ESTOU eu no metrô, quando de repente senta (despenca) ao meu lado a Diversidade. Distraído com um livro velhinho à mão, levo um susto, mas logo me recomponho. A Diversidade começa a remexer na bolsa, nervosamente. Abre zíper, fecha zíper, mexe, remexe. E minha concentração vai para o espaço. A leitura estava tão boa… pô, logo ao meu lado?
Não teve jeito: tive de reparar na Diversidade. Disfarçando, evidentemente. Era jovem, franzino (franzina? franzinx?), tinha uma mecha azul no alto da cabeleira e espinhas secadas recentemente, vejo de reflexo. Após os trabalhos na bolsa, retira o smartphone, cruza, descruza e cruza novamente as pernas, balançando molengamente a perna apoiada. Parece agitada.
Bem, e daí? — penso. Volto ao livro. Não quero que a Diversidade perceba algum incômodo da minha parte, se exaspere e exploda. Diversidades são muito irritáveis. Só que a leitura não fluía. Daí, olhando as páginas sem lê-las, pus-me a matutar, tenho essa mania. Recordei-me de algo.
Quando eu era garoto, num bairrinho longe e desconhecido de São Paulo, era bem difícil ver alguma Diversidade. Havia meninas gordinhas, magrinhas, bonitinhas, feinhas. Havia meninos altos, baixos, gordos, magros, todos feios. Havia brancos, rosas, pretos, cafés-com-leite, amarelos, um vermelho. Todos mais ou menos parecidos no geral, e nenhuma Diversidade. Ou melhor, quase. Lembro-me de uma.
Foi na escola, na sétima série. A gente fazia educação física: meninos tinham aula num dia, meninas no outro. E este era nosso dia de aula.
O professor, que vinha para a escola numa Vespa vermelha e parecia o Chuck Norris, apesar de gente boa, não era de muita conversa. Fazia a chamada e mandava a gente correr: dez voltas em torno da quadra, para o aquecimento. Depois, polichinelo e dez flexões. E depois lançava a bola de capotão, formava dois times e organizava uma partida de futebol. E a gente jogava bola.
No meio da molecada havia uma Diversidade. Naquele tempo não a conhecíamos por esse termo, porque essa palavra não se aplicava a pessoas, mas a itens num supermercado ou numa loja. A Diversidade da sala fazia aula com os meninos, com a gente, mas detestava jogar bola. Ia pro gol, que é o lugar natural de quem detesta porém é obrigado a jogar, conforme a lei da molecada. Eu ficava de zagueiro, posição ingrata e oficial dos pernas de pau, de quem marca umas faltas, impede jogadas do adversário, faz uns lançamentos, mas não sabe driblar nem fazer gol. Era meu caso.
Então, num dia daqueles, vi a Diversidade da sala choramingando, enquanto o time atacava lá no lado adversário. Fungava baixinho. O que havia? Parecia uma tortura, sei lá. Não queria ficar na aula, era nítido. Reparei naquilo e me solidarizei intimamente com a Diversidade, embora não tivéssemos papo. Mas entendia um pouco, acho, porque eu também nunca fui muito fã de futebol, nem era nenhum craque. Eu sonhava em ser o Zico, mas sempre era o penúltimo a ser escolhido para o time. A Diversidade ficava por último (“tá bom, vem você, vai…”).
Da minha parte, eu abstraía, me aguentava e jogava. Fazia o que tinha de fazer. Era esse o código dos meninos. Meninos seguem os códigos, fazem o que têm de fazer e se aguentam firmes. Mas para a Diversidade era difícil.
Um dia, no final do bimestre, o professor realizou um campeonato interclasses, misturando meninos e meninas. Os garotos adoraram o evento: meninas de shortinho, saiazinhas drapeadas etc. A Diversidade lá da sala também gostou, mas entrou no time de vôlei das meninas. Elas, que nos olhavam com desprezo como se fôssemos mendigos leprosos, nem ligavam de jogar perto da Diversidade, de shortinhos e tudo. Ao contrário, riam, davam-se muito bem.
Nunca nenhum professor nos mandou respeitar a Diversidade. Também, nem precisava: ela tinha lá a turminha dela, nós a nossa, e a vida seguia. Faz tempo que deixei a escola, mas ouço dizer que professores hoje passam oitenta por cento do tempo em sala mandando respeitar a Diversidade e vinte por cento ensinando (mal) o bê-a-bá. Acho que é verdade, porque a garotada hoje em dia sabe bem o que é Diversidade, mas não imagina o que seja um advérbio.
Enfim, eram outros tempos. Além daquela, na turma da escola, só se via Diversidade na televisão: no Bolinha, no Silvio Santos, no Viva o Gordo, no Chacrinha. Quando as assistia na TV, eu criança, pensava em quê? Em nada. Achava estranho, às vezes um pouco engraçado, e só.
Chega de matutar, afinal. Minha estação se aproxima. Volto a atenção para a Diversidade aqui ao lado. Já perdi a concentração da leitura mesmo, então deixa pra lá.
Caramba, a Diversidade aqui se agita miudinho, meio serpenteando no próprio eixo. Me irrita um pouco. Digita qualquer coisa no celular, põe a mão à boca e dá um risinho mudo. Deve estar boa a conversa. Como deve viver? Será feliz?
Imagino-me puxando assunto com a Diversidade. Porém nem tento, sou ruim de papo. E outra, vai que eu fale alguma coisa que ofenda, vai que a Diversidade arme um escândalo aqui e eu vá parar na home do UOL? Deus me livre de confusão.
Se fosse antigamente, na escola, no tempo daquela outra Diversidade que não jogava bola, talvez pudesse falar alguma coisa, qualquer coisa. Era mais fácil. Mas com essas Diversidades de hoje em dia, melhor falar nada. Só calar, fingir normalidade, não olhar muito… anular-se, em suma. Não é esse o código vigente? Meninos seguem os códigos, fazem o que têm de fazer e se aguentam firmes.