Manuel morreu

Tempo de leitura: 6 minutos

Manuel morreu. Marcaram o velório no Cemitério da Capelinha, uma salinha desse tamanhinho. Quase não deu tempo de avisar a ninguém que o Manuel morreu, foi tudo às pressas, de ontem pra hoje. Infarto fulminante, puf, morreu.

Avisaram no trabalho do Manuel: “o Manuel morreu.” A menina disse “depois eu falo, tá todo mundo em reunião agora.” Ela cumpriu a promessa e disse depois da reunião: “Seu Juracy, o Manuel não vem hoje.” Ia completar que o Manuel morreu, mas o chefe não perguntou nada, só grunhiu e deu as costas.

Marcaram o enterro para as duas da tarde. O velório começou cedinho, às nove: estavam lá a mulher do Manuel e o filho do Manuel, um rapagão que trabalhava como Uber. Fora os dois esperavam o quê, umas três, quatro pessoas. A sobrinha do Manuel disse que ia, mas lembrou que tinha entrevista de emprego, disse que não ia não; mandou áudio avisando.

Deu nove, deu dez, deu onze da manhã. Uma tia do Manuel disse que vinha, mas mandou os sentimentos por aplicativo mesmo, até chorou. Tinha consulta no SUS, disse. “Se eu perder a consulta no SUS, é um custo remarcar. Demora meses na fila. Não posso ir, não.”

“Melhor enterrar logo, ninguém vai chegar mesmo”, disse a mulher ao filho, “vá chamar o pessoal do cemitério”.

Deu meio-dia. Uns carros começam a estacionar no pátio, um atrás do outro. Movimento repentino. Era cada carrão desse tamanho, parecia gente importante. Depois chega uma van daquelas bem chiques de hotel: sai um pessoal todo arrumado, umas senhoras grã-finas. Mais pessoas chegam, não param de chegar: jovens, adolescentes, uma gente com cara de alta sociedade. Surge um carro oficial que abre um clarão no pessoal: Ministro de Estado, disseram. A polícia escoltava.

Uma pequena multidão se forma na entrada do Cemitério da Capelinha. Estranhos param à entrada, curiosos se aproximam, uns fingem conhecer o morto, “que perda, meu Deus”. A polícia põe barricadas, organiza o local. Batedores desviam o trânsito, os ônibus se apertam por ruazinhas estreitas. A pequena multidão toma o cemitério, a rua, a praça em frente.

Conduzem o Ministro de Estado à viúva: “meus sentimentos; seu marido é um grande orgulho do país.”

“O Manuel, moço?”

A mulher estranha a fala e estranha o Ministro, não sabe quem é; este olha consternado o rosto do defunto enquanto os flashes disparam.

A mulher copia o Ministro e também olha o rosto lívido do morto. E não é que parecia em paz, o Manuel? A pele exibe um branco da paz.

De repente, um apresentador de televisão se aproxima da mulher, tonitruante:

“A senhora não imagina o quanto o Manuel me ajudou na hora mais difícil… tá filmando, Pereira? Vai de novo. Um, dois, três: a senhora não imagina o quanto o Manuel me ajudou na hora mais difícil…”

A mulher se espanta: ninguém menos que Carlinhos Moura em pessoa, bem ali diante dela. Ela não perdia um programa, o Domingo Show. “Seu Carlinhos? Ah, seu Carlinhos… o Manuel, o senhor precisava conhecer… ele ajudava muito o pessoal, sempre quando dava ele ajudava…”

A mulher queria a compaixão do apresentador; o apresentador queria as lágrimas da mulher. O cameraman buscava um bom close. Carlinhos Moura arrisca umas perguntas comoventes:

“Mas deixa eu perguntar para a senhora, eu sei a dor que a senhora sente: como foi conviver todos esses anos ao lado desse brasileiro tão querido, desse grande artista nacional?”

“O Manuel?… ah, ele era muito trabalhador, né? Muito honesto… bom pai…”

“Manuel Dias de Souza, Brasil. Um orgulho da pátria, um homem que abrilhantou nosso nome lá fora.” Carlinhos Moura passa o braço por sobre a mulher, como a ampará-la. Do outro lado do caixão, o cameraman força espaço com os ombros para captar o melhor ângulo. “A viúva está muito emocionada, Brasil. É visível. As palavras fogem numa hora dessas. Vamos entender esse momento tão delicado para ela.” O cameramanzoom no rosto da mulher. Depois, filma o caixão. O caboman aponta a luz fortíssima para o defunto, que parece branquíssimo, quase reluz.

“Pronto, deu? Vamos, vamos, Pereira.” Súbito, o apresentador se apressa. “Meus sentimentos!”, diz à viúva, sem olhá-la, esbarrando e abrindo espaço para sair.

A mulher mal entende o que houve e quase esquece do marido morto. O filho se aproxima: “eles vão enterrar daqui a pouco, mãe”.

Um grupo de meninas se aproxima com um livro em punho, todos de capa dura. Fazem selfies tristes com o caixão ao fundo, falam chorosas entre si. “Estou aqui ao lado do Manuel, gente. Adorava tanto o que ele escrevia, tudo, tudo…”, diz uma delas ao próprio smartphone. Faz uma live.

“Moça, meu pai trabalhava na contabilidade, viu? Analista contábil pleno!” Sávio tenta esclarecer as coisas, fica nervoso com a confusão.

“Não, ele é escritor, moço. Por que vocês não querem falar nisso?”

“Nossa, moça. Nada a ver. Tem algum engano aí.”

Sávio vai ao funcionário do cemitério confirmar se havia outro defunto velando no Capelinha. Tinha uma coisa errada, só podia ser, o pessoal trocou de velório? Manuel tem um monte por aí, vai ver é de outro Manuel que elas falavam.

O grupo das senhoras grã-finas muito empoadas se aproximam do caixão. Adentra a sala um cheiro de patchuli e laquê. Cada uma trazia um livro “A Outra Margem do Rio Azul”. De óculos escuros e penteado à Sophia Loren, uma delas se dirige à viúva: “mês passado nós lemos o livro dele em nosso clube de leitura, bem. Nossa Mãe! Que sensibilidade a desse homem, que jeito lindo de falar com as pessoas. Viemos dar nosso último adeus ao Manuel Dias, que grande escritor.”

Manuel Dias. Não é que o nome batia mesmo? A viúva descobria um fato sobre seu marido bem naquela hora. Como pode? Ela deixa o cordão de isolamento perto do caixão e procura um repórter que chegava ali atrás, um repórter bonito que ela reconheceu, um que sempre aparecia no jornal antes da novela.


“Seu marido é um escritor premiado, reconhecido. Ele tem dois livros traduzidos no estrangeiro”


“Ei, moço! Eu sou viúva do Manuel. O senhor sabe que história é essa de livro que todo mundo fala? Meu marido tinha algum livro, por acaso?”

“Sério? A senhora está brincando?”, diz o repórter, espantado. Esquece que fala com a viúva do morto. “Desculpe, com todo o respeito, seu marido é um escritor premiado, reconhecido. Ele tem dois livros traduzidos no estrangeiro. ‘A Outra Margem do Rio Azul’ foi indicado ao International Booker Prize desse ano.”

“Prais?”

‘Booker Prize’. É um prêmio oferecido na Inglaterra. Todo ano tem. O vencedor leva 50 mil libras pela premiação. É uma das maiores honrarias receber um prêmio desses.”

Sávio escuta junto à mãe, está meio confuso. Cabisbaixa, sem entender nada de nada, a mulher se sente fora de uma área importante da vida do marido. Como nunca soube uma coisa daquela? Livro, prêmio? Que esquisito, ela não sabia dizer se aquilo era importante, mas parece que sim, só podia ser. Tanta gente chique ali não era à toa… até o Carlinhos Moura apareceu, gente! Mas todos os dias o Manuel não saía pontualmente às seis da manhã, voltava às sete da noite, ia à contabilidade do Seu Juracy todo santo dia? Anos e anos assim. Escrever livro, que doidice é essa? Ela só sabia do escritório de segunda a sexta no horário comercial.

O repórter nota a mulher meio catatônica, mirando o vazio. Interrompe: “mas a senhora não sabia que seu marido era escritor? Ele nunca disse nada à senhora?”, inconforma-se.

“Não, nunca.”

“Mas a senhora nunca perguntou?”

“Não, eu não! Eu nem sei dessas coisas de livro, aí. Não vou muito atrás disso, não.”

“Mas a senhora já viu ele escrever num caderninho, digitar no computador?”

“Tem um computador lá em casa, sim. Ele ficava digitando. Achei que era coisa do trabalho dele, da contabilidade, né?”

“Mas ele tinha livros, lia alguma coisa?”

“Ler ele lia, sempre lia, eu achava que era mania dele. Ele juntava uma tralha assim, um monte de livro velho nojento. Ele botava tudo numas caixas que eu pedi pra ele guardar.”

“E o que ele dizia sobre os livros?”

“Ele dizia ‘tá, Nicinha, vou guardar’. Depois, ficava calado. Eu também nem perguntava mais nada, né?”

“Devia ser material de trabalho dele… a senhora nunca se interessou por nada que ele escrevia, nunca olhou nada?”

“Não. Nunca.”

“Meu Deus…”, o repórter mal acredita no que ouve. Indiferente, a mulher volta à sala, fica junto ao caixão.

Sávio dá um cutucão na mãe e aponta: “pronto, já vão enterrar.”

Tampam a abertura. Um soldado do corpo de bombeiros se aproxima e desdobra uma bandeira nacional acetinada sobre o caixão. Os flashes disparam. A pequena multidão acena, faz a última despedida.

O féretro desce por uma ruela até o túmulo. Todos muito comovidos, alguns com o livro em punho, outros junto ao peito, todos de óculos escuros. Lá embaixo, quando o caixão finalmente baixa à cova, todos aplaudem efusivamente. Dona Nice imita o gesto e aplaude fraquinho. O filho Sávio aplaude muito forte e atrasado.

Caixão depositado, os presentes dão as condolências à pequena família. Um a um vão deixando o local, lentamente.

Quando os últimos presentes sobem a ruela de volta, Sávio dá um cutucão na mãe.

“Vixe, o que foi, Sávio?”

“Mãe, que negócio é esse de livro do pai?”

“Sei lá, Sávio. Não entendo nada disso, não.”

“Mas esse prêmio que o homem do jornal falou pra senhora? Eu ouvi bem direitinho, viu? Ó, se der dinheiro mesmo, vou querer a metade.”


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 40 (16/2/2025)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Mulher pelada

Tempo de leitura: 7 minutos

Não sei o que deu na dona Lúcia que um dia foi me chamar lá em casa. Quer dizer, foi chamar minha mãe e pedir que eu fosse brincar com o Gil, filho único dela e do pai que trabalhava na Voith (o pai fazia questão de dizer que trabalhava na Voith; devia ser importante a Voith). O Gil estudava na minha escola. Não vou dizer que era um amigão, não. Mas era legalzinho, tranqüilo, o Gil.

Também a dona Lúcia era amiga da minha mãe (colega: minha mãe dizia que amigo é uma palavra muito forte e que a gente tem colega; amigos são poucos). Mas a minha mãe fazia a feira com a dona Lúcia toda quinta, então ela deixou eu ir brincar lá, rapidinho. Foi bem tranqüilo. E outra, a casa dele ficava na rua de baixo, bem perto. Lá nem passava carro direito.

Na hora eu fiquei admirado do tamanhão daquele quintal, nos fundos, porque o acesso era por um corredorzinho estreito que mal passava um Fusca. A casa do Gil ficava bem lá atrás, depois de um corredor compridão. Não era a casa principal. A casa principal era a grandona de cá, uma cor de mostarda com jardim na frente. Quem morava nela era a dona Elza, que além de velha era viúva, pelo menos todo mundo dizia isso.

A dona Elza dava um pouco de medo porque ela ficava enfiada naquela casona e quase não saía de lá. Tinha uma capelinha no jardim e ela acendia várias velas de sete dias, daquelas grossas que nunca apagam. Era esquisita. Outra coisa, ela usava calça de homem, social. Ela mandou arrumar as calças do falecido pra caber nela, acho. Outra coisa que eu me lembro dela (é meio chato de dizer, mas fazer o quê?): quando a dona Elza passava, subia um cheiro de mijo. Acho que ela fazia nas calças, coitada. O cheiro era forte, desculpa falar.

Mas a dona Elza ficava lá na casa maior. A gente ficava aqui no quintal brincando: embaixadinha, golzinho; depois, jogar bafo; depois, Super Trunfo. Nossa, o Gil pirava no Super Trunfo. O dele era aquele de caminhão, mas aqueles dos Estados Unidos tudo cromado, com pintura de fogo. Aqui no Brasil só tinha aquelas jabiracas da Mercedes, aquela da frente redonda que solta fumaceira. Os do Super Trunfo eram tudo altão, quadradão, gigante.

Eu só fingia que jogava porque sabia bulhufas de cilindrada, torque, cavalos HP não-sei-que-mais. O Gil ganhava, lógico, e isso deixava ele mais a fim de brincar daquilo. Eu achava chato. A melhor parte era soltar pipa, peixinho principalmente. Peixinho era mais legal, porque ninguém queria cortar peixinho. Lá no alto, o peixinho ganhava do pipão. Era desbicar, cortar e aparar, já era. Então ninguém tentava cortar a linha da gente. Era bem legal. Mas às vezes não tinha muito vento ou sei lá, daí o Gil não queria saber de peixinho.

A dona Lúcia pegou confiança na gente e nem ficava vigiando muito a brincadeira. Às vezes, ela saía pra fazer alguma coisa lá fora, ia no banco, no supermercado. Deixava a gente lá, brincando. Como era pertinho de casa, não tinha segredo: se me enchesse o saco brincar, eu voltava pra casa. Ficou combinado assim.

Uma vez a dona Lúcia saiu e deixou a gente com a dona Elza, a meio doida da casona. Ela falou que tudo bem, olhava a gente. Olhava nada, ela nem saía daquela casa. Naquele dia, eu lembro até hoje, a dona Elza ouvia na maior altura uma música do RPM, aquela loiras geladas vêm me consolar.


Então o Gil ficou meio esquisito, meio desconfiado. Chamou pra ir até o quarto dos pais dele.


Não, ela não tinha idade pra essas músicas, o que é isso. É que ela era meio surda, coitada, e botava o rádio no último volume no programa do Paulinho Boa Pessoa. Daí passou a música do RPM. Nossa, aquilo tocava toda hora, até enjoava.

Então o Gil ficou meio esquisito, meio desconfiado. Chamou pra ir até o quarto dos pais dele. Tinha lá uma daquelas camas com baú na cabeceira, acho que das Casas Bahia. Ele falou: “se liga nisso”. Levantou a tampa do baú, tirou travesseiros, cobertores, e mexeu lá no fundo. Tirou umas revistinhas. Eu fiquei com o coração acelerado de medo. Acho que não devia mexer com aquele negócio, não sei, parecia sujo, proibido. Ele senta na cama e começa a folhear as revistinhas, e eu ali, sem graça: o cara com a boca na mulher, a mulher com a boca no negócio do cara. O cara tinha um bigodão e parecia pilantra, mas a moça nem ligava, não sei. Nem vou falar o resto, isso-naquilo-aquilo-nisso. O Gil falava um monte de palavrão pra fingir que manjava de tudão, fingir que estava acostumado. Mentira, até parece. Aí ele ouviu um barulho lá fora e guardou tudo rapidinho no baú de novo.

Eu fiquei com medo porque achei que ia sobrar pra mim. Eu sempre achava isso. Não sei, eu tomava bronca sem motivo. Minha mãe contava pro meu pai e ele dava a surra logo pra se livrar e não perder o jornal. E se o Gil mentisse, e se ele dissesse pra mãe dele que fui eu? Mas como eu ia adivinhar que tinha aquelas revistas lá no baú? Sei lá.

