A indômita Frangland
e a jornada dos franglish

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MUITO EMBORA CHAMEMOS GLOBO TERRESTRE, nosso planeta não apresenta a forma duma esfera perfeita mas um pouco ovalada, como aquelas bolas de duvidosa procedência que comprávamos em vendinhas na infância. Acrescente-se que seu eixo — um palitão imaginário a atravessar a Terra de alto a baixo — também não se encontra perpendicular a retíssimos 90 graus, feito o palito na maçã do amor, mas algo inclinado, a aproximadamente 23,5 graus. Assim afirmam os melhores tratados da ciência astronômica e todos os peritos no assunto.

Posição tão pitoresca no sistema solar faz com que o giro descrito por nosso planeta em torno de si mesmo — a tal rotação das aulas de ciências — não se nos dê a enxergá-lo na totalidade, mesmo nos mais avançados satélites e sistemas de posicionamento global.

Não boceje, leitora e leitor: a NASA mantém-se quieta neste particular, contudo, em certos documentos não exatamente secretos mas muito discretos, a dita-cuja aplica um migué no resto do mundo: não declara abertamente que todos os seus sistemas de monitoramento somados abranjam algo como 96% de nossa querida bola azul vista do cosmos.

Ora, não é preciso ser nenhum Einstein para de pronto calcular que 4% do planeta não passa duma incógnita, um gigantesco ponto cego a todos nós, humanidade em geral. Para contornar o clamoroso vexame, a agência americana desculpa-se dizendo que essa faixa invisível corresponderia a uma desprezível continuidade oceânica no mar do Pacífico, a um punhado de milhas náuticas ao leste da Austrália. Bobagem, asseveram; café pequeno.

Ah, o imperialismo ianque e suas patranhas. Pois nessa ínfima parte não catalogada do planeta há sim um território inexplorado, do qual o governo americano reluta em dizer que não existe, por pura birra e por não saber perder. Este país faltante a todos os mapeamentos os mais sofisticados atende, pois, pelo sugestivo nome de Frangland.

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COBRADO A RESPEITO, o Tio Sam apelou a expedientes fáceis, como muxoxos e risos escarninhos; pega no pulo, a velha e calejada Europa admitiu a existência de Frangland, um tanto constrangida. Sem saída, rendeu-se; e recordou-se que o lendário navegador Américo Vespúcio relatara, num documento dado como perdido, a respeito dumas terras perdidas no hemisfério sul, donde os habitantes falavam uma língua parecida ao bretão e ao gálico no mesmo vocábulo. Um provecto linguista e filólogo deu-nos um exemplo de como funcionaria o obscuro idioma, na palavra em português queijo: em inglês, se diz cheese; em francês, fromage. Pois em franglish — eis o gentílico daquela nação — em franglish queijo é cheesage. Simples, como se vê.

Certo, mas se o exemplo anterior não elucidar o suficiente, pegue-se outro vocábulo em português, veludo, o clássico tecido. Em inglês é velvet, e em francês, velours. Em franglish fica velvelours. A propósito, dizem que não há charme maior que ver e ouvir as beldades de Frangland a pronunciarem este “velvelours” fazendo biquinho: é de enlouquecer a qualquer cavalheiro no seu mais perfeito juízo…

Mas falávamos de Américo Vespúcio. O famoso navegador descrevera em carta a terra misteriosa, no entanto, como na expedição anterior o desbravador chegara às Antilhas — viagem bem mais interessante à corte espanhola, pois para isto mesmo o contratara — ninguém deu pelota à viagem seguinte, realizada nos idos de 1506–1507. Também dissemos que o documento foi dado como perdido.

Felizmente, não mais: uma equipe de pesquisadores autônomos encontrou a tal carta, quase por acaso. Estava na seção de livros raríssimos da Universidade de Leicester, Inglaterra. Ninguém sabe como o documento foi parar lá: trata-se de uma folha de pergaminho em excelente estado de conservação, inserida num velho volume numerado da Divina Comédia de Dante Alighieri – exemplar no qual consta a ex libris do poeta florentino –, volume portanto de valor inestimável. Seja lá quem tenha guardado a carta de Vespúcio ali, provavelmente a usara como marcador de página, e esqueceu-se de onde deixara o precioso documento, se é que o tivesse por precioso.

