nada a ver. Tem algum engano aí.”

Sávio vai ao funcionário do cemitério confirmar se havia outro defunto velando no Capelinha. Tinha uma coisa errada, só podia ser, o pessoal trocou de velório? Manuel tem um monte por aí, vai ver é de outro Manuel que elas falavam.

O grupo das senhoras grã-finas muito empoadas se aproximam do caixão. Adentra a sala um cheiro de patchuli e laquê. Cada uma trazia um livro “A Outra Margem do Rio Azul”. De óculos escuros e penteado à Sophia Loren, uma delas se dirige à viúva: “mês passado nós lemos o livro dele em nosso clube de leitura, bem. Nossa Mãe! Que sensibilidade a desse homem, que jeito lindo de falar com as pessoas. Viemos dar nosso último adeus ao Manuel Dias, que grande escritor.”

Manuel Dias. Não é que o nome batia mesmo? A viúva descobria um fato sobre seu marido bem naquela hora. Como pode? Ela deixa o cordão de isolamento perto do caixão e procura um repórter que chegava ali atrás, um repórter bonito que ela reconheceu, um que sempre aparecia no jornal antes da novela.


“Seu marido é um escritor premiado, reconhecido. Ele tem dois livros traduzidos no estrangeiro”


“Ei, moço! Eu sou viúva do Manuel. O senhor sabe que história é essa de livro que todo mundo fala? Meu marido tinha algum livro, por acaso?”

“Sério? A senhora está brincando?”, diz o repórter, espantado. Esquece que fala com a viúva do morto. “Desculpe, com todo o respeito, seu marido é um escritor premiado, reconhecido. Ele tem dois livros traduzidos no estrangeiro. ‘A Outra Margem do Rio Azul’ foi indicado ao International Booker Prize desse ano.”

“Prais?”

‘Booker Prize’. É um prêmio oferecido na Inglaterra. Todo ano tem. O vencedor leva 50 mil libras pela premiação. É uma das maiores honrarias receber um prêmio desses.”

Sávio escuta junto à mãe, está meio confuso. Cabisbaixa, sem entender nada de nada, a mulher se sente fora de uma área importante da vida do marido. Como nunca soube uma coisa daquela? Livro, prêmio? Que esquisito, ela não sabia dizer se aquilo era importante, mas parece que sim, só podia ser. Tanta gente chique ali não era à toa… até o Carlinhos Moura apareceu, gente! Mas todos os dias o Manuel não saía pontualmente às seis da manhã, voltava às sete da noite, ia à contabilidade do Seu Juracy todo santo dia? Anos e anos assim. Escrever livro, que doidice é essa? Ela só sabia do escritório de segunda a sexta no horário comercial.

O repórter nota a mulher meio catatônica, mirando o vazio. Interrompe: “mas a senhora não sabia que seu marido era escritor? Ele nunca disse nada à senhora?”, inconforma-se.

“Não, nunca.”

“Mas a senhora nunca perguntou?”

“Não, eu não! Eu nem sei dessas coisas de livro, aí. Não vou muito atrás disso, não.”

“Mas a senhora já viu ele escrever num caderninho, digitar no computador?”

“Tem um computador lá em casa, sim. Ele ficava digitando. Achei que era coisa do trabalho dele, da contabilidade, né?”

“Mas ele tinha livros, lia alguma coisa?”

“Ler ele lia, sempre lia, eu achava que era mania dele. Ele juntava uma tralha assim, um monte de livro velho nojento. Ele botava tudo numas caixas que eu pedi pra ele guardar.”

“E o que ele dizia sobre os livros?”

“Ele dizia ‘tá, Nicinha, vou guardar’. Depois, ficava calado. Eu também nem perguntava mais nada, né?”

“Devia ser material de trabalho dele… a senhora nunca se interessou por nada que ele escrevia, nunca olhou nada?”

“Não. Nunca.”

“Meu Deus…”, o repórter mal acredita no que ouve. Indiferente, a mulher volta à sala, fica junto ao caixão.

Sávio dá um cutucão na mãe e aponta: “pronto, já vão enterrar.”

Tampam a abertura. Um soldado do corpo de bombeiros se aproxima e desdobra uma bandeira nacional acetinada sobre o caixão. Os flashes disparam. A pequena multidão acena, faz a última despedida.

O féretro desce por uma ruela até o túmulo. Todos muito comovidos, alguns com o livro em punho, outros junto ao peito, todos de óculos escuros. Lá embaixo, quando o caixão finalmente baixa à cova, todos aplaudem efusivamente. Dona Nice imita o gesto e aplaude fraquinho. O filho Sávio aplaude muito forte e atrasado.

Caixão depositado, os presentes dão as condolências à pequena família. Um a um vão deixando o local, lentamente.

Quando os últimos presentes sobem a ruela de volta, Sávio dá um cutucão na mãe.

“Vixe, o que foi, Sávio?”

“Mãe, que negócio é esse de livro do pai?”

“Sei lá, Sávio. Não entendo nada disso, não.”

“Mas esse prêmio que o homem do jornal falou pra senhora? Eu ouvi bem direitinho, viu? Ó, se der dinheiro mesmo, vou querer a metade.”


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 40 (16/2/2025)



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(Selo criado por Beth Spencer)

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