Eu sei é que não quis mais brincar com o Gil. Falei pra minha mãe que não queria mais. Não contei nada daquilo pra ela, louco? Também ela nunca tocou no assunto. Morreu, passou. O que será que aconteceu lá na casa do Gil? Pensei um tempão. A gente tava de férias, nem vi ele na escola pra perguntar.

Sei que depois os pais do Gil compraram uma casa e se mudaram dali. E o segredo foi embora junto. Nem demorou muito e a dona Elza morreu também, coitada. Os filhos venderam o casarão cor de mostarda com jardim na frente, daí vieram, derrubaram tudo e fizeram outra casa enorme lá.

*      *      *

Depois de um tempo, minha mãe deixou sair na rua sozinho, brincar com os moleques. Mas eles eram meio folgados. Eu não gostava, não. Tinha um terreno baldio ali perto, bem na frente da casa do seu Ítalo. O seu Ítalo mudou do casarão depois que ficou viúvo e alugou a casa dele. Quem morava lá agora era uns uruguaios. O marido, Gualter, tinha uma Kombi e vendia ovos na feira. A casa toda fedia a ovo, eu me lembro: é que depois fui lá brincar com o filhinho deles às vezes. Mas depois falo disso. Agora eu ia brincar de aventura no terreno baldio da frente. Eu era o Indiana Jones, eu explorava a floresta perigosa. Floresta só de capim e pé de mamona, mas tudo bem.

Um dia, eu vi uns papéis rasgados lá num cantão do terreno. Fiquei curioso. Não tinha ninguém olhando. Fui ver o que era. Era revistinha rasgada de sacanagem (minha mãe falou que sacanagem é palavrão). Mas tinha um monte daquilo. E tinha umas revistas escrito International que só tinha umas loiras. Não parecia do Brasil, não, porque o peito das mulheres era da mesma cor até na ponta. Era diferente. Eu fiquei olhando, o coração acelerado. Era errado, mas sei lá, eu via. Era estranho. Aquilo me chamava.

Não contei pra ninguém. Ficava meio tonto com aquilo, meio bobo alegre. Eu nunca contava nada pra ninguém, porque todo mundo ia falar mal, dar chilique. Ninguém sabe conversar direito essas coisas. Então pra quê, né? Piorar tudo? Melhor ficar quieto.

Lá no terreno baldio eu vi as folhas rasgadas algumas vezes. Mas uma vez eu fui mexer numas folhas debaixo de um bloco quebrado. De repente uma aranha armadeira saiu correndo atrás de mim, juro por Deus. A armadeira ataca a gente, ela corre atrás. Eu saí num pinote que nem doido até a rua. Acredita que ela saiu do terreno e veio atrás de mim, a desgraçada? (Minha mãe falou que desgraçado é palavrão, não pode falar desgraçado). Daí eu peguei um pau da rua e taquei nela. Foi de longe, acho que ela não morreu, só dobrou as patas pra dentro. Fiquei na calçada esperando, até que um Chevette bege passou por cima dela. Filha da mãe.

Então depois disso eu fui brincar na casa do seu Ítalo, aquela alugada para os uruguaios. Eles tinham um molequinho, deram um velotrol pra ele e pediram para eu ir brincar lá. A casa era grande, na esquina, tinha um quintalzão gramado, um limoeiro que dava pra subir. Era até legal.


Que graça tem amarrar a mulher e abusar dela amarrada? Meu Deus. Aquilo me deixou mal, viu.


Um dia, a Raquel (a uruguaia lá) me pediu pra buscar o cigarro no criado mudo do quarto. Ela só fumava o Plaza. Só que eu não achei o maço onde ela falou e, pra não perder viagem, abri a gaveta do criado mudo pra procurar. E o que tinha lá, chuta? Revistinha de mulher pelada. Nossa, parece perseguição. Nem abri nada, mas lembro da capa: uma moça de costas, pelada, lógico. Estava ajoelhada e amarrada com cordas com uns caras em volta. Eu lembro bem disso. Que coisa. Que graça tem amarrar a mulher e abusar dela amarrada? Meu Deus. Aquilo me deixou mal, viu. A Raquel via aquele negócio? Mas pra quê?

Passou, e chegou o fim de ano. O Gualter (o uruguaio) tinha um depósito de ovos numa salinha improvisada. O cheiro ali era insuportável. Aí eu fui lá buscar não sei o que e vi um bolinho de papéis ali, preso num elástico. De longe pareceu o Super Trunfo do Gil. Eram calendários de bolso. Cheguei perto e estava virado do lado das datas, meses, tal. Quando eu virei, era tudo de mulher pelada, um monte. Eu lembro de uma coisa: vou chamar de peruca. Era cada perucona ali. Será que ele ia dar aquele calendário pra freguesia? Imagine minha mãe recebendo um daquele na feira.

Então foi assim que eu conheci mulher pelada, sem querer. Conheci nas fotos, pelo menos. Na minha casa nunca teve aqueles negócios, não que eu saiba. Ah, não mesmo. Fora que isso nunca foi assunto lá em casa, nunca, nunca, nunca. Meus pais nunca falaram disso com a gente. Mas também, de um jeito ou de outro a gente ia ficar sabendo, mesmo; eu acho que era por isso que eles não falavam. Esse aí foi o jeito que eu soube.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 40 (19/1/2025)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O ringue

Tempo de leitura: 11 minutos

1

A composição despejava as trabalhadoras, às centenas, em horário comercial. Apressadas, elas desembarcavam afoitas, com mochila ou bolsa atracada ao corpo e aglomeravam-se em frente às escadas de saída. Nos semblantes, a impressão de uma vida de suplícios para faturar algum dinheiro.

O bairro da estação final era repleto de galpões com tijolos aparentes, todos castigados pelo tempo e escurecidos pela fuligem e a poluição; construções que remontavam ao início do século passado, de tijolos ingleses, muito resistentes. Diversas fábricas funcionaram ali, onde hoje companhias de telemarketing alugavam a bom preço aqueles paredões arruinados.

Embora exibissem por fora um visual decadente e de certa forma hostil, por dentro havia tecnologia de ponta e ótima estrutura naqueles locais. Todos os que visitavam os galpões de call center diziam como fachada e entorno apenas enganavam a vista, e que bastaria entrar para conferir as modernas instalações, todas bem adaptadas sob o fortíssimo frio do ar condicionado.

Além disso, diferente das escaldantes fundições de outrora — todas então dominadas por machos da espécie —, agora o que se ouvia não era mais o martelar nas bigornas mas o tlec tlec dos teclados e o coro feminino; uma população de moças perfilava-se nas baias dispostas em fileiras enormes. Uma parte atendia aos clientes queixosos dos bancos e outra parte oferecia empréstimos a aposentados – único corte da população a manter telefone fixo em casa e a levar a sério a oferta das moças. Ainda um bom negócio, com efeito.

As atendentes provinham das rebarbas da cidade e praticamente todas eram mães, muito embora só uma ou outra fosse casada, sobretudo as crentes pentecostais. As demais tinham filho e um certo pai do meu filho de quem costumavam reclamar.

Às cinco em ponto, elas deixavam os galpões. Exaustas, partiam novamente à estação final, sempre a desabafar no caminho indignações contra as chefes perfumadas e de salto alto que iam de carro para casa. Algumas se consolavam e compravam um pequeno prêmio para coroar o dia: um pacote roliço de biscoito recheado sabor morango ou chocolate. Mastigavam o petisco no vagão e alternavam reclamações e piadas internas, disparando resíduos da massa triturada na boca, os quais choviam sobre passageiros sentados. Elas se desculpavam pela distração (ai, desculpa moço); não obstante, não se esqueciam de levar um pacote a mais ao filho que aguardava junto a avó, lá muito longe onde moravam.

Eis a rotina do velho bairro fabril, de segunda a sexta em horário comercial. Mas havia um daqueles galpões que recebia outra leva de trabalhadoras no período noturno. Não muitas, é verdade, e há certa indelicadeza em descrevê-las fisicamente; porém, faz-se necessário para o entendimento do que virá adiante, pois o padrão das fisionomias chamava muito a atenção.

Tratava-se de moças robustas e fortes, umas muito fortes, enormes: uns quadris em redoma, uns braços parrudos e troncos atarracados. Outras eram altas, com pernas compridas e cabeleira florestal. Todas com cara de poucos amigos — embora fossem amigas entre si e andassem aos pares: desembarcavam no início do anoitecer e dirigiam-se ao branco.

Branco era apelido: referiam-se à cor do único galpão deste matiz, que ficava no fim da quadra principal, o último da rua anexa à estação. Àquela hora, de noitinha, os demais galpões estavam fechados para reabrirem apenas na manhã seguinte. Não o branco, que funcionava após o expediente regular e recebia as outras trabalhadoras, daquele jeito e naquele padrão.

Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Não só pelo pouco movimento de populares mas, ora essa, eram galpões de telemarketing: se moças ali chegam com bolsas e mochilas e adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.

Do outro lado do galpão branco, oposto à entrada de pedestres por onde as moças entravam, ficava o estacionamento. Já era noite quando furgões na cor branca e sem identificação encostavam ali. Os utilitários tinham aquelas janelas apenas na frente para motorista e ajudante. Chegavam e buzinavam, apressados. O porteiro oculto na guarita fumê abria e liberava a passagem. Os veículos desciam à garagem subterrânea enquanto o enorme portão de aço se fechava, ruidoso. De novo, tudo normal: no início da noite os carros de entrega são recolhidos às firmas; alguns se atrasam devido ao trânsito e à distância de onde retornam, naturalmente.

Somente por volta da meia-noite, quando a estação final estava prestes a fechar, as moças robustas retornavam a casa. A maioria parecia se banhar ainda no galpão branco, pois o vagão vazio era inundado pela mistura dos cheiros de xampu a evaporarem das cabeças.


Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Ora, galpões de telemarketing: se moças chegam com bolsas e mochilas e ali adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.


2

O branco funcionava todas as noites, exceto aos finais de semana. Nas sextas, uma empresa terceirizada de manobristas organizava um cinturão na quadra do galpão, posicionando setas e placas indicativas em pontos estratégicos.

Então, carros de luxo encostam e são recebidos por manobristas à porta, que abrem gentilmente para damas e cavalheiros. O motorista da vez deixa a chave do bólido de um jeito desdenhoso e arrogante. Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se travasse uma conversa despretensiosa.

Lá dentro, os convidados são conduzidos aos seus lugares. Há camarotes vip para sócios e toda a disposição das cadeiras é circular e dividida em setores, e nos corredores moças longilíneas conduzem os que chegam. Por dentro, o galpão branco é uma arena. Quem olhasse de fora jamais poderia supor.

Todos acomodados, uma imponente voz feminina anuncia as lutas da noite no alto-falante. Destaque para a última, com as principais lutadoras do evento. As luzes giram pela nave escurecida. No centro e no alto, quatro telões exibem cards com as lutas da noite, os nomes e os rostos das combatentes.

No centro iluminado está o ringue em formato octogonal. Antes do match, a tela exibe o logotipo do principal patrocinador do evento, um banco simpático cujo slogan é “mudar o mundo”.

De repente, as luzes se apagam: tudo escuro. Depois, piscam frenéticas como raios multidirecionais. Em seguida, apagam-se de novo, suspense imediato. Retorna uma iluminação vermelho-sangue, e o galpão se avermelha completamente. Apaga. Depois, um facho branquíssimo de cegar surge do alto, bem ao centro do ringue. Há um garoto franzino, quase fantasmagórico sob a luz. Pesa 50 quilos no máximo e aparenta ser adolescente, uns dezesseis anos. Traja uma cuequinha e meias escolares.

A narradora anuncia as lutadoras do primeiro confronto da noite. Elas vão ao ringue. A juíza autoriza “lutem” e elas partem, giram pelo octógono. A primeira desfere um cruzado de esquerda no garoto, que não vê o golpe: vai estonteado às cordas, trança as pernas mas não cai completamente. A segunda o surpreende e desfere um murro na região do fígado antes que o garoto recobre o equilíbrio anterior. Ele tomba em posição fetal. A narradora grita o nome das lutadoras e a plateia vai junto, vibra, assobia.

O menino se ergue e hesita, quer reagir mas teme, algo o impede. Evita bater em mulher, como se a voz da mãe ressurgisse na mente, um eco distante. Decide apenas se proteger com os antebraços. A primeira lutadora puxa seu bracinho franzino e o traz ao centro do ringue. A segunda se atraca a seu pescoço e o sufoca contra os enormes seios.

“Assédio! Assédio!”, grita a plateia, como se pedisse pelo golpe a seguir. Uma lutadora vem pelas costas do rapazinho e lhe desfere um chute de coturno, em cheio. Suas costas claras exibem a marca da sola à luz. Cai de frente. Tenta se erguer. A outra lutadora senta em suas costas e diverte-se, domina-o pelas orelhas. A juíza a repreende, manda se afastar. O garoto tomba no tatame, rendido. A juíza conta até dez e a primeira luta está encerrada.

“O homem perdeu! O homem perdeu!”, grita a plateia. Soa o gongo.


Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se quisesse travar uma conversa alegre e despretensiosa.


3

Segunda luta da noite. São duas capoeiristas de ossatura robusta, altas e magras. Usam um traje branquíssimo composto de calça de algodão cru e camiseta cropped com cortes rústicos. Uma corda preta ata a calça à cintura. As duas se assemelham a uma dupla de percussionistas de axé music.

No centro do octógono empurram um rapazinho de seus dezessete anos, ruivinho, daqueles que existem graças à variabilidade genética nacional. O jovem parece apreensivo na cuequinha de helanca com abertura frontal, peça única que trajava.

A locutora diz os nomes e anuncia o início da luta, faz efeito com a voz. A plateia vibra, grita, assobia alto e prolongado. Embaixo do ringue, um sujeito alto e corpulento com cor de azeviche começa a planger um berimbau com chocalho, ao que imediatamente as duas, depois de um cumprimento de santo, começam a gingar, perna pra lá, braço pra cá, vem e vai.

Elas dançam em sincronia em volta do garoto. Um pé passa rente ao rosto do menino, golpe de ar que o assusta. Se esquiva por reflexo: desvia-se de um lado e vem susto de outro, passa perto; a segunda capoeirista é ágil e ele desvia, se atrapalha. As duas giram e gingam, circundam, confundem, o impedem de sair da roda. Ele esboça um passinho e leva uma rasteira humilhante. “Caiu de bunda!”, a locutora descreve, para delírio da plateia.

O garoto se levanta e assume uma frágil posição de defesa, arqueando as costas e levantando os punhos, como nos filmes. Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino. Ele urra surdo e vai para trás em direção às cordas. O berimbau continua, mais forte e mais rápido, como a ensejar mais ação e movimento.

A segunda sacoleja a cabeleira e dá três estrelas em sequência; na última, baixa com um dos pés a minúscula peça de roupa do garoto que, envergonhado, encobre a genitália com os antebraços. A primeira faz um símbolo com o indicador e o polegar da mão direita, como se indicasse algo pequeno. A plateia gargalha. O garoto vai ao canto do ringue e se encolhe, como a tentar se esconder e esquecer que está ali.

A dupla recebe uma punição pelo golpe proibido e está encerrada a segunda disputa da noite. São desclassificadas. Humilhado, o garoto não se mexe. Permanece agachado, quando um braço imenso o puxa com força desproporcional pelas pernas e o retira por baixo das cordas. O menino berra um ai de dor e a plateia ganha um bônus: gargalha com alguma piada da locutora, um chiste rápido que mal se pôde entender. Talvez ela não devesse dizer aquilo, mas não se conteve.

No fim, outro homem perde. Soa o gongo.


Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino.