Pois se Frangland esteve escondido do resto do mundo esse tempo todo, o resto do mundo também esteve escondido de Frangland esse tempo todo. Oh, caro leitor, estimada leitora: esqueça internet, televisão, telefone e tecnologias de igual cepa. A excêntrica nação comunica-se ainda ao modo medieval, via mensageiros de alpercatas em burricos, caixeiros viajantes em caleches, pombos-correio em telhados. Nas colinas de Frangland, conta-se, há toda uma cultura ancestral de falcoeiros para enviar encomendas a longuíssimas distâncias.

Ocorre que, depois de tantos anos em segredo e sob uma estupenda autossuficiência de recursos, os franglish decidiram singrar os mares: para a empreitada, construíram enormes caravelas do mais resistente carvalho de suas florestas, e lançaram-se ao mar bravio em busca de novas terras, pedras preciosas e especiarias — isso em pleno século 21. Se bem que, na contagem franglish, eles andam pelo século 17, e não se sabe que referencial utilizam para enumerarem seus dias. Estima-se que tenham suprimido centenas de estações do ano; talvez saltaram miríades de fases lunares ou, quem sabe, utilizem uma singular adaptação do calendário gregoriano. Resta averiguar.

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BEM, MAS POR QUE FALAR deste país Frangland e de seus nativos, os franglish? Ocorre que as três enormes embarcações aportaram na praia de Maragogi, paradisíaco litoral das Alagoas, na pátria amada Brasil. Tão logo a tripulação franglish molhou as botinas em águas brasileiras, foram recebidos por esquálidos pescadores que falaram ôxe ao ver-lhes a indumentária, ao que foram alvejados imediatamente: julgaram tratar-se de piratas. Levados os corpos pela correnteza a uma movimentada cidade vizinha, a polícia científica local realizou uma perícia improvisada, tal como pôde, pobrezinha, já que a verba congelara desde os anos Michel Temer. Chegou-se à conclusão de que os tiros partiram de rudimentares trabucos, mui parecidos aos dos nossos bandeirantes de quando desbravaram o território nacional.

Atracados em Maragogi, depressa os franglish construíram um píer do mais puro mogno, belíssimo cais por sinal; e, encantados com a paisagem circundante, decidiram edificar por ali sua nova cidade, a qual julgavam tratar-se de uma ilha perdida no Atlântico, conforme apontavam todos os astrolábios, sextantes e lunetas. Sempre curiosa, bem que nossa imprensa tentou aproximar-se, mas foi logo debelada com pedras de atiradeira revolvidas em betume fumegante. Conseguiu-se apurar, por sorte, que a intenção dos franglish era mesmo colonizar a região, e batizaram-na de Neweau Frangland (Nova Franglaterra, em tradução livre).

Por ali os colonizadores abriram ruas perfeitamente planas e, de um lado a outro, separaram às suas famílias lotes de um quadrado perfeito, como que medidos à régua. Além disso, erigiram uma capela repleta de vitrais coloridíssimos numa praça central cuidadosamente projetada, com uma doirada cruz de Santo André (Saint-André) postada no alto da cúpula, símbolo maior dos franglish, constante em sua bandeira, em suas armaduras, em seus escudos, e em suas moedas.

Entrementes, o governo brasileiro preocupou-se sobremodo com o avanço franglish na região: nossos nativos relataram como os colonos erigiram uma fortificação na cidade litorânea, muito semelhante a um feudo do ano mil da era cristã; e que, qualquer um que se aproximasse com aparência suspeita, era logo recebido por uma saraivada de setas esbraseadas, atiradas por arqueiros posicionados no alto da amurada.

Procurado, o Exército Brasileiro (EB) disse ser muito difícil acessar o litoral de Maragogi, e mesmo achar Maragogi no mapa escolar; semelhante resposta deu-nos a Marinha nacional, cuja fragata E.S.S. Charles Bolsonaro aguarda há mês e pouco no porto de Itaguaí por falta de óleo diesel (que anda mesmo pela hora da morte, diga-se), além de ocupar-se na proteção do comércio marítimo de armas e munições a policiais freelancers das comunidades cariocas.

