O totalitarismo digital

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O universo digital ainda acabará com a cultura humana. Em poucos anos não haverá mais registro histórico, memória. Não saberemos a estética de uma certa época, quais sabores tinham, que cores gostavam. Diários, hoje, são as redes sociais. Filmes? Dados, códigos binários. Música? Apps, streamings. Leitura? E-books (mas estes nem tanto, o papel ainda resiste; resta uma esperança). Mas é alarmante: em tudo hoje impera o todo-poderoso algoritmo. O que será das coisas, daquilo que se pode pegar com as mãos, coisas que abrem e fecham, que tocamos e guardamos conosco? O que será dos cinco sentidos corporais com esse totalitarismo digital?

Minha geração, a terceira de trás para frente (nasci em 1979), passou por várias transições tecnológicas. Pulamos do puro material físico e analógico para a convergência digital e vimos suas derivações ao longo do tempo, em como estes dois — o físico e o digital — foram se imiscuindo aos poucos, desde o advento da computação e da internet. Como não lembrar do disco de vinil, sucedido pelo CD, depois pelo mp3, agora o streaming…

No início da internet, eu acreditava que o meio digital fosse um complemento, uma extensão do produto físico, mas que este jamais tornaria-se superado — e aliás não foi superado. As companhias globais da internet estão nos apartando do físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos, cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso. Confesso: sinto uma certo vacuidade hoje em dia, talvez uma orfandade na alma, não sei; um desalento interior quando noto que tudo converge a galope para as malditas “nuvens”, para clouds da vida, que ninguém sabe onde fica, embora nelas confiem cegamente, sem questionar. São pura abstração, ilusão; até mesmo as nuvens reais, aquelas do céu, ao menos pode-se ainda vê-las e apontar para elas. As nuvens digitais, porém, nem isso se pode fazer.

E antes tínhamos coisas de verdade, que existiam nalgum lugar. Dizíamos meu disco, meu livro. Num dia, olhávamos para elas, guardávamos, depois pegávamos de volta tempos depois. Ou nos livrávamos delas. Mas, hoje? Gastamos dinheiro virtual com códigos binários, luzinhas numa tela enquanto códigos de programação rodam em segundo plano desde servidores nalgum ponto do planeta. Aposto: todo mundo saberia listar pelo menos três discos que ouviu na infância, talvez os dois CDs preferidos na adolescência. Agora, digam-me lá: qual filme você viu em streaming no início de 2016? De qual série mais gostou em 2015? Um milhão de dólares para quem acertar de cabeça, sem esforço de memória nem consulta ao Google.


As companhias globais da internet nos apartam do mundo físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso


Entendem meu ponto? Nossa memória cultural se esvai e se esvai. Sem contar o mais grave: fornecemos a robôs invisíveis nossas intimidades, nosso endereço, nossos hábitos pessoais. Eles sabem a que hora vamos dormir, quando acordamos, o que fazemos, o que deixamos de fazer. Acompanham nossos passos, por onde andamos durante o dia.

Falava algo disso com um conhecido no trabalho. Comentávamos a respeito da Netflix, por exemplo. O que é a Netflix, exatamente? À primeira vista, uma plataforma digital de exibição de vídeos: filmes, séries, documentários. Certo? Mais ou menos. Esta é a parte boa. A parte ruim e não contada é que a Netflix não passa de um ladrão voraz e ditatorial de tempo. Do meu e do seu tempo. A companhia Netflix trabalha, e muito, para comer (não encontro verbo mais apropriado), para devorar todo nosso tempo, nossa atenção. Nem o pior dos ditadores do passado jamais pensara em algo assim.

E pensar que nossos avós nos alertavam a respeito da televisão… agora, a tevê é meio dos mais inocentes: não possui algoritmos, mapas faciais, controles de acesso, “stats” plotadas num gráfico.

Tenho pensado muito nisso nos últimos dias. E aos poucos, decidi voltar-me cada vez mais ao bom e velho analógico, ao material físico. Discos, filmes, livros, revistas, jornal… de maneira que deixo essa proposta: voltemos às coisas palpáveis, tridimensionais, materiais. Coisas com cheiro, com cor e textura. Coisas feitas por e para seres humanos. Resistamos, docemente. Geraremos mais empregos, ajudaremos mais gente assim. A transformação da matéria em produto final requer toda uma cadeia produtiva, algo que quase não acontece no meio digital.

Parece bobagem? Talvez, mas pense melhor, com mais calma. As coisas físicas sempre nos serviram. Qual o problema com elas? Nós as usamos quando quisermos, sem assinatura mensal, sem conexão, sem wi-fi. Dispomos delas sempre. Quanto a essas companhias do mundo digital e seus produtos ilusórios numa tela de smartphone, a mercadoria é você, sua própria existência. Pelo menos, é isso o que elas pretendem fazer.

Vale a pena dedicar nossa vida e intimidade a esse totalitarismo digital? Não creio. Acho que ainda podemos dar meia-volta e repensar os caminhos que estamos trilhando. A escolha é toda nossa, por enquanto. Por enquanto: talvez amanhã seja tarde demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

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