4

Na principal luta da noite, as duas lutadoras retiram o manto brilhante e acetinado que as envolve: são Lady B e Mel Massa. Elas sobem ao ringue num pulo e se penduram nos postes: exibem fluorescentes collants como num telecatch: não se sabe a arte marcial que cada uma domina, mas, pelo porte, é fácil presumir que qualquer golpe viria forte e contundente.

Desta vez, os seguranças corpulentos jogam dois garotos ao invés de um só, mesmo padrão: brancos e magrelos, de cuequinha. Parecem meninos de condomínio. A narradora faz questão de anunciar a maioridade dos dois, embora fosse difícil concluir isso à mera olhada. Mas a voz no alto-falante diz aquilo em tom sério e preventivo, como um disclaimer, talvez para não melindrar o sério banco patrocinador cuja marca era estampada nos telões.

Lady B e Mel Massa percorrem o ringue para serem vistas por todos os ângulos. São aplaudidas, aclamadas, ovacionadas. Elas inclinam a cabeça em agradecimento, estalam o pescoço, esticam os braços: profissionais. A luta promete, e elas sabiam que o público aguardava por elas, afinal. Soa o gongo, a juíza diz “lutem” e Lady B dá um salto rápido: atinge um dos rapazes com os dois pés no alto, entre o queixo e o pescoço. Com a cabeça jogada para trás o menino cai sobre o outro enquanto Mel Massa toma distância e se atira por cima de ambos num estrondo. A plateia delira, urra, assobia. O telão central exibe um replay do golpe em câmera lenta. Sincronia perfeita das duas.

O outro garoto parece mais ousado e se ergue. Gira um pouco pelo tatame como se dissesse “não será tão fácil”. Lady B apenas anda e o espreita. Sabe que ele não terá escapatória. O show esquenta. Enquanto isso, Mel Massa aplica uma gravata no menino de cabelo liso, e as veias de sua testa dilatam-se: quando fecha os olhos desacordado, ela o larga ao chão como um pacote inútil. A juíza paralisa e conta até dez. Sem chances. O jovem é puxado pelo segurança, rápido.

A plateia vaia o garoto vencido e fica em êxtase, catártica. A luta recomeça. As duas caçam o rapaz remanescente, que tenta uma ginga ridícula. Sua imagem naquela cuequinha frouxa lembra uma comédia pastelão.

Lady B consegue puxar o elástico da cuequinha, e o rapaz, rápido, recolhe-se por reflexo, esconde a nudez: ela então pula de costas e lhe atinge a têmpora direita com o cotovelo para em seguida Mel Massa cair sobre ele como um piano. Rápido esta sai e gira pelo octógono, recebendo a aclamação da plateia. Lady B nota estar em baixa no ranking de golpes e que a plateia não a aplaude muito, então decide girar com a perna esquerda e acertar com o calcanhar a mandíbula do jovem. Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.

Embora em dupla, as duas lutadoras não pareciam muito unidas como as anteriores. Ao contrário, cada uma queria superar a outra e se consagrar sozinha perante a plateia. Então, vendo que Lady B consegue a façanha de arrancar um dente ao garoto, Mel Massa gira em torno de si mesma como um pião e aplica um chute certeiro na tíbia esquerda do rapaz. Ele tomba de imediato. Ela percorre o octógono como quem pergunta “e então?”, e recebe assobios e gritos eufóricos.

O jovem está caído. A juíza hesita, não vai contar. A plateia silencia por um instante. A câmera de cima mostra o garoto estirado com a perna de um modo estranho, invertida. As duas ainda giram pelo ringue em direções opostas e recebem alguma aclamação, embora mais tímida. Elas não se olham nem se cumprimentam.

Finalmente a juíza se aproxima e faz a contagem. A tela exibe em letras garrafais “homem derrotado!” e a música sobe, junto com os raios de luz.

O segurança puxa o rapazinho com toda a força por baixo da corda e este urra com dores excruciantes. O som alto não permite ouvi-lo, entretanto. Pendurado às costas do segurança, a tíbia esquerda pende e balança, mole. O garoto sai aos berros.


Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.


5

Luta terminada, as duas lutadoras recebem o cinturão. São aclamadas, mas em momento algum se olham ou se falam. Cada uma está ali por si mesma.

Quando descem do ringue, um sujeito da plateia surge repentinamente e aplica um soco às costas da Mel Massa, que se desequilibra e cai. Rápido o segurança cor de azeviche o arrasta e o leva embora para local desconhecido, apertando os braços enormes contra seu pescoço. Uns passos à frente e o sujeito já parece inconsciente.

Lady B ampara Mel Massa, pergunta se está bem. Ela diz que sim, está; mas Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.

“Quero a identidade desse cara, pega aí na carteira dele”, ordena ao segurança corpulento. Ela tira o smartphone do macacão e o utiliza para fotografar a cara do agressor. Enquanto isso, vídeos filmados pelos presentes chegam via aplicativo, documentando a súbita agressão a Mel Massa.


Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.


6

Na semana seguinte, chegam as trabalhadoras ao galpão branco, à noitinha, após o horário comercial. Estão trajadas como qualquer atendente de call center, mas vieram ali para treinar. A semana transcorre normalmente e sem surpresas.

Na sexta-feira, dia da luta semanal, chega um furgão ao galpão. Dele desembarcam motorista e segurança. Do interior saem duas moças longilíneas em trajes sumários, loiras e lindas, que faziam o papel de hostess nos dias de luta. Após elas, desembarcam uns adolescentes uniformizados de colégio. Um deles pergunta “onde é a balada”. Outro, mais afoito, passa a mão no cabelo da segunda modelo e a elogia de “muito gata”. As duas eram iscas.

As beldades os conduzem a uma salinha escura cheirando a mofo e com luz mortiça. Os seguranças os obrigam a ficar “só de cueca”, dizem. Os garotos ainda riem, acham graça. Imaginam alguma aventura amorosa dali a pouco, a primeira da vida. Chegam as lutadoras para o aquecimento e pulam corda no tatame. Enquanto o evento não inicia, os garotos permanecem reclusos, vigiados pelos seguranças. As loirinhas não aparecem.

Lady B e Mel Massa não vieram lutar hoje. Ambas foram chamadas à delegacia da mulher para reconhecer o agressor capturado pela polícia. O vídeo da agressão foi exibido à delegada que, indignada, ordenou a prisão do sujeito em flagrante. Emocionada, Lady B abraça Mel Massa. Aos prantos, ambas comemoram a prisão do homem violento.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 29 (1/9/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Os meninos
consertados

Reportagem exclusiva da revista New Science, edição de novembro de 2048

Tempo de leitura: 7 minutos

QUANDO O GENE DO MACHISMO foi identificado pela dupla de cientistas Meredith Mayer e Sheronda James-Jones, a comunidade internacional vibrou com aquilo que a presidente americana Angela Streep classificou como “a libertação da humanidade”.

Isso porque, graças ao mapeamento da linha machista presente no DNA dos humanos-com-falo, seres popularmente chamado de homens, as pesquisadoras conseguiram remover com sucesso, já no colo do útero e na fase embrionária, o que se convencionou chamar de a linha indesejada.

A linha indesejada é justamente aquela que a dupla Mayer-Jones identificou com elegância e demonstrou ser possível removê-la do código genético, de modo simples e eficaz, como quem remove uma linha conflitante num código-fonte de um software ou aplicativo digital.

“Acho que consertamos um enorme ‘bug de programação’ dos humanos, quem sabe o maior deles”, disse uma emocionada doutora Mayer no discurso de premiação. Ela se referia ao fato de que, a partir da descoberta, em pouco mais de meia década todos os meninos já viriam de fábrica com a linha defeituosa ausente, o que desde então tem sido apontado pelas lideranças globais como a maior conquista da humanidade desde a clonagem da ovelha Dolly, no século passado.

A descoberta chamou a atenção da comunidade científica mundo afora, e gerou repercussão não só nos meios especializados como motivou a comissão do Nobel a laurear as geneticistas com distinção alvissareira. Após uma intensa sessão de aplausos efusivos, a dupla foi ovacionada como popstars na cerimônia de entrega do prêmio.

As primeiras correções genéticas – sintetizadas na forma de vacina de mRNA 7.0 e adquirida em massa pelos principais governos do mundo – causaram alvoroço. A procura foi enorme. A imunização em massa foi administrada em cada canto do país, de metrópoles a vilarejos, de forma ampla e gratuita. Propagandas televisivas com ídolos e influencers da internet de cada país convidavam os adolescentes e crianças a se vacinarem nas escolas, shopping centers e parques da cidade.

A ideia era imunizar cada jovem contra o “gene ruim”, as propagandas diziam, antes que a geração chegasse à vida sexual ativa. Depois, devidamente imunizada, todos poderiam ter filhas e especialmente filhos totalmente isentos de machismo na dupla hélice do código genético.

A vacinação mundo afora foi um sucesso, uma verdadeira revolução. Como previsto, em pouco tempo os resultados se mostraram favoráveis: as taxas de violência contra as mulheres caíram substantivamente. Em alguns locais, houve mais queixas de violência de mulher contra mulher do que de homem contra mulher. Nem mesmo a típica violência de homem contra homem houve como antes, exceto nos cortes geracionais renitentes e não-imunizados, a maioria a caminho da terceira idade. Mas as taxas negativas estacionaram na mediana inferior, o que levou a OMS a declarar meses atrás o machismo tecnicamente erradicado do Ocidente.

Efeito colateral
Isso foi há vinte anos. Tudo parecia ótimo desde a descoberta, até que os primeiros nascituros sem a linha indesejada atingiram a puberdade. Nessa fase, observou-se certas peculiaridades que os novos espécimes machos da humanidade, imunizados desde a gestação, traziam em relação aos equivalentes defeituosos do passado.

Os primeiros imunizados e reprogramados — de diferentes partes do globo e de variadas etnias — foram observados com perícia pela competente dupla Mayer-Jones nos laboratórios do MIT, os mais avançados do mundo. Nos testes, observou-se alguns efeitos colaterais leves, considerados de baixo risco: queda da taxa de hormônio do crescimento na glândula pituitária e ausência de pelos corporais como os espécimes de antigamente.

Além disso, a textura da epiderme e a densidade das fibras musculares dos meninos pareciam muito semelhantes ao das meninas, mais suave e adiposa. A contagem de cabelos no couro cabeludo também equivalia ao delas. Antes, o número de bulbos capilares era tradicionalmente menor nos meninos.

Os testes preliminares não apresentavam nada de muito crítico segundo as premiadas com o Nobel. Diretoras de corporações e chefas de governo, no entanto, causaram certa pressão e desconforto às geneticistas, preocupadas respectivamente com a produtividade em funções específicas destinadas aos machos (trabalhos pesados ou com risco iminente de morte). As governantes diziam não dispor de verbas públicas para destinar a algo como “saúde do homem”, como há meio século se ocupa com a saúde da mulher, termo consagrado, assentado e tradicional nas resoluções da OMS.

Conforme os primeiros anos passaram, observou-se entre os garotos imunizados e reprogramados uma retração fálica atípica, algo como um minúsculo cisto injetado logo abaixo do púbis, sem possibilidade de estender-se. O calo foi apelidado pela medicina de segundo-umbigo, algo como uma protuberância discretamente saliente. Nos testes, as vesículas seminais dos garotos não produziam qualquer substância de tipo viscosa ou seminal.

Testes de indução erógena foram realizados. Após preencherem um questionário de múltipla escolha, os garotos consertados foram submetidos a imagens de meninas atraentes em visores de realidade aumentada iVision, com graus variados de insinuação sexual até a pornografia explícita. No entanto, eles não esboçavam reação. Alguns bocejavam. No monitor, o mapa de calor não indicava mais que manchas verdes e azuis na região íntima dos meninos, o que indicava ausência de circulação sanguínea, e portanto, zero estimulação.

Questionada a respeito, doutora Mayer declarou ser aquilo algo a se observar e não deu maiores detalhes; segundo ela, os garotos do laboratório contavam de quinze anos a dezoito anos e, tudo indicava, suas taxas hormonais chegariam ao ápice entre os vinte e vinte e cinco; era esperar, portanto. Já a doutora James-Jones divergiu da colega: disse que, aos quinze anos, os garotos deviam manifestar certas inclinações psicológicas e psicomotoras que os levassem à atração sexual por meninas, “o que, no limite, garantirá a existência delas no futuro”, declarou. “Sem reprodução humana, não haverá mais meninas. A neo-humanidade estará comprometida”.

Outro lado
Dias depois, nossa reportagem conversou com doutora Mayer em Berna, na Suíça. A cientista é a estrela principal do Global Genetics Summit desse ano, encontro anual de geneticistas promovido pela Organização Mundial da Saúde. Perguntada a respeito da posição da dra. Jones, ela respondeu à nossa reportagem.

“Minha colega de Nobel exagera. Claro, existe a possibilidade de não haver mais intercurso heterossexual como nos tempos arcaicos e patriarcais. No entanto, a espécie humana e sobretudo as meninas do futuro não correm risco, a meu ver. Veja, estou aqui em Berna para acompanhar, entre outras inovações do próximo quinquênio, a reprodução assexuada feminina que hoje é apenas proibitiva por uma questão econômica. Mas os governos vão entrar de cabeça na questão nos próximos meses, e o Banco Mundial irá subsidiar o direito autofecundante das mulheres mundo afora. A autofecundação humana estará disponível a todas elas em muito breve.”

Doutora Mayer se mostra otimista, como de praxe. Embora, no caso dos meninos reprogramados, soube-se que os dois primeiros consertados no DNA faleceram no mês passado, em plena adolescência: um de ataque cardíaco fulminante e outro por leucemia repentina, sem qualquer histórico familiar ou fator de complicação anterior.

O fato ligou um alerta nos críticos, especialmente nos grupos gays conservadores. Nos países de Primeiro Mundo, mulheres com posses já compram, com ágio e no mercado negro, sêmens de machos arcaicos congelados. Há relatos de fazendas seminais (seminal farms) na Holanda, Bélgica e na própria Suíça onde dra. Mayer está a palestrar. Cada frasco congelado custa uma fábula estimada em milhões de dólares. O artigo ficou raríssimo.

Alguns discutem importar espécimes da África profunda ou da Índia, mas especialistas temem lidar com uma criatura desconhecida da humanidade moderna, há décadas livre do macho arcaico. “As consequências seriam imprevisíveis”, disse uma alarmada dra. Jones, “você pode ver um leão nas fotos e nos vídeos da TV e gostar, mas ninguém quer um leão no carpete da sala”, declarou.

O fato é que os dois primeiros jovens consertados morreram, e há relatos de outros meninos consertados morrendo ao redor do mundo, todos por causas semelhantes. Em certos países, alguns deles passaram a relacionar-se afetivamente entre si, assexuadamente. A repetir o padrão, a reprodução humana inviabiliza-se. Todos se afastam naturalmente das meninas do ponto de vista afetivo. Providenciais vacinas de reversão-homo têm sido administradas nas escolas para tentar mitigar o efeito, em caráter de urgência. Por enquanto, sem sucesso.

Observação de campo
Nossa reportagem foi a Palm Lake, em New Jersey, vilarejo pioneiro na imunização e correção da linha defeituosa nos meninos. Entramos num colégio público famoso por ter todos os alunos imunizados desde as primeiras campanhas. Observamos de longe o comportamento dos alunos, todos do ensino médio — adolescentes, e portanto, na fase do flerte e da paquera — e conversamos com alguns daqueles jovens.

As meninas dizem não se atrair pelos garotos consertados, embora reconheçam a segurança de estar entre amigas mesmo na presença dos meninos. Todos somos amigas, disseram. “Amigas?”, perguntamos a uma aluna. “Sim”, ela respondeu, “lidamos com amigas e amigas um pouco diferentes, nada além disso”. A escola foi emblemática no passado, com histórico de muita violência simbólica de gênero. As manchetes estamparam os jornais. Hoje, a diferença no ambiente se mostra gritante. Ou melhor, silenciante, isto é, sem grito algum.