Nada desesperador, no entanto: “pra quê essa angústia?”, consolou-nos o comandante-em-chefe de nossas defesas, tranquilizando-nos a todos. Com efeito, nossas Forças Armadas não faltariam mesmo à sua precípua missão, ao fim e ao cabo: sob esforço inaudito, destacaram um avião tucano da FAB para monitorar a colônia invasora. Ó, fortuna: não foi este abatido por um canhonaço ao sobrevoar a fortificação? Rodopiou em parafuso e esboroou-se em alto mar. Ai de nós…

Lamentável também foi a tentativa de negociação política, como sempre se procede em nossas plagas: um deputado Ernon Lira partira confiante em missão diplomática para falar ao líder franglish. Dissera ao patriarca que, se chegassem a um acordo, ele ofertaria uma emenda parlamentar de grande monta, mediante gorjeta de 20%, metade antes, metade depois. Ao ouvir-lhe a infâmia, o líder franglish saca de seu arcabuz e dispara-lhe contra o peito. Testemunhas disseram que o rombo atravessava o braço dum homem sem sujar-lhe as mangas. Outros deram conta de que o tiro não fora disparado exatamente à comissão proposta, mas depois de um lúbrico Lira olhar lascivamente à senhora do líder franglish – loura bem fornida e deveras magistral –, ao vê-la pronunciar “velvelours” com biquinho típico. Mas isso, disse a viúva, há de ser boato.

Os satélites do Inpe mapearam os progressos franglish em território nacional: as residências foram todas cercadas de um tapete natural, forradinho de tulipas multicores. Diante da notícia, populares da cidade julgaram ser aquele um condomínio de alto luxo, “só pra quem tem, ó”, disseram, esfregando o dedo indicador no polegar. Enquanto isso, os franglish prosseguem na colonização à sua maneira. Erigiram até escolas ou algo assemelhado para suas alvíssimas, rosadíssimas criancinhas.

Ultimamente, uma fila de populares vem se formando perto da fortificação, pedindo “algum serviço”. Compungidas, estalajadeiras despejam tinas e mais tinas com repolhos velhos e restos de uvas pisadas dos lagares, cujo mosto excedente permite a feitura de conhaques caseiros, vendidos a caminhoneiros como rebite. Por dez real a garrafada, chamam à beberagem “vevelú”: única palavra em franglish que conseguiram decorar, a seu modo, ignorando-lhe entretanto o significado.

O departamento de sociologia da Universidade Federal do Norte Alagoano (UFNAL) tem produzido estudos a respeito da opressão dos povos franglish e criticado o regime patriarcal em que vivem, sobretudo suas mulheres; por outro lado, o Núcleo de Etnicidades e Outros Saberes (NETOS), da mesma instituição, discorda; dizem que as mulheres franglish são de um louro platinado tão ofensivamente eurocêntrico que até reluz, e que portanto trata-se de uma gente assaz privilegiada. O relatório “Velvelours: a objetificação da mulher franglish enquanto biquinho”, da pesquisadora-chefe da ONG Rosa Luxemburgo de Feminilidades e Transfeminilidades, denuncia que as mulheres franglish são liminarmente impedidas de serem arqueiras nas torres, operadoras de catapultas ou tocadoras de sino na igreja; defendem que elas podem ser o que quiserem, mas, por enquanto, sua antiquada cultura admite o trabalho feminino fora do lar apenas a moças enjeitadas, como aguadeiras nas edificações, taberneiras nas bodegas ou cortesãs nos lupanares.

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DESDE A INVASÃO FRANGLISH, nossa República sofre um impasse de maneira generalizada: a governança local não alcança bom êxito nas negociações com óbvias vantagens de parte a parte, como sempre sucede aos mandatários das comarcas vizinhas. Os franglish parecem desprezar as generosidades da mãe gentil, o que a todos causa espanto, curiosidade e inconformidade.

Nosso glorioso Exército de Caxias prossegue no estudo das melhores rotas rumo à inacessível Maragogi. Tomará as devidas providências, garantiu, tão logo compreenda mapas territoriais. Torçamos. A intelectualidade acadêmica também propôs-se a ajudar na reconquista, se bem que passa por apuros: grassam confusões nas muitas assembleias democráticas, sob um inédito conflito intraprogressista, já que o conceito sociológico de hoje choca-se com o de ontem, e este, com o de daqui a pouco. Cotejados, todos anulam-se mutuamente, sob variegadas contradições.

Para dirimir a situação diplomaticamente — posto não ser nossa tradição o extermínio de povos inteiros, ao menos não ex officio — uma comissão da Câmara dos Deputados formou-se para discutir o imbróglio. Compôs a mesa diretora não apenas atores políticos mas também de novelas, além de ativistas, youtubers, percussionistas de trio elétrico, jogadores de futebol, cyberfunkeiros, sertanejos do centro-oeste e traders paulistanos, meu.

O relatório final da comissão propôs uma solução aclamada unanimemente. A mais brasileira das soluções, diga-se: importar, em caráter de urgência urgentíssima, dez comboios de populares popularíssimos e uns quantos traficantes ao local, e circundar ao redor do feudo de Neweau Frangland uma enorme favela — comunidade, a bem dizer — a toque de caixa, para ensejar o efeito esperado. Assim se fez: comboios enormes trazidos por insucateáveis Mercedes-Benz dos anos 70 transportaram os insumos da empreitada, quais sejam, tijolos baianos e concreto pra laje, além de muitas parabólicas. A Anatel — Agência Nacional de Telecomunicações — também colaborou, provendo postes com farta fiação para neles dependurarem as pipas mandadas e os tênis velhos pelos cadarços, e, sobretudo, prover aos novos ocupantes do novíssimo cinturão favelístico um pouco de diversões domésticas via gatonet. Ademais, ninguém sabe quem pediu, mas a igreja Assembleia destacou dezassete sacerdotes vocacionados per se e providenciou três milheiros de cadeiras plásticas de jardim para prover a religiosidade da novíssima comunidade, sob módica contribuição dos devotos.

A coisa vai de vento em popa, com efeito. Hoje, quando se chega às bordas de Maragogi ou Neweau Frangland, as muitas pipas no alto indicam que a comunidade brasileira resiste e prolifera: nos derredores já se ouve populares a bradar algo como “manda lata, Zé”: o belo ritual popular de enchimento de lajes, múltiplo e incessante.

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QUANDO ESTE ESCRIBA VISITOU PESSOALMENTE o portento que é Neweau Frangland, teve antes de passar por uma espécie de estreitamento de pista, onde jovens seguranças da comunidade, descamisados e armados de potentíssimos fuzis, exigiam pedágios um tanto arbitrários, é forçoso admitir, especialmente smartphones. Tivemos de entregar. Vimos alguns turistas mais relutantes a irritar os descamisados da resistência, que saltavam dentro dos carros e subtraíam a justa taxa de entrada, ao que, diziam, “perdeu”, “tudo nosso” etc.

Enfim, a estratégia idealizada pela gloriosa comissão política, intelectual e artística parece ter dado certo. Relatos dão conta de que os franglish andam mesmo intimidados com o cinturão comunitário, no qual o verde-água do horizonte dá lugar ao laranja-tijolo e ao cinza-cimento, e os muitos fogos Caramuru Três Tiros de Canhão, disparados quando em gols do Flamengo ou por viaturas ao longe, assustam as sentinelas franglish no alto das torres, sobressaltando-as.

A intelectualidade acadêmica louvou tal iniciativa de resistência, tão brasileira, tão nossa; quando nossos carteiros chegam aos umbrais da fortificação — mensageiros são bem-vindos em Neweau Frangland, como é costume no país de origem — , bem, os carteiros entregam periódicos traduzidos em perfeito franglish aos líderes daquele povo, conscientizando-os de que praticam a mais hedionda exclusão social aos habitantes do cinturão comunitário, e que deviam se abrir, integrar-se mais aos resistentes. Sim, deviam viver em harmonia e a tudo dividirem, sobretudo suas mulheres franglish, chamadas “as novinha” pelos rapazes da ocupação, acometidos de mil priapismos ao ouvirem-nas dizer “velvelours” com charme inebriante. Tão logo leram as cartas, os patriarcas convocaram uma novena na capela Saint-André, a fim de penitenciarem-se e clamarem o perdão coletivo.

Por fim, os bons resultados principiam a aparecer: murchas e fenecidas, as tulipas das residências franglish são trocadas por concreto de betoneira, dádiva da Bruninho Lira Concretagens, do empreendedor e filho do falecido parlamentar lúbrico do mesmo clã. O sinal da Rede Globo já chega aos lares franglish, sob os auspícios da afiliada TV Marolinha, propriedade do atual governador Aristides Calheiros de Mello. Além disso, a taxa de natalidade franglish sobe a níveis estratosféricos de quando comparada ao início da colonização: nota-se como as crianças curam-se do exagerado alvor cutâneo e libertam-se do incômodo róseo nas faces. Antes onipresente, o louro platinado e reluzente deixa a cada dia o louro, o platinado e o reluzente.

Hoje, quem visita a pitoresca fortificação vê na entrada do cinturão comunitário uma grande placa, pintada à cal e restos de esmalte sintético, bem na praça de pedágio de smartphones: “Comunidade Vevelú” e embaixo o simpático subtítulo “aqui as novinha é tudo benvimdas” (sic). Enfim, a ordem e o progresso de nossa flâmula impõe-se novamente no território, e a brava gente brasileira triunfa uma vez mais. Tá tudo dominado.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



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(Selo criado por Beth Spencer)

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