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Durante algum tempo, tive um carrinho de que gostava muito. Sei lá, me apeguei. Foi meu primeiro carro e fiquei mais de década com ele. Tinha motivos para me afeiçoar: foi com ele que levei meu filhinho recém-nascido, asmático à época, a passar noites em hospitais; foi com ele — o carrinho, digo — que peguei a estrada com minha recente e linda familinha, em muitos feriadões prolongados.
Achava que ninguém cuidaria melhor daquele carro do que eu. A primeira dona, ao contrário do que o povo diz (carro de mulher, etc.), foi relapsa e negligente com ele. Descobri depois, após muitos check-ups no mecânico. Pouco nele restava de original. Até a lataria havia sido vítima de várias colisões: com um simples ímã o mecânico desfez minhas ilusões. Em várias partes não grudava. Pura massa.
Desanimei por causa disso? Não. Pelo contrário: assumi o papel de nobre cavaleiro e dispus-me a resgatar minha amada. Verdade, não tinha muitos cobres para despender na empreitada, mas não importava. O amor vence as barreiras. E fui, intrépido e corajoso.
Como num romance farofa, quanto mais atenção eu despendia ao carrinho, mais problema ele dava. Era um tal de “queimou a bomba d’água” aqui; “quebrou o cubo de roda”, acolá. Então, quebrei meu porquinho e dei uma primeira geral no bichinho: cabeçote, suspensão completa, pneus zerados. Foi como se ouvisse o carrinho me agradecer. Fiz questão de pegar a estrada, a Rodovia dos Bandeirantes de preferência, um tapete, para ouvir os pneus deslizarem no asfalto liso. Quando o carrinho esticava, realmente era um prazer dirigir.
Sem me dar conta, o que foi um namoro inocente virou triângulo amoroso: o carrinho começa a dar tanto problema mês sim mês não, que ele passava boa parte do tempo encostado no mecânico — o qual, veja só, virou meu amigo. E meu sócio: se eu amava aquele carrinho, ele ainda mais; porém, só ele era remunerado por isso.
Enfim, tive muita experiência boa com aquele carrinho e muita experiência ruim, também. Só que chegou um certo momento que ele cansou de mim. Enjoou de uma vez e pronto. Começou a dar defeito de propósito, parece, como se me atirasse na cara “você não entende que eu não te quero mais?” Mas eu não aceitava. Não queria ouvir.
Desesperado, recorri de novo ao amante, digo, ao mecânico: expliquei que ele fora reprovado duas vezes na inspeção ambiental (lembram, paulistanos?). Uma injustiça, pois o carrinho era bom, não fazia mal a ninguém! O mecânico então olhou, testou e pisou fundo, fazendo o coitado até engasgar e liberar um fumacê dos diabos na oficina. Desenganou-me:
“Precisa fazer o motor. Agora, só retífica resolve.”
Meu coração apertou. Meu bolso, nem se fala. Menos mal que era final de ano e eu receberia o décimo-terceiro salário dali a alguns dias. Faria o esforço, fazer o quê? Poder mesmo a gente nunca pode, mas dá-se um jeito. Topei fazer a retífica do motor e deixei os rins na oficina mecânica: metade à vista mais um cheque pré-datado.
A essa altura, eu já me sentia mesmo um bobo com aquele carro, mas não assumia. Meu pai dizia “troca isso aí, meu filho!”; conhecidos perguntavam “casou com o carro? vai vender não?”, etc. Todo mundo sabia que eu era traído, menos eu. Um clássico.
Quietinho, meio envergonhado em assumir que afinal minha história com o dito-cujo tinha chegado ao fim, resolvi analisar as coisas. Talvez tivesse mesmo que me desfazer dele. Pra você ver, eu tinha uma pasta onde guardava cada notinha de troca de óleo, cada lavagem de radiador… entretanto, tomei a decisão. Ainda meio tíbio, confesso.
Por acaso, nessa época eu arranjara um emprego melhorzinho. Com a indenização do anterior pude dar entrada num novo carro (seminovo, na verdade). Agora, já não era mais um carrinho, mas um carro. Talvez um carrão pra alguns (ao menos na época). Enfim, troquei. E quanto ao outro? Ainda estava comigo, o patife. Sim! Quis só dar um sustinho nele e deixá-lo lá para sair no fim de semana. O carro maior ficaria para a família.
E você acha que o infeliz tomou jeito? Que nada. A mecânica estava zerada, motor novinho; mas agora ele resolve bagunçar com a parte elétrica. Deixou a alcova do mecânico e deu de se engraçar com o eletricista de autos. Eu, bobo, cedi. Só que agora não era mais o bobo de sempre, registre-se. Já conhecia outra realidade automotiva no novo carro, mais robusto, mais motorizado. Ao dirigi-lo, sentia sua construção mais firme, mais durável. Foi então que decidi: tchau, carrinho ingrato.
E aconteceu. Vendi o malandro para uma parente, por um preço simbólico. Ela ficou feliz da vida, pois sabia do meu zelo para com o carrinho. O preço módico, calculei eu, seria mais para compensar todo o gasto que ela teria com aquele sem-vergonha dali pra frente. Se reclamasse, eu logo diria: “desculpe, mas saiu quase de graça pra você”. Bingo! Quando entreguei a chave a ela, fiquei com medo que o pilantra quebrasse na próxima esquina e voltasse a me atormentar. Felizmente, não aconteceu.
E na verdade nunca aconteceu. Até hoje o carrinho está lá com ela e nunca deu um probleminha sequer, apenas manutenção periódica normal. O negócio era comigo, então! Filho duma égua!
Isso já faz anos. Sublimei a experiência, mas olhando em retrospecto, concluo, não sem alguma dor no coração: meu crime foi amar demais.

Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)