Os garotos consertados são reservados. Ficam pelos cantos, em pequenas turmas. Alguns permanecem totalmente isolados, e todos parecem tímidos e pacatos, até um pouco amedrontados. Ao perceberem nossa presença, saem do local e se afastam. Parecem evitar uma abordagem. Numa roda, em meio a meninas vimos um menino consertado, cujo longos cabelos loiros elas alisavam e encaracolavam com os dedos, aos risos. Colocaram o garoto no meio da turma e o tratavam como se estivessem num salão de beleza, fazendo comentários a respeito de hidratações e shampoos que dão brilho capilar.

Enquanto isso, relatórios independentes dão conta de que a mortalidade masculina jovem anda numa proporção de 39:1 em relação a meninas. A prosseguir neste nível, estima-se que em duas décadas não haja mais meninos nos países imunizados.

Doutora Mayer atenua: “acho improvável. Mas digamos que aconteça, no limite? Fariam falta? Sempre digo, aquelas que quiserem podem consultar a internet e as bibliotecas e ver gravuras de quando homens arcaicos caminhavam sobre a terra. E eu diria a elas, se estivesse por perto: vocês estão bem e em segurança porque estão sem eles.”

De volta ao colégio secundário de Palm Lake, nossa reportagem notou como algumas meninas tem raspado o cabelo e imitado o visual de homens calvos do passado, uma moda propagada via TikTok. “Quero ser o Jason Statham”, disse uma delas, sorrindo. “Vejo os filmes dele e pareço com ele agora, não pareço?”

Não parece: a reportagem ia responder, quando outra menina puxa o rosto de nossa Jason Statham a si e a beija nos lábios: “está igualzinha, meu bem. Mas livre do machismo”. A turma toda gargalhou.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 25 (7/7/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O gordinho
do videogame

Tempo de leitura: 6 minutos

Na rua tinha a turma e tinha o gordinho do videogame. O pessoal falava que a mãe dele era gerente de banco e acho que era a única mulher da vizinhança que trabalhava fora. Nossas mães eram só mães mesmo, e isso não era pouca coisa não.

Mas a mãe do gordinho do videogame era a única que trabalhava fora e saía de carro para trabalhar, um carro novinho e grandão igual ao do Antonio Fagundes na novela. Quase ninguém tinha carro na rua. O pai do Binho tinha um Passat cor de pamonha que derramava óleo e o pai do Zóio tinha uma Belina que parecia abóbora descascada. Só eles tinham carro. Mas a gente nem ligava pra isso, a gente nem saía muito do bairro. Tudo era pertinho: a escola era pertinho, o mercado era pertinho, a feira, a padaria, a banca de revista, o campinho. Tudo pertinho. A gente nem pensava em carro.

Acho que a mãe do gordinho não deixava ele sair na rua pra não se misturar com a gente. Mas a gente não era moleque de rua não, a gente só brincava na rua depois da escola. Eu nunca faltava na escola e só tirava nota azul. Eu até gostava de estudar, e também meu pai que trabalhava na fábrica de geladeira dizia que, se eu repetisse de ano, tomava uma surra.

Uma vez eu vi no comercial que perto do Natal a gente podia colocar uns bilhetes na camisa do pai escrito assim, “não esqueça minha Caloi”, mas só se passasse de ano. Meu pai falou que ele trabalhava muito e que estudar era nossa obrigação, que Caloi o quê. Daí eu disse que o Fábio — que era meio bacana igual o gordinho do videogame mas brincava com a gente — o Fábio ganhou uma Caloi Cross do pai dele. Só que depois que ele ganhou, não brincou mais com a gente: só dava pinote na descida e empinava a bicicleta lá no final da rua. Acho que ele corria pra ninguém chegar perto e pedir pra andar.

*      *      *

Um dia, a mãe do gordinho do videogame começou a falar com um ou outro menino da turma. Sei lá, acho que ela queria testar quem falava o melhor oi, fosse mais educado: quem falasse o oi mais educado não ia ser moleque de rua.

Acho que venci o concurso de oi educado, porque a mãe do gordinho foi falar com a minha mãe depois — que foi atender o portão secando as mãos cheirando a cebola no avental — e a mulher perguntou se eu podia ir lá na casa dela brincar com o gordinho do videogame: “ele tem um videogame”, ela disse.

Eu já conhecia videogame, ué. Queria o Atari que vendia no Mappin, mas meu pai disse que era caro e queimava a televisão. Quando meu pai dizia não, eu nem insistia mais. Porque birra ele acertava na cintada, não tinha frescura. Quando ele dizia não, aquilo sumia da minha cabeça, puf, nem quero mais. Foi assim com o Atari.

Então minha mãe me levou no outro dia pra brincar com o gordinho do videogame na casa dele. Ó, eu não gostava daquele moleque, não queria ir lá. Falei pra minha mãe e ela me torceu um beliscão, “fica quieto, se comporta”. Então fui brincar com aquele moleque. Bosta, viu.

Sentei no sofá que quase me engole de tão mole, eu não achava jeito sentar naquilo. No começo, o gordinho parecia meio legal. Mostrou o castelo de Grayskull todo completo dele e depois a coleção do Comandos em Ação. Eu sabia, via no comercial. Caramba, ele tinha tudo que passava no comercial. Eu via aquilo tudo afundado no sofá, daí ele pegava cada bonequinho do He-Man e me explicava o nome, como se eu não soubesse. Bobão. Eu assistia o He-Man todo dia, vi todos os episódios até repetir tudo de novo, claro que eu sabia tudo. Ele até confundiu o Ciclope com o Fera. Eu nunca ia confundir isso.

Todo brinquedo que ele me mostrava eu falava “legal”. Ele nem deixava eu pegar nenhum direito, fora que eu fiquei com medo porque minha mãe avisou “não mexe em nada lá, viu?”. Quem disse que eu ia mexer? Aquela casa parecia uma loja, meu pai não deixava a gente ficar mexendo em brinquedo na loja. Depois se quebrasse ele tinha que pagar.

Depois o gordinho falou “fica aí” e foi buscar alguma coisa na geladeira bem grandona da cozinha. Pegou uma garrafinha de vidro com Toddy lá, não sei o que era, meio leite meio sorvete. Ficou tomando. Quando acabou, ele me chamou para o quarto onde ficava o videogame. Engraçado, ele tinha uma televisão só pra videogame? Eu achava que ninguém tinha outra televisão em casa, só podia ter uma. Lá em casa só tinha uma Sharp, colorida. A gente assistia de dia, a mãe de tarde e o pai de noite. Mas o gordinho tinha um Atari com dois controles e uma televisão só pra ele! Muito boyzinho…

Daí ele aperta aqui aperta ali e liga o negócio. Pega um controle e diz que o outro tá quebrado, “essa droga”. Também, ele puxava a alavanquinha parecendo que tinha raiva, tinha pressa. Lembro do joguinho que apareceu na tela, Homem-Aranha: o Homem-Aranha tinha que subir no prédio sem cair. Bem legal, viu.

Aí entendi porque o gordinho não tinha amigo. Ele falou “eu sei jogar, quer ver, duvida? Olha o que eu faço, ó, ó.” Eu nem falava nada. Até quis jogar um pouco, me chamaram, né? Teve uma hora que ele cansou, daí o videogame parou, a tela ficou preta. Aí ele tirava o cartucho e enfiava de novo com raiva. Nem era meu videogame e eu tinha medo que estragasse. Se fosse lá em casa, eu já tinha levado uma chinelada.

Daí o negócio funcionou novo, e ele todo suado falou “ô, quer jogar aí?”, daí eu falei “quero”. Eu nunca tinha jogado, nem sabia segurar o controle direito. Mas mexi com calma, devagarzinho, e consegui. Deu certinho: o jogo começou e eu fui mexendo devagar a alavanquinha, depois apertava o botãozinho vermelho, mexia, girava a alavanquinha… o Homem-Aranha começou a fazer uns movimentos diferentes, bem legal. O gordinho não gostou, tomou o controle com tudo da minha mão e disse “sai, você não sabe jogar”, aí ele tentou fazer aquele negócio que eu fiz e não conseguiu. Ele tentou várias vezes, aí deu um socão na televisão e disse “esse negócio quebrou, acho que foi você, né” e eu não entendi nada mas fiquei com medo, será que eu fiz alguma coisa? Se minha mãe ficasse sabendo e contasse pro meu pai, eu ia tomar uma surra.

Depois a moça empregada chamou a gente pra almoçar e eu não consegui comer de tanto medo. Também a comida era diferente e muito ruim, não sei o que era aquilo. Eu queria arroz, feijão, bife e batata-frita que minha mãe fazia. Aquilo ela um negócio verde enrolado que eu quase vomitei.

Daí o gordinho falou “vamos jogar bola lá fora”, aí a gente foi pro quintal dele. Eu só jogava bola na rua e no campinho, jogar no quintalzinho era ruim porque não tinha espaço. Mas nessa brincadeira eu era melhor, daí falei “então vamos fazer um golzinho aqui, ó” e coloquei uma trave de vasos lá. Ah, eu dibrava o gordinho e ele suava com aquela bochecha toda rosa, aquele cabelo caindo na testa. Botei ele de bobinho e fazia um monte de gol e ele ficou com tanta raiva que puxou minha camiseta, quase rasgou. Depois ele falou “foi você, foi você” e eu fiquei com medo de novo. A camiseta estragou, já era, minha mãe vai me bater.

*      *      *

A campainha tocou e era minha mãe. Ela só olha com cara feia pra minha camiseta e não fala nada. Ia sobrar pra mim, duvida? Ela fala um negócio com a moça empregada e me leva pra casa. Fiquei esperando a bronca, a surra, não sei. Não aconteceu nada, ainda bem.

Na outra semana, a mãe do gordinho veio falar com minha mãe de novo. Achei que o gordinho me dedou, aquele cuzão (não pode palavrão, limpa essa boca). Não foi nada, ela pediu pra ir lá brincar de novo. Minha mãe disse não, não ia dar não. Então não fui naquele dia e não fui lá nunca mais.

*      *      *

Sei lá, por isso nunca gostei muito de videogame. Depois do Atari veio o Master System, depois veio o Mega Drive, veio o Mini Game. Nem pedi nenhum pro meu pai. Também, ele me deu uma bola igual a da Copa e uma camisa do Brasil do camelô. Depois do jogo, eu jogava bola na frente de casa, eu era o Zico e o Careca às vezes.

Depois eu comecei a gostar de gibi e comecei a desenhar tipo o desenho do gibi. Eu gostava de desenhar e gostei tanto de ler gibi que nem quis saber mais de videogame. Agora eu era o John Byrne, o George Pérez e o Frank Miller.

Um dia, quando minha mãe me deixou andar sozinho no bairro, fiz questão de passar na rua do gordinho do videogame, só pra ver. Nossa… o sobradão parecia abandonado, a pintura descascando, o portão enferrujando. A casa tinha uma placa de “aluga-se” toda gasta, torta.

Eu acho que a mãe gerente de banco não morava ali faz tempo. Ah, o nome do gordinho era Jonathan, viu. O pai dele nem sei, nunca vi.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 21 (12/5/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Samuel,
nobre Samuel

Tempo de leitura: 6 minutos

Nunca fui amigo de Samuel Ribeiro, embora quisesse sê-lo no início, quando o conheci. Acompanhei seus primeiros passos nas letras por alguns anos, quando o lia nos idos de dois mil e poucos num blogue. Aliás, lamento minha nesciência — defeito do qual o Aquinate diz, com todas as letras, isentar do inferno e da perdição seu portador — e me sinto aliviado, embora um pouco constrangido. Explico: é que apesar de gostar um bocado dos escritos de Samuel à época, jamais imaginei ser ele quem era. Samuel é rebento do pai Affonso, o grande jurista e escritor Affonso Ribeiro Albuquerque, nobre, descendente direto dos barões de São Paulo de Piratininga e membro emérito da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a cadeira de número dezenove e amicíssimo de dona Lygia Fagundes Telles.

O mundo é pequeno, e meu conhecimento deveras menor: quem diria que o jovem Samuel Ribeiro tinha linhagem e seguia a tradição familiar das belas letras – embora, devo dizer em seu caso, não tão belas; diria perspicazes. Sim, pois apesar de Samuel mostrar inegável verve e picardia, e apesar de gostar um tanto além da conta da iconoclastia a ilustres, bem, eu não podia afirmar assim, com a mão na consciência, que o jovem fosse lá muito brilhante na escrita. Não como o pai, ao menos. Não, não. Mas mostrava wit, sem dúvida, talvez como talentoso jornalista. Nada que o desabone: jornalistas às vezes tornam-se homens de letras, Euclides da Cunha não me deixa mentir. De sorte que era deixar Samuel a cargo do tempo. Estava jovem ainda, como eu, seu fã; fã em termos, sem ardor; fã um pouquinho.

Ora, o tempo acomete a todos, a juventude inclusive. E eu, levado por mil circunstâncias as quais seria enfadonho elencar, afastei-me dos textos de Samuel por uns tempos. Vicissitudes. Anos depois, quando acesso o blogue novamente, vejo que está fora do ar. Pena: passados alguns anos, queria saber em que pé andava a formação literária de nosso jovem prodígio, em que pese naquele tempo próximo passado eu já ter descoberto sua origem nobiliárquica, soube ser filho de quem era.

Deixei estar, paciência. A vida e seus desencontros.

Então, certo dia, fiquei feliz ao tomar conhecimento de que Samuel Ribeiro saiu de seu blogue amador para um grande portal, o maior do país: surpreso, constato que o talento que eu identificara lá no início não foi apenas senso de desbravador, de olheiro. Mais alguém lia Samuel, tudo indica; alguém importante. Sim, e que bom para ele. O bloguezinho rendeu frutos…

Volto a lê-lo, agora no grande portal da internet. Noto que o tempo fê-lo adquirir alguma gravidade, olho sua expressão séria na foto preto e branca que o identifica. Abaixo da assinatura, consta mestre nalguma coisa, de modo que ele avançou também na vida acadêmica. Não sabia do mestrado. Segue uma carreira bem trilhada o jovem Samuel, agora não tão jovem: anda aí pelos trinta e uns e está casado. Ocupa um espaço merecido, suponho, em que pesem a fidalguia e o renome. Repenso, não fui feliz na colocação: a malícia quer insinuar contatos paternos a pessoas certas, algo que tornasse a trajetória de Samuel algo mais fácil. Maldade. Era ler Samuel e ver sua argúcia ainda ali, patente em cada sarcasmo, em cada ironia; não fina ou machadiana, mas ironia ainda assim, sem dúvida.

Firme na grande mídia, Samuel trocou a perspicácia do início por outro tom, bem-pensante e fundamentado: escreve como quem se profissionalizou e absorveu as sensatezes recomendadas e as vertia agora ao texto. Jamais se opunha aos grandes consensos, mas os conciliava com compreensão de jovem esclarecido, feito um irmão mais velho que explica as decisões do pai ao caçula rebelde. De todo modo, Samuel concordava: rodeava e rodeava, mas sempre concordava. Jamais arriscava uma originalidade, um nome incomum, um atrevimento leve de quem bebe de outras fontes. Em seus artigos, transforma uma prevenção temerosa em esperta manutenção da carreira: arroubos nunca, jamais, sob pena de chocar o respeitável público que agora paga para lê-lo. De sorte que ele vertia o latim sempre com os pés no chão e sem jamais elevar o espírito.

*      *      *

Quanto a mim, a milhas da fama e sem qualquer nesga de fidalguia, busquei na literatura que admirava e na contemplação das artes que me eram acessíveis aquilo que me livrasse da média de cafezinho de escritório. Achei algo que me mostrou algum escape para além do ramerrão corporativo, das ordens sem justificativa dadas a meros técnicos como eu.

Não fosse a literatura — pela qual me apaixonei como se a mulher da minha vida — viveria a mesma vidinha besta de cidadão comportado e bem criado pela família operária: iniciaria e terminaria os dias (semanas, meses, anos, décadas) do mesmo jeito: trabalha, cansa, descansa, trabalha, cansa, descansa. Tudo isso no mais insignificante anonimato, na mais miserável irrelevância.

Não que eu buscasse o arrivismo; como poderia, sem nem estar nos salões? Só queria um espírito mais cultivado por dentro e uns meios de expressão por fora. Contudo, nem mesmo isso é fácil como se supõe (se alguém supusesse; ninguém supõe nada que envolva literatura referindo-se a técnicos; não há tal mistura de quesitos na média classe-média.)

Então penso o quão bem faz um sobrenome. Ora, ninguém negue, facilita muito. Digam logo inveja, não importa; mas se tivesse a linhagem de um Samuel Ribeiro, se como ele fluísse a nobreza nas veias, certamente não me faltariam canais para verter os vislumbres a que chegava ao ler o filósofo num trem ou o romancista num ônibus.

Samuel podia isso e muito mais. Ainda pode e, no entanto, nunca demonstrou um enlevo, um único que fosse. Nada o consegue surpreender, nada o encanta, nada o fascina. Agora em áudio e vídeo, suas falas sempre rastejam no pedestre esclarecido, no banal bem alimentado que se sabe especial, no fundo; jamais cita o poema belo, o trecho sublime, como se não os houvesse (ou soubesse).

Quando perguntado, autores de primeira grandeza descem à normalidade de um zé-das-couves em sua boca, exceto se o consenso instruir o contrário. Tudo lhe parece trivial e perfeitamente ignorável a princípio, tudo, tudo. O meu ótimo é apenas o passável dele e o meu excelso apenas seu razoável. Nada merece a admiração de Samuel, na melhor das hipóteses um reconhecimentozinho, quiçá uma concessão – ele jamais passa da oficialidade uniforme e da opinião de carimbo.

*      *      *

Não acho que eu seja o exato oposto de Samuel, mas estou paralelo a ele. Não nos oporíamos frontalmente, apenas nos separamos na bifurcação das paixões: seguimos diferentes trilhas do destino que jamais se cruzarão, tudo leva a crer. De cá, à distância — e obviamente sem ter circulado nos meios em que ele circula desde menino, quando decerto fazia reinações nos ilustres jantares do pai —, dediquei-me a uma carreira recente e incerta de escritor, e pus o ponto final num manuscrito há coisa de três meses.

Publiquei o livrinho, caprichadinho, um pequeno orgulho. Guardo uma esperança ingênua de autor novato e não escondo um sonho de que um mecenas sensível consiga me achar por aí. Seria um belo acaso do destino. Todavia, tivesse um Ribeiro Albuquerque nos registros, um simples telefonema escancararia as portas, e eu andaria nos tapetes vermelhos, a receber boas-vindas e sorrisos receptivos. Uma vantagem que a nobreza dá a poucos eleitos.

O que me resta? Como predica o apóstolo, ter fé, esperança e amor – o quinhão dos pobres. Caprichei no trabalho, agora é esperar a colheita: uma década de desânimos, reânimos e abnegações, condensadas em três centenas de páginas. Deus me ajude.

*      *      *

Um dia, vejo Samuel num vídeo da internet. Com aquele ar de eterno vestibulando, com aqueles all-star nos pés e jeans surrado de quem disfarça ser quem é, ele comenta a respeito de meu livro numa entrevista. Não é possível! Como chegou a ele? Ouço tudo com calma, volto o trecho várias vezes. Guardo bem na memória o melhor adjetivo que ele me concedeu: “esforçado”.

Esforçado? Puxa…

Não reclamo do elogio nem digo que é mentira. Realmente foi um esforço escrever o romance; embora fosse mais que esforço, foi algo do coração, houve um derramar da alma ali. Eu disse alma, coração? Duas palavrinhas que jamais vi Samuel Ribeiro Albuquerque pronunciar, me dou conta agora. Pois não seria a primeira vez aquela, justo quando falava de meu modesto – e esforçado – livrinho publicado há poucos dias.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 19 (14/4/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O Revolucionário
Fator Z

Tempo de leitura: 17 minutos

1

Quando ouviu a assertiva do doutor Norton, o professor Zarzur mal acreditou em seus ouvidos: “ouçam o que digo, senhores. Em dez anos, todos comerão fezes humanas.” O cientista pronunciou a frase uma vez, mas ela ressoou três vezes na cabeça de Zarzur, girou como um papel que rodopia ao vento.

Não só Zarzur, mas toda a comissão ficou estupefata. Aquilo soava repugnante além de absurdo. Mais, era também uma piada de mau gosto e pueril, típica de criancinhas na fase anal freudiana, totalmente imprópria para um cientista tão renomado como Norton.

Ora, quem em sã consciência comeria fezes? Ia frontalmente contra a natureza humana. Foi o que disse Zarzur ao engenheiro social, depois de levantar o braço com inquietação. Incomodado por ser interrompido no início da apresentação, Norton o atende, irritado:

— Natureza humana, caro Zarzur? Defina natureza humana. Sei de natureza, ponto. O que é você agora, um carola libanês? —  riu com desdém.

Não precisava ofender. Agora Norton dava-se ao deboche? Presunçoso, via-se no direito de tocar na recente conversão do velho professor e desgastar uma amizade de décadas, em nome da ascensão na carreira? O ego de Norton parecia-se àqueles balões de ar quente que precisam livrar-se dos sacos de areia para subir ao céu. Zarzur era um daqueles sacos, agora.

Quanto a Norton, o renomado cientista não saía das páginas dos jornais e estúdios de televisão; gabava-se de sua recente indicação ao Nobel, depois de ter sido laureado pela Royal Society de Londres no ano passado. Estava no auge, com efeito. Não obstante, sua resposta revelava uma empáfia lamentável. Não havia motivo para impostar a voz nem fazer pose num ambiente restrito, diante de pares tão preparados quanto ele — embora sem a mesma projeção pública, é verdade — como se estivesse diante das câmeras e de uma audiência em nível nacional.

“Comer fezes”. A frase era de um ridículo evidente. Não que Zarzur fosse algum naïve ou pudico, muito menos santo; sabia dos experimentos que ele mesmo fizera no passado e aliás lembrava-se como outrora empolgara um jovem Norton, ao explicar-lhe os meandros da mente humana, na época como ambicioso orientando. Zarzur ensinara a um sardento Norton como o comportamento podia ser programável, “embora nunca na totalidade”, o professor frisava bem este detalhe importante.

O próprio Zarzur tivera sua fase arrojada no início. Flertara com a inconsequência natural dos visionários, a qual pode ocorrer com muita facilidade, em particular na engenharia social. Hoje em dia, porém, era um ícone, consagrado e reverenciado pelos pares; contudo, sua cabeleira branquinha em roda da lustrosa calva não permitia nutrir as mesmas ilusões e ousadias de outrora. A idade conferiu-lhe certo pudor, um comedimento típico dos velhos, de modo que mantinha uma reserva ante as limitações da ciência psicológica e de tudo o mais que o homem descobre e implementa. Apesar dos êxitos, ele sempre apelava à cautela dos alunos.

Quanto a Norton, mesmo homem maduro atirava-se com ímpeto; portava-se como alguém cujo momento de brilhar chegou. Não por acaso: popstar da ciência, vivia na mídia e desfiava suas ideias com oratória convincente. Tinha carisma além de tudo e sabia ganhar a atenção da audiência leiga; treinara tanto nisso de oratória e expressão corporal que seus gestos se internalizaram, viraram hábito; apresentava-se como um mágico, como quem traz um ás na manga. O cientista dominava cada etapa dos processos que arquitetava, como um software elegantemente programado.

Embora não declarasse abertamente, pretendia-se um gênio no campo da engenharia social. Ambicionava ser o grande nome da matéria no século 21 como Kurt Lewin o foi no século 20. Sentia ser o homem certo para levar seu ramo de conhecimento a um novo patamar, e a comissão do Nobel parecia reconhecer isso ao indicá-lo. Era com tal segurança que falava agora aos interlocutores:

— Ora, engenharia social é uma questão de apertar os botões certos. E hoje, senhores, as oportunidades estão dadas: não há mais a religiosidade carcomida a atrapalhar nosso caminho. Há umas caricaturas de religião no máximo, mas que atrapalham nada ou muito pouco: digamos que elas aderem ao gosto da freguesia pois dependem dela. Ocidentais aceitam absolutamente tudo hoje em dia; estranham mesmo as tradições, sobretudo as religiosas.

Norton abaixa o rosto e leva a mão à boca, de repente. Suspira e ergue o queixo:

— Perdoem o riso, senhores; eu mesmo me espanto com os progressos que fizemos em poucas décadas. Pois se antes tínhamos de contar com mentes raras e geniais — aponta a Zarzur — hoje já contamos com a inteligência artificial. Vide os algoritmos das redes sociais: mapeiam gosto e consumo sem um único dedo humano a interferir no processo. A pessoa é induzida por um vetor binário e responde por um gatilho inconsciente. Notam a oportunidade, por que os chamei aqui? Cada um de nós temos talento e competência suficientes para desencadear o processo mais uma vez.

Doutor Norton prossegue em seu preâmbulo:

— Com efeito, nunca se tenta reprogramar uma Índia, uma Arábia ou uma China. Seria estúpido gastar energia e dinheiro — pois tudo neste mundo custa muita energia e dinheiro — em culturas tão milenares quanto arraigadas. Daí que nem se tenta. Mas quem precisa de orientais se há o Tio Sam tão individualista ou a Europa cada vez mais ateia e pós-cristã? Os países ocidentais são imensos recipientes esvaziados, senhores, sempre prontos para novos preenchimentos sucessivos e invisíveis. Quanto aos satélites na periferia do Ocidente, ora essa… são servis e ridiculamente suscetíveis, terreno fértil para toda sorte de experimentos. A América Latina é uma planta frágil e sem raiz que qualquer golpe de ar arrasta.

A plateia ouve sem esboçar reação. Norton adotava um tom acima do ponto, era notório. Se bem que nem tudo fosse vaidade. O cientista explicava as motivações profissionais e responsabilidades, como é praxe em toda a discreta ciência da engenharia sociocomportamental, conforme a designação técnica. Engenheiros sociais tem muitas satisfações a prestar, sobretudo a quem paga.

— Mudar modos de pensar e, em decorrência disso, o modo de viver de sociedades inteiras, é perfeitamente possível no Ocidente, de há muito. Todos aqui sabem como há seitas dedicadas a mudar os hábitos do séquito a ponto de levá-lo a cometer absurdos em nome da crença. Então, o que a ciência do comportamento faz é estudar, catalogar e apropriar-se de determinadas técnicas de estímulo e resposta extraídas dali, como o químico sintetiza o fármaco da exótica planta tropical. Mas antes de entrar no projeto propriamente, quero ouvir o professor Zarzur a quem fiz questão de convidar. Vamos recebê-lo com uma salva de palmas. Bem-vindo, mestre!

A plateia levanta-se para aplaudir a Ibrahim Zarzur, que levanta-se da poltrona com vagar e vai circunspecto ao tablado, lento e escrupuloso, como se ponderasse o que irá dizer.

— Passo a palavra ao senhor, mestre. Vamos escutá-lo, como nos velhos tempos. — Norton emprega o nível correto para não colocar-se abaixo do veterano em seu próprio show. O velho entende; ajusta o microfone e pigarreia levemente, espera o burburinho encerrar. Faz um gesto mudo de agradecimento.

— Agradeço o convite e as palavras gentis, doutor Norton. Olhe para vocês, meus amigos: que saudade… saudade dessa universidade, desse anfiteatro; saudade de cada sala, cada laboratório, cada corredor. Há vinte anos não venho aqui. Bem… não tenho nada de muito especial a dizer, caro Norton. Suponho que veremos aqui mais um trabalho brilhante, como é costume de sua parte. Perdoe a inquietação que tive ao ouvi-lo no início e que gerou minha interrupção. É que sua assertiva me chocou um pouco, devo admitir. Coisa de velho, talvez; coisa da idade.

Risos discretos na plateia. Zarzur continua:

— Me perguntei como o doutor convenceria as pessoas disso, pois dizer a frase comer fezes repele de imediato. Não questiono sua capacidade, longe disso, mas a fala me soa tragicômica, com todo o respeito. Um disparate pode minar a credibilidade de uma vida de trabalho e comprometer reputação, carreira, coisas pelas quais sei que zela muito bem. O senhor será um prêmio Nobel dentro de alguns dias, tudo indica. Ser tachado de maluco uma hora dessas? Arriscar-se num projeto estapafúrdio? Adoraria saber como tem considerado isso.

Harold Norton mal escuta o mestre e prende um bocejo de tédio. Assombra-se como o provecto Ibrahim Zarzur, uma mente privilegiada e brilhante, se mostrava agora incapaz de entender o mecanismo transformador e modelador de comportamentos. Justo ele? Os anos prejudicaram sua capacidade? Embora brilhante em tempos passados, o bom Zarzur nunca vendeu muito bem sua imagem. Sempre esteve nos bastidores e desprezava o marketing pessoal, em que pese o termo não existir naqueles tempos. De todo modo, Zarzur elaborava seus estudos eficientíssimos e contentava-se em manter o anonimato, oculto nos laboratórios e gabinetes.

Enquanto mal ouve o mestre a discorrer, Norton lembrou-se quando este escreveu a giz, pela primeira vez, um curioso termo no quadro negro: “soberba andrógina”. Depois, discreto com aqueles enormes óculos quadrados, explicou candidamente aos alunos: “O homossexo existe desde o alvorecer dos tempos: abrange de Alexandre Magno a nosso Rock Hudson. Logo, a modalidade pertence ao terreno da natureza”, disse o mestre. “ Mas soberba, notem bem, uma nova categoria mental e social chamada ‘soberba andrógina’, isso nós criaremos, bem aqui”.

Aquilo foi no mestrado, em 1974.

2

Foi uma bela aula, aquela: Norton lembra até hoje. A lembrança de Woodstock estava fresca na memória dos estudantes. Quando o professor apresentou a novidade todos riram, mesmo dois assumidíssimos da turma. O jovem Harold Norton, não; ele entendeu, enxergou o mesmo que Zarzur e entusiasmou-se no íntimo.

Pois não aconteceu de fato? Voilà: hoje é termo corrente na boca de governantes, consta em leis e jurisprudências, está nos budgets das corporações; é tópico obrigatório nas cerimônias do Oscar e, o mais importante, chega aos lares mais suburbanos. Tornou-se natural como o alvorecer. Então, o que era tudo aquilo diante do que propunha agora? Ora, ingerir excremento humano —  substância perfeitamente orgânica e natural —  não seria nada demais, nada de tão grave; apenas mais um passo dentre tantos. Chegava a ofender tamanha ingenuidade num tarimbado engenheiro social.

— Lamento ser o chato da festa, mas tudo tem limite, Norton — disse Zarzur, arqueando as sobrancelhas esbranquiçadas. — Perdoe me estender, mas nada do que fiz no passado humilhou ninguém. Houve um contexto, uma conjuntura. O Ocidente vinha do Holocausto, Deus do céu! Havia um excesso de testosterona dominante e furiosa no mundo, desordenada desde a Primeira Guerra e sucedida em poucos anos pela Segunda Guerra. Não fosse suficiente, surge a Guerra Fria e a ameaça nuclear aterroriza a humanidade. Aquela sequência dos diabos precisava ser parada, desmontada por dentro ou a humanidade estaria liquidada. Não foi algo romântico de se fazer. Foi uma medida necessária como toda decisão difícil. Assumo, orgulhei-me de minha obra. Mas isso durou até meados da década de 90, ainda na docência, quando vi as coisas frutificarem sozinhas na tevê e sem depender de mim. Vi meu próprio corpo teorético a vagar sem pai nem autor identificável. Ocorre que hoje, quando meu neto de treze anos exige que o chame de minhe nete, sob pena de magoar-lhe os sentimentos de gênero; quando me pede que o acompanhe a lojas da MAC para fazer compras e gravar seu videolog de maquilagem, vejo minha própria obra voltar-se contra mim. Dói-me saber que a coisa saiu de controle, sem chance de reversão. Jamais pretendi isso, Norton. Jamais quis mal à humanidade. Quis apenas um mundo melhor, mais justo e pacífico, nada mais. Por ora é o que tenho a dizer, senhores. Obrigado.

Zarzur termina a participação de modo melancólico e retorna ao lugar. É aplaudido timidamente. Norton tenta manter o ânimo do evento:

— Importante depoimento, caro Zarzur. Respeitamos seu desabafo e o compreendemos — dirige-se à plateia, de modo a evitar a comoção e o consequente deslocamento do show; emenda:

— Não vamos entrar em detalhes de ordem pessoal ou familiar. Questão de ética profissional. Depois, minha proposta é mais modesta e, como as do professor, muito necessária. Bem, senhores. Creio que é preciso detalhar o projeto, enfim. Os slides passarão nessa enorme tela aqui em cima, mas antes peço licença para pegar um humilde livrinho, bem ali.

Norton vai à mesinha de apoio com ar misterioso. Bate com a sola do sapato no tablado de um jeito dramático. Da prateleira do púlpito retira um voluminho surrado, de não mais que duzentas páginas. Mostra a capa aos presentes:

— Alguns amigos da velha guarda vão lembrar. Apenas 1.500 exemplares, para um círculo restritíssimo. Um deles é meu, exatamente este, devidamente autografado na folha de rosto. Veem? O título, inesquecível: “Fator Z: Engenharia Comportamental e Controle Social nas Democracias”. Ano de publicação, 1967; autor, um certo Ibrahim Saad Zarzur. Lembra-se professor? — o velho acena positivo com a cabeça. Norton fala num tom superior, com respeito de par e não de aluno:

— Os colegas conhecem bem a obra, mas há muitos jovens cientistas aqui, alguns muito emocionados por estarem na presença da lenda que é nosso estimado Professor Z. Natural. Rapazes, vocês não viram nada: permita-me ler o prefácio da obra, uma pérola inigualável que me arrebatou desde o início, quando ainda não passava de um nerd sardento e de aparelho nos dentes. Graças a este livrinho estou aqui hoje. Lerei o curto prefácio e será nada entediante, garanto.

3

Bem, aqui diz:

“Há muito Freud demonstrara que a natureza humana, este termo vago de que falavam os escolásticos, na verdade era psique: uma espécie de massa maleável, programável em cada ser humano. Não fosse assim, nenhum de nós seríamos educados por nossos pais nem adquiriríamos os costumes que eles nos legam e que carregamos ao longo da vida: costumes e hábitos que não nascem conosco, mas são assimilados e se tornam nosso modo de ser, ver e agir no mundo.

Do pioneiro austríaco para cá, a ciência psicológica evoluiu absurdamente. Vivo fosse, Freud se orgulharia de um Skinner, celebraria um Lewin, reverenciaria um Festinger. Até seu sobrinho Ed Bernays, do qual, consta, o tio sempre julgara um poltrão e veja: cada maldita empresa passa-se por honesta e até benquista graças ao sujeito, tido e havido como pai das relações públicas, técnica que, sabe-se, não passa de logro e empulhação conveniente.

Modelar comportamentos constitui a melhor medida a ser adotada nas democracias, sustento neste livro. Dizemos genericamente país ou nação, mas a exacerbação das identidades nacionais levou a tiranias genocidas neste século, resta provado. Assim, se a democracia é o melhor antídoto contra a tirania, há algo dentro da democracia que é preciso governar: a maneira do ser individual. A identidade singularíssima, isto é, distinta de indivíduo a indivíduo, é o melhor remédio para manter o regime democrático como único guarda-chuva a proteger-nos das intempéries do chauvinismo e do fanatismo nacionalista.

Dessa forma, é preciso singularizar até o último fio de cabelo de cada pessoa, distinguir uns dos outros até o limite, de modo a tornar a excentricidade o único padrão aceitável em si mesmo. Deve-se disseminar o desejo social de padronizar o não-ter-padrão. Neste “Fator Z”, proponho uma nova regra, que não substitua a anterior por força de lei; antes, promova um caudal de novas posturas e modos de viver, aspergidos diuturnamente via propaganda e comunicação social, de modo que a única característica similar entre as pessoas seja a única remanescente, qual seja, a humanidade enquanto tal.

Na prática, é preciso substituir a moral majoritária que enseja as disputas nacionais; é preciso fragmentar em pequeninos pedaços atitudes uniformes e tidas como aceitáveis nas comunidades renitentes; ao mesmo tempo, envergonhar toda reação contrária a essa mesma fragmentação. É preciso constranger os nostálgicos, desprovê-los de fibra, bani-los do convívio humano sadio e fazê-los temer a oposição ao padrão não-padrão. Assim, será considerado cidadão sadio e democrático aquele que transitar entre as múltiplas singularidades sem fixar-se em nenhuma delas como modelo, e os opostos se coadunarem somente pela via da civilidade, celebrando a diferença radical (ainda que incômoda, no fundo), ou silenciando-se, por coerção social e econômica. No limite, é preciso levar a aceitação irrestrita de todos os modos de vida, não importa que posturas ética ou estética apresentem. Então, criaremos a Outra Moral, a moral nova e definitiva das democracias: o Fator Z.

Críticos poderiam objetar, compreensivelmente: tal reprogramação comportamental não levaria à anarquia e ao caos social? De pronto, a resposta é não: a democracia é um regime não somente de leis, mas sobretudo de inúmeros regramentos não-escritos e coerções sutis, sobretudo as de ordem econômica. Com efeito, se não for possível eliminar todos os padrões conservadores de valores e pensamentos, será possível manter certa estrutura inescapável de controle superior sem rosto e nome, algo contingente e difuso, para que a represa não se rompa e o vilarejo não inunde: essa estrutura de controle será a própria economia e as ditas regras de mercado.

Todos precisamos comprar, vender, comer, morar, vestir etc. Por isso, precisamos todos submetermo-nos a certas regras que as relações econômicas se nos impõem. Então, se me perguntam qual a maior preservadora de consciências diante da fragmentação comportamental proposta nesta obra; se me indagam o que poderá controlar os impulsos mais agressivos e violentos, ou a licenciosidade mais irrefreada e contraproducente à sociedade, eu lhes respondo: é a economia de mercado e seu sistema subjetivo de punições e recompensas. E isso basta.

A fragmentação comportamental se dará na transformação do prazer em nova moral: o imoral de hoje será o decente de amanhã, como se decente fosse; e o prazer pelo prazer, o hedonismo liberto de culpas religiosas e compromissos tradicionais proporcionará uma tal elasticidade moral que a tudo incorporará e desencorajará de antemão a disputa, o embate, a luta discursiva. Nesta democracia moderna que se coloca, a testosterona combativa será a maior inimiga da boa governança.

Daí que é preciso manipular vontades, disseminar os novos valores em dois polos, um afirmativo e positivo e outro negativo: no positivo, mostrar como a nova modalidade comportamental é a melhor, a mais feliz, a mais desejável e aprazível; no negativo, inculcar nos refratários que resistir ao novo modo de viver será inútil, já que inevitável. Trabalharemos com os jovens nesse sentido, e eles formarão assim as gerações seguintes, sob nova mentalidade.

Por fim, sabemos como o ser humano tem a capacidade de se adaptar a tudo. Toda mudança repentina precisa ser operada primeiro na massa mais maleável. O animal abatido é aberto pela barriga, onde não há ossos nem tendões, apenas pele, gordura e carne, substâncias maleáveis: a lâmina entra e percorre macia, operando o que precisa. Por isso, começaremos pelos grupos mais frágeis e deslocados, pelos insatisfeitos sem voz na sociedade. Os atuais comandados e tutelados comandarão e tutelarão o futuro. Diremos como sofrem opressão e proporemos que assumam a liderança discursiva, a vanguarda, que tornem todo formal em lúdico, todo grave em sensível, todo varonil em feminil.

Não sei que homens teremos a partir daí. Mas sei que eles não buscarão a guerra, mas a conciliação, não por subjugação externa mas pela própria consciência, como se fossem eternos garotos de nove anos com medo de desagradar as mães. Toda mulher será essa mãe e todo homem será esse filho. A ser assim, não haverá mais embates, pois não haverá mais qualquer desejo masculino de guerrear para conquistar, mas uma disposição feminina inserida no masculino para a conciliação perpétua. O Fator Z veio para salvar a democracia ocidental para sempre.”

— Isso foi publicado em 1967. Fenomenal, não, senhores? De novo, peço uma salva de palmas para nosso brilhante professor Zarzur.

4

— Certo, permitam-me detalhar o projeto. Os slides vão passar aqui em cima. Bem, a matriz alimentar da humanidade precisa ser remodelada, como todos bem sabem. No plano alimentar, o que há de mais moderno e sustentável é o veganismo, que a princípio parece uma boa ideia, mas sabemos como a agricultura consome terra e água em larguíssima escala. Consumir vegetais e minerais não interrompe a contento o aquecimento global nem o extrativismo das fontes naturais, pelo contrário. No plano geopolítico, não podemos desprezar o inesperado: quando falávamos em ecologia na Rio’92, ninguém contava com o fenômeno China, que hoje, sozinha, responde por um sexto do consumo mundial de alimentos e recursos naturais.

Eis o que proponho: a reciclagem alimentar a partir das fezes humanas. Vemos aqui as opções de alimentos processados a partir de excremento: hambúrgueres, pães, sorvetes, do básico ao delicatessen; pode-se fazer de ensopados nutritivos a biscoitos recheados, numa gama que vai do gourmet ao caseiro, do industrial ao artesanal. Neste slide, vemos soluções inclusive para food service e gastronomia profissional, tudo com excelente durabilidade e custo reduzido; nesta versão doce, vemos creme sabor avelã para crianças desenvolvido a partir das fezes. Na versão desidratada, o excremento pode ser usado como tempero de pratos salgados ou como confeito para doces. Aqui temos croutons para salada, entre muitas outras opções e variedades, como os senhores podem ver nesta foto.

De repente, um jovem levanta a mão na plateia. Norton o deixa de braço erguido por um minuto, antes de deixar-lhe falar.

— Ahn, pois não, diga.

— Obrigado, professor. Todas essas imagens realmente são impressionantes, e ninguém diria que a matéria-prima é, bem… — o jovem disfarça um engulho — cocô humano. Imagino que essa informação constará nas embalagens, é óbvio. Concordo com o professor Zarzur, como se dará esse convencimento das pessoas? Eu nem teria coragem de falar disso com algum conhecido.

Norton ri sardonicamente. Diz, com ar professoral:

— Meu jovem colega, não me entenda mal. Vou explicar como se falasse a um menino de 16 anos com tênis sujos e mochila encardida, tudo bem? Lembre-se do que lemos há pouco, o Fator Z. Aplicaremos o Fator Z. Por isso temos a honra de ter aqui, presente, o criador da técnica que é um verdadeiro trunfo da engenharia sociocomportamental. Foi baseado na sua obra, cujo prefácio li há instantes, que tenho a solução para introduzir lenta, gradual e eficientemente a Coprofagia Voluntário-Induzida, CV-I. Eis a designação técnica. Você me dá oportunidade para passar à etapa de implementação, no próximo slide. Acompanhe-me: em primeiro lugar, trabalharemos no longo prazo. Um termo cansado, com efeito. Na prática, nosso horizonte temporal de implementação abrange uma década e meia. Descreverei as etapas. Tudo segue a clássica estratégia do Fator Z.

Doutor Norton pigarreia levemente e toma um gole d’água. Retoma:

— Primeiro, colocaremos a hipótese na mesa da forma mais chocante, repulsiva e absurda. Esperamos as reações todas, as censuras, as incompreensões refratárias e até a violência, que é sempre relativamente pouca. É um preço a pagar: mesmo a reação violenta, como ensina o professor Zarzur em seu Fator Z, é benéfica, pois faz nascer por si mesma a aceitação de outro lado. A aceitação virá por serenas explicações e diálogos preliminares, e a isso chamamos “estimular o debate”, diremos “por que isso incomoda tanto?” e coisas assim. Acuadas, as mentalidades se veem obrigadas a negociar. Chegada a etapa de negociação, o campo está aberto: mostramos que a aversão precisa ser mitigada e diluída mediante sugestões aceitáveis, emparelhadas às normalidades da vida. O absurdo deixa de ser absurdo quando colocado em pé de igualdade com outras situações comumente aceitas. Fazemos uma diluição nas percepções, entende? Adota-se o tripé certo, errado, certo, como o professor Zarzur ensina na obra: concorda-se com A, discorda-se de B, concorda-se com C. Quem discordar de A+B+C in totum será o maluco, o ignorante, o atrasado etc. Depois, nossas fundações mantenedoras patrocinarão espaços de prestígio na mídia, atrairemos vozes influentes; faremos summits com especialistas e trataremos da problemática alimentar com autoridades renomadas e agentes representativos da sociedade. Forjaremos a necessidade: traremos à baila diversos estudos e evidências científicas ad hoc, dando ao público dito esclarecido o que ele busca, ou seja, a verdade comprovada pela ciência. A imprensa faz o resto, meu jovem: nenhum jornalista de prestígio quer estar fora da vanguarda, da modernidade. Estar fora do costume é algo humilhante, é como estar fora do jogo. Respondido?

— Sim, obrigado — responde o rapaz, como se pensasse em mais vinte dúvidas que o espicaçam mas não consegue elaborar.

— Continuemos — Norton retoma. — Depois fabricaremos iguarias finas de nossos alimentos de base excrementícia e faremos eventos promocionais de pompa, com modernidade e elegância. Criaremos um movimento positivo e de afirmação, contrataremos personalidades de proa para o endorsement, alimentaremos o interesse e criaremos desejo. São as etapas naturais de toda propaganda que se preza. Iniciamos os testes de divulgação da CV-I a partir do próximo ano, ainda em caráter beta.

5

Dez anos se passam. Na Quinta Avenida, os passantes comemoram o tradicional réveillon nova-iorquino. Acima de todas as cabeças, telas e displays gigantescos fazem a contagem regressiva: 5, 4, 3, 2, 1. Feliz Ano Novo! Todos se abraçam e confraternizam, enquanto no alto, um espetáculo de fogos multicores simboliza a nova fase de alegria e esperança. Patrocina o evento com exclusividade a gigante alimentícia NeoVita e seu snack de sucesso internacional Pooplez. Todos recebem o petisco orgânico e o experimentam com satisfação, crianças, jovens e adultos.

O programa mais assistido da televisão americana é a sensação Feeding with Biofood, apresentado pela famosa chef e ativista alimentar Ruby Shyman. Ela introduz a alimentação CV-I nas escolas americanas. Na tela, exibe-se um sortimento de fricassês, quiches, cupcakes e snacks de encher os olhos, e que fazem a alegria das crianças e adolescentes. Os pais dos alunos aprovam a iniciativa e experimentam os quitutes, conscientes e satisfeitos, sem qualquer preconceito. Uma nova etapa da alimentação humana chega, enfim: é o que o reality show demonstra ao mundo todo, via cabo e streaming.

*

A exatos 800 quilômetros de Nova York, um senhor septuagenário adentra em sua cabana. É inverno e neva intenso lá fora. O homem traz um feixe de lenha, de uma madeira especialmente aromática que provém de uma árvore específica da região. Anoitece. Dentro, a luz da lareira torna o clima propício e intimista. Ali está o homem e sua noiva. Ambos se abraçam e se aconchegam ternamente diante da lenha a crepitar.

O homem é o prêmio Nobel Harold Norton. Acompanha-o a bela Helen, ex-aluna, vinte e três anos mais jovem. Desfrutam de um momento a dois. Laureado com o prêmio da academia sueca há uma década, Norton aposentara-se de vez. Mudou para os alpes, e hoje dedica-se a administrar os investimentos e a escrever as memórias, sem qualquer pressa. Além do que, a noiva causa em Norton o mesmo efeito que ocorre a qualquer homem mais velho ao relacionar-se com uma bela jovem: seu coração se rejuvenesce.

Parece ter voltado duas décadas no relógio da vida o laureado doutor. Oh, estava mesmo feliz o velho Norton: tinha uma doce vida de prazeres inofensivos e hobbies bem escolhidos que preenchiam os seus dias, livre de qualquer pressão externa ou responsabilidade mais séria. Não é para outra coisa que um homem trabalha por toda a vida, afinal.

— Vou preparar um chá, meu amor. Ligue a tevê, se quiser.

— Claro, querido — concorda Helen, sentada em cima da perna no amplo estofado.

Norton prepara um chá de maçã orgânica e canela. O cheiro adocicado preenche o ambiente. Enquanto serve a noiva, o âncora do telejornal chama a atenção:

“Ativistas pelos direitos alimentares protestam na capital colombiana: exigem a universalização da bioalimentação CV-I aos países do Terceiro Mundo. Confira na reportagem.”

Na enorme tela, vê-se que os ativistas protestam em frente à sede do Ministério da Agricultura em Bogotá, exigindo os mesmos direitos bioalimentares do Primeiro Mundo: “o corpo alimenta o corpo” diziam os cartazes, “o corpo faz, o corpo come”, gritavam. Todos estão com rostos pintados com o próprio bioalimento produzido em seus corpos para representar a causa da Coprofagia Voluntário-Induzida.

Depois, no estúdio da tevê, acadêmicos e ativistas debatem; âncoras explicam os benefícios efetivos da CV-I ao planeta; asseguram como esta não veio para substituir a alimentação regular, mas para somar-se ao esforço global na luta contra a desnutrição e o extrativismo de recursos naturais. Em seguida, reportagens apontam as vantagens dessa nova modalidade alimentícia, com depoimentos de renomados médicos e especialistas.

Helen assiste a tudo enquanto assopra o chá quente. Norton olha fixo a televisão.

Ela pega o controle remoto ao lado. Antes de zapear, não resiste fazer um comentário:

— Que gente louca, não é, meu amor?  Essa gente sabe que CV-I é comer merda? Eles exigem isso! — meneia a cabeça e ri, inconformada.

— Pura loucura, querida. — Norton sorri e sorve o chá, sem dizer mais.

Helen recosta em seu peito e suspira. Olha-o desde baixo e pergunta:

— Eu jamais teria coragem de comer um negócio desses. E você?

— Eu? Não, o que é isso… pura insanidade. Esse mundo está cada vez mais louco.

Helen beija o noivo acaloradamente. Norton desliga a tevê.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O relojoeiro

Tempo de leitura: 17 minutos

1


NAQUELE DIA, COMO TODOS OS DIAS, o relojoeiro postou-se diante da portinha de aço e abaixou-se com dificuldade. Puxou a chave correta do molho atado ao passador da calça e rápido a inseriu no cadeado de chão, girou, abriu. O ritual matutino escondia a dificuldade recente de agachar-se, compensada pelo gesto preciso e metódico, quase reverencial: desperdiçar movimentos era um luxo a que o relojoeiro não se dava mais, pois uma hérnia pressionava-lhe o cóccix ultimamente, de modo que o agachamento dava-se de modo cuidadoso para não travar a coluna.

Desde rapazinho o relojoeiro internalizara a máxima do velho pai, passado há três décadas: a de que na vida tudo pede jeito e força, muito mais jeito que força, o velho frisava. Ele aplicava o ensinamento paterno ao abrir cada relógio, a fim de reparar os mecanismos que garantiam o controle do tempo.

Seus modos também continham esse controle temporal nas mínimas coisas, e ele, como os relógios da relojoaria, portava-se com precisão, de modo que agora, na abertura da loja, o trinco abre suave e sem resistência ante o giro harmônico da chave. Nas mãos do relojoeiro, encaixe e movimento obedecem exatamente à regra para a qual foram projetados, em perfeita sincronia: a máquina como extensão do corpo.

Há seis décadas tudo começara. O entorno e as circunstâncias da cidade mudaram muito de lá para cá. Não obstante, por longos anos a relojoaria representou uma ilha de estabilidade em meio às transformações da metrópole. Ali, na Galeria Novo Século, há décadas confinado em horário comercial, o relojoeiro não testemunhou a passagem dos tempos lá fora, não acompanhou o acúmulo das novidades, o caráter das novas gerações nem a troca dos costumes.

Durante muito tempo, tudo parecia fixo e permanente na relojoaria. No entanto, tudo mudava lá fora: a entonação das vozes, os sotaques e as fisionomias diferentes que a cada dia aportavam na cidade. Enquanto isso, tudo igual no lado de dentro: o balcão em madeira de lei, a estreita vitrine, o cheiro característico do ambiente, a disposição das mercadorias: tudo igual. Lá fora, o tempo corria impiedoso e veloz: o centro da cidade tornava-se um revezar frenético de itinerantes, e se antes as transformações ocorriam de década em década, agora tudo virava outro cenário e situação em poucos meses.

Jurandir chamava-se o relojoeiro. Punha-se em pé agora, e, com a dificuldade dos anos, empurra acima a porta de aço. Olha num relance a vitrine: tudo ali. Nenhum sinal de arrombamento. A luzinha do alarme pisca vermelha no canto inferior, muda e preventiva.

Tinha gosto pelo ofício de vender e consertar relógios. Sacerdotal, no silêncio da oficina nos fundos, aprendera não só a reparar mas a respeitar as engrenagens e pecinhas dos relógios. Deus sabe a satisfação que tinha ao terminar os consertos, lacrar a tampa traseira, reorganizar no lugar certo as minúsculas ferramentas para mãos precisas, e ouvir de novo o tique-taque sutil, a passagem rítmica dos ponteiros. Então, naquele breve instante tudo se reordenava: um triunfo sobre o descontrole e a desordem.

Devagar o ofício incorporou-se ao homem. Jurandir internalizou o rito intrínseco da profissão, de unir exatidão à arte, perícia à beleza. Muitos que passavam diariamente pela galeria o conheciam, e sentiam de modo reconfortante que, afinal, não importam que intempéries desabassem ou que ventos tirassem as coisas de lugar, tudo voltava ao local adequado, à certeza e ao controle calmo, patentes na rotina do relojoeiro.

No início, quando ainda aprendiz do pai e os suspensórios escorregavam nos ombrinhos, a vida urbana pedia fregueses uma formalidade apropriada. Os acessórios realçavam a postura e os bons modos dos cidadãos, e os relógios faziam parte da indumentária: usá-los indicava o bom alvitre do cavalheiro e a elegância da dama. Sempre havia na loja um modelo adequado à estampa que cada um queria projetar. Damas e cavalheiros namoravam os modelos na vitrine, por dias; decididos, entravam no estabelecimento para experimentar o tipo escolhido, não sem antes cumprimentar ao jovem Jurandir, agora dono após o falecimento do pai, como mandavam a educação e a civilidade.

A Galeria Novo Século era reconhecida pela boa frequência, de gente sofisticada sem ser esnobe; pois não eram necessariamente ricos que passavam por ali. Os relógios, as joias e semijoias que Jurandir vendia, não só as alianças dos casais mas também os anéis, colares, cordões e pingentes certificados, tudo aquilo não se destinava à frivolidade, mas representavam algo além: materializavam o mérito, a recompensa a quem trabalhava dignamente. De resto, se os fregueses fossem melhor remunerados que os demais, aquilo justificava-se: seus ofícios requeriam um volume maior de estudos, preparos e leituras que permitiam o ganho e reclamavam por um galardão. Dourados e brilhantes não simbolizavam somente distinção, mas incentivavam o esforço.

Assim, a relojoaria tornou-se um pequeno marco no centro, por décadas a fio. Ver Jurandir ali, de segunda a sábado sempre no mesmo horário, dava ao passante a sensação de constância e estabilidade. Todos prometiam-se comprar um mimo dali nalgum dia, para presentear a si ou ao ente querido. Gerações frequentavam a relojoaria, pais, filhos e netos. A expressão serena do proprietário atestava a tradição, até que a fronteira do século 20 para o 21 foi finalmente atravessada.

2

O século 21. No centro da cidade, o barulho caótico impera: vendedores ambulantes esbravejam ofertas, as lojas berram pechinchas em microfones como uns desesperados. Palavrões de populares misturam-se às músicas obscenas dos marreteiros, voam como flechas no ar. Na avenida principal, sirenes de polícia se fazem ouvir cada vez mais. Perto da galeria, o bem vestir, o bem falar, a graça feminina e a cortesia masculina, tudo isso extingue-se, escasseia-se até a inexistência.

Na Galeria Novo Século, a vida sempre se manteve intacta a despeito da lenta decadência do centro. Por longos períodos foi assim. Hoje, não mais: as lojas vizinhas à relojoaria — a tabacaria, o sebo, o café, a perfumaria, a ótica, a alfaiataria, a loja de bolsas e carteiras — enfim, todos os comerciantes vizinhos comentavam entre si, lamentosos: como tudo mudou! E, diante da evidência, restava apenas concordar, não sem a sensação amarga da perda e da impotência ante a brutalidade dos tempos que chegam avassaladores.

Quem domina, a quem obedece o tempo? O hoje dá as costas ao ontem, e o mesmo fará o amanhã ao hoje, sem cerimônia. O novo século impõe-se, abrupto; cai como pedra na cidade. A paz urbana sempre foi uma criança frágil e vulnerável, e haverá sempre perturbações a dificultá-la, provocadas ou espontâneas — principalmente as primeiras. O século chegara à galeria, também. Clientes somem e lojas fecham; companheiros de lida do relojoeiro vão-se: ora do comércio, ora do mundo. No lugar, brota a gente ignara, que pouco liga aos referenciais de até há pouco.

A antiga freguesia ninguém sabe onde foi parar. A galeria recebe forasteiros desdenhosos, rústicos sem respeito pela história, sem conduta adequada: umas expressões embrutecidas, uns portes grosseiros, sem trato. A língua-mãe é maltratada com expressões cada vez mais chulas, e a comunicação se dá aos gritalhões e gargalhadas. Chegam também uns estrangeiros com ar tribal, Deus sabe de onde, a falar entre si por dialetos de enigma, de todo alheios à cultura que os recebe e acolhe.

E os antigos senhores que procuravam por maletas executivas na loja ao lado? Onde estão? Os frequentadores do café, a gente boa de papo à hora do almoço? Onde foram as moças bem trajadas das agências de turismo, elegantes e perfumadas, num tempo em que perfumes franceses era artigo raro deste lado do Atlântico? E quanto às damas com penteados trabalhados, que, a despeito dos decotes e insinuações ressaltados, a grossa aliança no dedo indicava, sobranceira entre anéis e pulseiras, sou uma mulher casada?

Não eram tempos tão inocentes aqueles, certamente não; mas havia um jogo sutil que combinava charme e recato, seriedade e beleza — como os relógios. Os relógios são assim: inovam, mas não perdem a essência. Mas agora, o encanto urbano inexiste: tudo se corrompe, os bons somem sem deixar rastro, levados por um turbilhão.

Jurandir mantinha-se na Novo Século como podia, por hábito e escrúpulo, pois, pensava, “homem deve manter a postura apesar de tudo”. Não era fácil. A relojoaria recebia agora a visita de uma repentina malta que ignorava elementos essenciais da boa educação: não diziam um por favor, com licença, bom dia, boa tarde, o senhor poderia me informar — essas trivialidades corteses. Andavam esbaforidas para lá e cá, como quem rouba um cavalo na estrada. Seus cheiros também lembravam ladrões de cavalos. E falavam como se falassem ao cavalo roubado.

Perguntam pelo preço de qualquer coisa por estalo na relojoaria, sem ciência alguma, não compram, jamais compram nada, comprar o quê, se mal se vestem, se mal comem? Olham a vitrine com uns olhos vidrados, como se vissem naves alienígenas em miniatura. Jurandir nota um curioso da vez a embaçar o vidro da vitrine com respiração ofegante, e lá de dentro suspira em desânimo. Espanta-se com aquelas caras — é indecoroso dizer — um tanto idiotas. Os fulanos perguntam o nome das marcas que estão gravadas bem à frente, e não sabem ler ou não se dão ao trabalho, e o relojoeiro faz as vezes de professor. E depois, nada. Compravam nada.

Pois no novo século ninguém liga para mais nada. Ninguém percebe o valor de ser honrado e respeitável. Ninguém sabe o que é ser pai de duas filhas bem-educadas com cada centavo ganho no labor de anos a fio. Ninguém sabe como é casar uma com um médico e estabelecer a outra no Primeiro Mundo, em Roma, casada com um engenheiro bem-sucedido. Ora, essa gente sabe nem de si mesma. Roubariam, se pudessem? Claro que sim. Mesmo sem ler um simples nome no visor de um relógio, roubariam. Gostam de tudo apenas porque brilha, atraem-se pelo coruscar, como moscas à luz. E em reação àquilo têm uns reflexos corporais, uns cacoetes, uns tiques, zero elaboração.

Fossem só os nativos… Jurandir lembra que a velha alfaiataria fechou e, depois de pendurarem uma placa de alugar durante meses, abriram ali uma casa de câmbio. Que coisa. Mal a inauguram, e para lá acorrem uns tribais que desprezam nosso idioma. Postam-se em frente, um magote deles, e conversam ugabugas com vozes cavas. Ocupam o entorno do chafariz principal da galeria, os bancos charmosos onde outrora sentavam-se as atendentes das lojas nos intervalos. Quase ninguém passa mais ali. Não há um policialzinho para dar uma espiada de leve, uma olhadinha só, custa nada. A polícia não existe quando se precisa dela.

De repente, um tribal alto e magricela posta-se em frente à relojoaria. Olha fixo desde fora. Jurandir estranha cá dentro. Que quer o sujeito? Repara o movimento? Estuda a rotina, quem é o dono, a que horas se vai? O relojoeiro coça a cabeça, intrigado. Logo chega um igual, um tipo robusto, diz sei-lá-o-quê e ambos se vão. Com o sobrolho cerrado, ele deixa o balcão e vai olhar, cauteloso: ambos se juntam ao magote da casa de câmbio. Todos têm smartphones gigantescos e telefonam a deus-sabe-quem naqueles dialetos. Coisa esquisita.

Dia seguinte, igual: lá está o sujeito a olhar e olhar. E assim prossegue a semana inteira: olhar fixo do magricela, chegada posterior do robusto; saem, juntam-se ao magote da casa de câmbio, telefonam e telefonam. Ora, é evidente, planejam um assalto. Cadê a polícia? Nem aparece, esquece dali. Os sujeitos notaram a facilidade, é óbvio.

*

Naquela manhã em que Jurandir se abaixou com cuidado e retirou a chave correta para abrir a relojoaria, eram sete e meia da manhã em ponto. Ele sempre foi um dos primeiros a abrir o estabelecimento na Novo Século. Levanta-se com dificuldade, ergue a porta e olha a vitrine, quando uma voz surge atrás de si, quente à sua nuca: siô!

Jurandir vira-se assustadiço, e vê um grande turbante de chita amarelo-girassol. Uma mulher, toda revestida do mesmo amarelo. “Agora é uma mulher tribal, Deus do céu.” Disse aquele siô a Jurandir, e aponta um relógio da loja que mal abria.

Jurandir não se conforma: olha só quem o aborda. Inacreditável. O novo século chega a ele pessoalmente. A galeria acabou de vez. Não bastassem as várias placas de imobiliária perfiladas: tabacaria, alfaiataria, sebo, loja de artigos de couro. Tudo fechado: aluga-se, vende-se, passa-se o ponto. Tudo deles agora, sem medo, sem polícia. Devem estar confortáveis com tanto apoio e facilidade. Apenas sete e meia da manhã, e logo quem aparece?

A mulher do turbante girassol não vai. Não arreda pé, espera a resposta. Jurandir fala um preço de cabeça, seco, nem olha o adesivo na vitrine. Mal a encara. De reflexo, nota apenas o amarelo-girassol em alto contraste, um borrão. Aliás, por que ela mesma não vê o preço na etiqueta? Não sabe ler? Como uma criatura chega num país estrangeiro sem saber o mínimo do idioma? Informada, a mulher se vai, muda. Não agradece.

3

Chega correspondência de Roma. A filha de Jurandir manda uma carta com cartões-postais mais três fotos das netinhas. Uma delas escreve com letrinhas tortas e desenhos coloridos, “a nonno Jura, con affetto, Anna.” É a mais velha, recém-alfabetizada. Jurandir ri sozinho, os olhos rasos d’água. Que graça de netinhas, que meninas lindas. Nas fotos, vê-se que são felizes, saudáveis, sorriem como quem tem nada para se preocupar.

Ah, a Itália… Jurandir iria a Roma muito em breve. Sonhava com isso. Mas não passaria vergonha com o idioma: sem ninguém saber, ele adquirira um guia de conversação em italiano. E tem lido devagarinho um livro italiano, de Pirandello, que achou no sebo. Também lê Zagor em italiano, que a filha enviava pelo correio. Treinava frases para quando fosse a Roma visitar a filha e as netinhas, ambas de olhinhos verdes e cachinhos de mel, com umas sardinhas no rosto que eram um charme só.

Comovido, guarda a correspondência no envelope com cuidado para não estragar os selos. Imagina a futura viagem e vê cenas na cabeça, quando, lá fora, ressurge o magricela tribal de novo. “Desgraçado!”, Jurandir xinga em pensamento. O figura olha e olha. Desconcertado, o relojoeiro aperta a mandíbula, nega-se a aceitar aquilo. “Não só quer assaltar, mas intimida, afronta. A qualquer momento vem a surpresa.” Pouco depois chega o companheiro corpulento e ambos se vão.

Jurandir passa as mãos na cabeça. “Meu Deus do céu… olha pra mim, minha postura, meus cabelos brancos. Sempre tive boa reputação… não combino com essa gente. O que fazem aqui? Por que me ameaçam? Sou honesto, nunca errei um troco nem roubei ninguém. Nunca vou atrás de rabo de saia, mesmo sendo viúvo. Tenho duas filhas bem casadas, uma com um médico e outra com engenheiro, em Roma. Cadê o respeito?”

— Rispetto! — Jurandir vai à fachada e diz alto a palavra em italiano, sem dar por isso. — Rispetto! — brada de novo ao magote pouco acima, com o punho cerrado. E retorna ao balcão, arfando.

Respeito. Quem não o tem, conquista. O relojoeiro era pacato? Sim, sempre foi. Mas bobo, nunca. Ninguém planejaria um assalto assim, com a maior tranqüilidade, encarando sua loja com marra e abuso, como se o dono fosse nada, como se nada pudesse e se assustasse com cara feia. Fica lá o sujeito intimidando, dia após dia, como se dissesse te cuida, vovô ou coisa parecida? Deixe estar. Jurandir sabe se cuidar, ah, como sabe. “Ele vai ver só”, garante.

O relojoeiro nunca deixa de cumprir um dever, sobretudo de consciência. “Não vai ser fácil assim, não, tribal. São quarenta anos de relojoaria e não quarenta dias.” No fundo, porém, sente-se mal por desgastar-se com aquilo. Perder a calma e a paz de espírito era o que mais detestava.

Noutra manhã surge de novo a mulher do turbante, logo cedo. “Eles se revezam, é isso”. Está num vermelho-fogo, em forte contraste. Entra na loja aos sacolejos. Mira um relógio que a bem da verdade nem era dos mais caros, e pergunta, direto, sem cerimônia: quan-quié-pufavô?

O relojoeiro informa o preço, ríspido. Ela diz ubigadu e sai. “Que figura… ela tem algo com o sujeito mal-encarado? Tudo muito estranho. Pelo menos agradeceu.” Mas Jurandir tomará alguma providência, não é possível ficar assim. Chegou a hora, não pode esperar mais. Questão de honra. Tudo no seu lugar, com sua ordem, sua função. Vale para os relógios e para a vida: tudo tem um porquê, cada peça corresponde a outra; tudo tem uma lógica que faz a vida girar. E ao defeito, conserta-se.

4

Segunda-feira. Um perfume feminino adentra a relojoaria. Súbito, a memória de Jurandir viaja: lembra uma das mulheres das agências de turismo lá dos anos oitenta. O velho século volta doce e cítrico agora, relembrando gente agradável e decente da antiga galeria. Que saudade… de repente ele se lembra de uma delas pela fragrância, uma em especial que, olha… ele ficou muito balançado certa vez. Aconteceu sem querer. Se a esposa soubesse à época… Nossa Senhora, aquilo foi uma loucura…

Foi um dos dias mais emocionantes na vida de Jurandir. A mulher deixara um relógio suíço de bracelete, uma raridade. Ela precisava consertar um dos elos e não imaginava que Jurandir pudesse fazê-lo. Mas, que mulher… o relojoeiro lembra como se fosse hoje: alta sem exagero, com maçãs do rosto salientes e nariz esculpido a cinzel, um desenho perfeito. Ela o olhava direto nos olhos, sem se intimidar, olhar firme e penetrante de quem sabe o que quer.

Bonita e marcante. Jurandir sentiu o baque, pra valer. Há mulheres assim, cientes de seu poder sobre os homens. E ela era astuta; falava com voz de sereia, para agradá-lo e obter o melhor dele. Embora forte, aquele olhar tinha uma doçura de fundo, um quê de menina meiga. Parecia haver uma fonte de amores sob aqueles olhos cor de mar.

A mulher era curvilínea, generosa onde interessava, e as madeixas louras onduladas recaíam num busto sarapintado, farto e imponente, duas conchas sob os bojos do vestido. Abaixo, os quadris sinuosos inspiravam volúpia e respeito ao mesmo tempo, respeito pela pura substância feminina. Uma fêmea primordial, sem dúvida, de onde a feminilidade partia. Puro instinto, doce fúria.

Ao receber o relógio-bracelete, dourado e impecável, a mulher o experimenta. Estende o belo braço desnudo no vestido estampado. O relojoeiro tremelica de alto a baixo, palpita e disfarça. Ele nunca esqueceu o que ela disse, algo que, pela primeira e única vez, fez Jurandir perceber que era um homem, um ser humano real com sangue nas veias, e não somente um tipo funcional, um mero consertador. Ela disse, melíflua: você é um homem raro. Imagine! Ele, raro! Ninguém jamais disse isso a Jurandir. Ele nunca ousou pensar uma coisa dessas. Quando ela se vai — ele lembra até hoje — vira-se e o olha de modo prolongado, como se dissesse “deixe tudo e venha comigo.” Que mulher era aquela?

E se ele fosse? — Jurandir se pergunta desde então. Sua vida jamais seria a mesma, certamente. Mas na hora ele não foi: pessoas muito corretas não agarram certas oportunidades na vida, o excesso de escrúpulo atrapalha. Diante de chances que duram segundos elas não sabem como agir. E tais chances nunca mais ocorrem.

Aqueles olhos o chamaram e ele não foi. Tinha ela, além dos atributos físicos, um sobrenome italiano que ele anotara no certificado de garantia. Devia ser uma primeira descendência ítalo-brasileira, os traços não negavam. E talvez ele estivesse na Itália com ela hoje em dia, há uns bons anos, muito antes da filha. Quem sabe… Jurandir suspira fundo e vai conferir quem passou na galeria com aquele perfume. Quem seria? Tenta encontrar, mas já foi. Não pôde ver.

5

Dia seguinte, o sujeito olhando. “Maldito marginal. Não há mais o que confirmar, esperar. Esperar o quê? Ele apontar uma arma na minha cara e anunciar o assalto? Os outros lá do bando, aqueles defronte à loja de câmbio lhe dão cobertura, daí a confiança do bandido. Domínio territorial, é isso. Querem mostrar quem é que manda, agora. Não… não, senhor.”

Agora, o relojoeiro daria o troco. Sua história estava ali, a história de seu pai estava ali. Há dias o sujeito ameaça, afronta, intimida? Jurandir fará algo por si. Ele que experimente, o meliante não perde por esperar. Preparado, ele poderá encará-lo e não ficar ali encolhido, envolto na penumbra da loja como se tivesse medo. Sairia com convicção e enfrentaria o patife à altura, como quem diz “tenta a sorte, vagabundo”. Ele não lembra onde — faz muito tempo — mas lera em algum lugar que o simples fato de erguer os ombros, olhar de frente e mostrar confiança cria no oponente uma dúvida, uma hesitação. O elemento entende que ali pode haver um perigo e muda de alvo.

Na semana seguinte, nada do sujeito. Justo agora que Jurandir está preparado, oh, sim: tem à mão todas as ferramentas do ofício, guardadas na estreita gaveta abaixo do caixa, e mais outra ferramenta, a do dever, da honra e da ordem.

“Incrível como eles sabem, eles percebem. O meliante fareja a ameaça e some. O magote ali em cima disfarça com aquelas grossas correntes, telefonam a ninguém naquela língua, ao diabo, vai ver. Mas o sujeito que me encara, cadê? Cadê a parceira de turbante? Sumiram? Eles estão juntos, suspeitam de algo. O comparsa grandalhão os avisou, deve ser o chefe. Eles vão retaliar. Não posso baixar a guarda, agora.”

O relojoeiro está preparado. Aquilo foi longe demais, mas agora ele pode se defender. Lembra o que o pai dizia, nas raras vezes em que o velho quebrava o silêncio na oficina: cada ferramenta no lugar; usou, volta pro lugar; toda ferramenta tem nome e função; jeito e força, cada uma pede jeito e força; às vezes, mais jeito que força. Às vezes, mais força que jeito.

“Certo, pai”, diz, em voz alta, como se o velho estivesse presente. As ferramentas estão organizadas, limpas e ordenadas, como o pai ensinava. Todas para a hora certa e a tarefa certa.

*

Era uma quinta-feira, e Jurandir põe os óculos a meio nariz: conserta um relógio difícil naquele dia chuvoso. Dia de chuva é péssimo para o comércio de rua, ninguém passa. Na Galeria Novo Século, com calçadinhas elevadas, um regato se forma na ruela central e escorre pelas pedras portuguesas em direção à rua lá fora, onde impera o inferno de gritos e ruídos e palavrões. Há tempos Jurandir não caminha mais ali. Aquilo virou um circo de malucos. Aqui na galeria, sem fregueses por causa da chuva, ele termina o difícil reparo e separa o item consertado, à espera do cliente. Depois, pega o Zagor: uma nova edição chegou via correio. Diverte-se com o herói e já entende tudo que lê. Está afiado no italiano. A viagem a Roma está marcada, aliás: ano que vem, no outono de lá: nem tão frio, nem tão quente. “Ano que vem, se Deus quiser. Tudo marcadinho.”

Lá fora escurece em pleno dia. Troveja e relampeja, e os grossos pingos d’água tiritam no piso. Jurandir lê o fumetti com os óculos atados pela correntinha atrás do pescoço. Distrai-se enquanto a água escorre galeria abaixo. Eis que surge um vulto em frente à relojoaria, todo encharcado: o magricela tribal.

Jurandir se assusta, mas recobra a vigilância. Tenso, tenta raciocinar friamente, domina-se. O tribal ensaia um passo e hesita um pouco. Quer se aproximar, parece. É hoje. Devagar, Jurandir abre a gaveta sob o balcão, silencioso, oculto. Repousa a mão na ferramenta certa, para a hora certa e o serviço certo. É hoje.

É hoje: o sujeito dá um passo e se aproxima. Leva a mão ao bolso. Três tiros. Queda.

6

Na chuvarada, ninguém ouve os estampidos. Jurandir tem o braço direito paralisado e teso, empunhando o Taurus calibre 38, cano curto, aço polido e reluzente. Três tiros no peito do sujeito que veio assaltá-lo. “Na hora certa! Legítima defesa, legítima defesa”, pensa, eletrizado. “Era ele ou eu, ele ou eu. Invasão de propriedade, legítima defesa. Ferramenta certa. Mais jeito que força.”

Logo chega o sujeito robusto e vê o companheiro caído. Desespera-se, urra umas linguagens quando vê a arma empunhada e não ousa entrar. Circula o chafariz defronte e some. “Vai, desgraçado, foge. Aqui, não.”

Minutos depois, chegam dois policiais. “Agora eles aparecem?”, pensa Jurandir. Os policiais estão com o tribal corpulento. No novo século, a polícia muda de lado. Só ver a televisão: o errado é certo, o certo é errado; o rabo abana o cachorro; tudo invertido. Proteger o homem honrado, quem protege? Ninguém, nem a polícia. Direito, só para bandidos. É o mal do novo século. A gente que tem que se defender.

— Fica aí, senhor. — diz o primeiro policial, com a mão espalmada.

Jurandir está com as mãos ao alto, como nos filmes, embora o policial não ordenasse aquilo. O oficial empunha sua pistola para o chão, entre o balcão e o morto, que é revistado por um segundo policial abaixado.

— E isto aqui? — o policial abaixado tira um volume qualquer do bolso onde o tribal pusera a mão, em seu último movimento. O agente se levanta e deposita o item no balcão.

— Um relógio. Era daqui, senhor? De sua loja?

O segundo policial abre a caixinha. Há uma nota fiscal toda dobrada. Abre e lê: CompraOnline.com. Coloca no balcão a caixinha aberta com o relógio e a nota fiscal, interrogativo. Jurandir nota algo. Seu sangue congela.

— Sem bateria. Não tem bateria. Ele queria trocar a bateria do relógio! Eu matei um inocente? Eu… matei? Meu Deus do céu! — sussurra, incrédulo. Senta-se no banco junto ao balcão, leva as mãos à cabeça abaixada, chora-não-chora. Suas pernas tremem. Levanta-se novamente e estende os punhos. Diz, trêmulo:

— O senhor me prenda, eu matei esse homem. Cometi um assassinato! Eu matei! — Jurandir esmurra o peito num mea-culpa, para aplacar a angústia. — Fui eu, policial! Me entrego.

— Fica calmo, senhor! — diz o primeiro policial, ainda sem guardar a arma — Vamos para a delegacia e o corpo fica aqui para a perícia. Fica calmo, se acalma.

— Os senhores podem me prender logo, não vou mentir. Fui eu que matei ele, cometi um assassinato. Vou pagar pelo meu crime. Podem me levar, agora.

— Vamos, o senhor nos acompanhe por gentileza à delegacia.

— Tudo bem — levanta-se o relojoeiro, esfregando as mãos nos olhos, ainda atrás do balcão — preciso trancar a loja e podemos ir. Vou pagar tudo que devo à justiça. Assumo tudo na frente do juiz. Eu matei um inocente, meu Deus do céu… meu Deus do céu…

— Não, o senhor vem com a gente para a delegacia. Outra viatura vai chegar e olhar a loja pro senhor.

— