DIA APÓS DIA, Gregor Soros adaptava-se à vida de inseto humano. Numa segunda-feira pela manhã, a exemplo dos encontros com seus executivos, reuniu a mulher e o médico oficial para incumbir-lhes a tarefa de convocarem os melhores pesquisadores de Harvard e Stanford e outros geneticistas com autoridade reconhecida na área, a fim de investigarem mutações no DNA e possíveis modos de reversão ao estado original.
Cuidadoso para não contrariar o bilionário de modo ríspido, o doutor advertiu-lhe que pesquisas científicas deste calibre costumam ser lentas e dispendiosas, poderiam arrastar-se por anos, com resultados incertos; e que seu caso requeria tratamento médico imediato. Gregor S. aceitou a orientação, deixando claro que prazo não seria obstáculo para ele, se houvesse esperança de bons resultados. Ficou decidido que se submeteria às terapias enquanto as pesquisas avançassem em paralelo e que para todos os efeitos apostaria as fichas que tivesse à mão.
Toda a operação foi encaminhada oficialmente pelo conglomerado farmacêutico que pertencia a seu fundo de investimentos. Ninguém além da família sabia do problema, com exceção de seu médico de confiança, que lhe atualizava em linguagem acessível e não técnica o andamento e os resultados preliminares das pesquisas. Aos demais, tudo permanecia em absoluto sigilo.
A condição anômala já durava dois meses. Por mais que fosse ainda respeitado e obedecido, e por mais que seu caso recebesse o melhor encaminhamento possível e fizesse sua parte, Gregor S. não estava muito confiante, no fundo. Não apenas revoltava-se intimamente contra seu infortúnio pessoal, por razões óbvias, mas amargurava-se com tudo o mais ao redor, com tudo alheio a si. Pela televisão, notava o quanto o mundo continuava em relativa ordem, perturbando-se apenas com banalidades corriqueiras nas localidades de sempre — principalmente no Terceiro Mundo — enquanto aquele mal inexplicável o castigava.
Inconformava-se com a rotina das demais pessoas, rotina da qual fora privado. Trivialidades nas quais antes sequer pensava, hoje faziam-lhe grande falta: banhar-se na sua hidromassagem após um dia extenuante, por exemplo. Desejava de volta até privilégios simples e acessíveis a todos, ricos e pobres, como caminhar ao ar livre ou molhar-se na chuva; e pensava nas pessoas normais que em geral eram mal-agradecidas e desprezavam a boa sorte que tinham, não sabiam viver.
Em certos momentos, indignava-o até sua pobre criada quando postava-se à entrada do aposento, sem entrar. Notava-a emagrecer ou engordar míseros gramas — seu sentido de inseto detectava alterações corporais facilmente, inclusive odores e sons imperceptíveis às pessoas comuns — e raciocinava como o metabolismo dela andava em perfeito funcionamento. Depois, zapeava no controle remoto da televisão e via o tempo todo gente a se lamuriar ou a agradecer por bobagens, sempre a mencionar “Deus”: curioso, era “Deus” o tempo todo, aqui, acolá; esse tal “Deus” que para si não passava de fantasia de religiosos e fanáticos. Desprezava tais superstições. Para ele, tudo não passava de crendice tola.
Se existisse de fato, talvez Deus fosse um titã que jogasse com a humanidade arbitrariamente, a seu bel-prazer; um enxadrista cósmico o qual, sabe-se lá por qual razão, decidira aplicar-lhe particularmente um xeque-mate. Detestou a religião dali em diante, a cristã em especial, a que mais aparecia na televisão. Era uma religião vulgar, sem mistérios, sem ritos secretos; sempre com suas culpas manipuladoras, suas penitências sem sentido e sua moral piegas para dominar crentes simplórios: a maior farsa da existência.
Caso seu estado metamórfico não revertesse a contento, Gregor Soros não teria mais nada a perder. Estaria disposto a tudo para vingar-se do destino que lhe aplicara, sem motivo aparente, um golpe cruel e covarde. Diferente de antes, porém, sua revolta difusa agora ganhava forma, conteúdo, e alvos bem definidos. Foi quando sentiu uma estranha satisfação percorrer-lhe a carapaça ao identificar seus novos grandes inimigos: a fé em Deus e a normalidade da vida.
*continua…