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Para além da inteligência, há quem possua uma força invisível que vivifica e impele sempre adiante e acima. Uma gente inconformada, no sentido de não se encaixar em formas predefinidas nem em camisas de força. Não são renegados nem rebeldes, mas espíritos elevados, movidos por virtudes afirmativas e não por oposições e implicâncias. São poucos, entretanto. Não há designação única e definitiva para personalidades assim. José Ingenieros chamou tal disposição de “o idealista”. Ernst Hello, de “homem superior”. O profeta Daniel designa tal caráter como “espírito excelente”. Há outros exemplos.
A essa força motriz, a esse ímpeto provindo de fonte desconhecida e inexplicável chamarei alma sensível. Trata-se da mesma substância descrita acima e, em todo caso, tais personalidades — não importam quais pequenas variações as diferenciem — , opõem-se preliminarmente a dois defeitos da humanidade: a maldade e a mediocridade. A luta desta alma sensível consiste em combater malignos e medíocres, antes de tudo dentro de si. Mas não somente.
Mais frequente que a malignidade é a mediocridade. Produto social, ela normaliza nos indivíduos os vícios da coletividade até o ponto de não serem mais percebidos como vícios. O medíocre — não confundir com o equilibrado e portanto virtuoso — acomoda-se às convenções do momento por um cálculo a um só tempo astuto e defensivo. Sua alegria é rasa e seus lemas de vida estúpidos, sempre obtidos por repetição. Vive de emblemas superficiais e não o incomoda a própria imperfeição. Se chamado a se examinar e a se modificar, o medíocre se ofende e reage, pois, refratário, faz de seus sentimentos confusos e impressões vagas escudos contra toda luz nova e diferente. Evita porquês a todo custo e, passivamente satisfeito, detesta grandezas. Do ponto de vista do intelecto, medíocres são como mortos em vida.
Por outro lado, a sensibilidade interior jamais se nota à primeira vista. Há quem aparente ser alguém absolutamente comum, sem qualquer atrativo imediato, cuja alma é sensível. E existem indivíduos notavelmente cultos e eruditos que, opacos por dentro e por fora, são precários em matéria de espírito.
Nem toda pessoa sensível no sentido comum do termo possui esta alma contemplativa, introspectiva. Seu traço marcante está na abertura às percepções sutis e, ao se valer da cultura — em geral o faz — , não a traz na epiderme mas no íntimo, internaliza seus significados mais elevados. Almas sensíveis captam o movimento dos mistérios, como se todo oculto não fosse invisível mas translúcido, diáfano; discernem o que há por baixo das coisas, captam segredos, notam detalhes por entre as proposições antagônicas. Elas intuem e antecipam.
Humanas, tais almas podem incorrer em erros, claro. Têm um fraco por conjecturar demais e não raro viciam-se em si mesmas, nos próprios pensamentos e teorizações. Também correm o risco do solipsismo. Serão espíritos saudáveis se não confiarem muito nas formulações a que chegam e deixarem a realidade educá-las, falar por si. Com a maturidade, a alma sensível aprende a trabalhar a intuição e a formular conforme as impressões tomam corpo e se definem. Enquanto isso, é magnânima, compassiva. Não age feito juiz ou moralista — exceto se a falha for intencionalmente má.
“Se você é dos que orientam a proa visionária para uma estrela e estendem a asa para a sublimação inatingível, desejoso de perfeição e rebelde à mediocridade, leva dentro de si o impulso misterioso de um Ideal. […] Você só vive por essa partícula de sonho que o eleva sobre a realidade.”
— José Ingenieros¹
Soa algo metafísico, com efeito. Almas sensíveis realmente sentem algo a mais no ar, detectam causas e consequências; taciturnas, são previsíveis na rotina e surpreendentes nas opiniões. Contudo, podem equivocar-se também. A ser assim, refazem o parecer inicial quando a massa mal assimila o senso comum de anteontem. Saem do equívoco antes de consumar seu efeito ou nem mesmo entram: sabem quando o bem torna-se mal; leem sinais difusos ainda em germe no horizonte; recusam-se a ser ovelhas rumo ao matadouro ou mosquitos que, hipnotizados pela luz, voam ao redor da lâmpada para a morte.
Almas sensíveis são reconhecidas por outras almas sensíveis, jamais pelo vulgo. Elas buscam seus pares, seus iguais, porém raramente os encontram, pois não se dão às amizades. Desconfiam muito, reservam-se demais. A presença constante dos outros as deixam aturdidas e irritadiças, como se o contato lhes sugasse a seiva, a energia espiritual. De maneira que se fecham àquilo que justamente as poderia fortalecer: os amigos. Talvez esteja aqui sua maior fraqueza.
Como se vê, ninguém é perfeito. Mas as almas sensíveis anelam a perfeição. Embora seja impossível alcançá-la, a jornada vale por si. Seus padrões são elevados. Para com fortes, alternam admiração e desprezo; e dos fracos sentem compaixão. Sua marca pessoal é a solidão, mesmo em meio às multidões.
Enquanto isso, grassa o vulgo lá fora, sempre em busca de satisfação imediata e entorpecimentos variados; saboreiam o mundo como uma sobremesa, incham e esparramam. Não faltam motivos para permanecer no ponto em que estão, no plano interior. Tampouco faltam companhias. Medíocres existem em maior número por um único motivo: facílimo é ser medíocre.
Almas sensíveis, por outro lado, não importa o tamanho de suas angústias ou o peso de suas dificuldades, recusam o nivelamento. Adaptam-se socialmente por necessidade, caridade ou prudência, e só. No mais, são autodisciplinadas e carregam algo da Eternidade em si. Possuem como que asas invisíveis, embora, para não serem tomadas pela soberba para depois caírem como anjos rebelados, não levantam voo diante do próximo. Enquanto presos a esta vida, a elas resta escapar do chão de outra maneira: por meio de realizações edificantes, a si e ao próximo.
¹ INGENIEROS, José. O Homem Medíocre. Curitiba: Editora do Chain, 2011
Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 22/01/2022

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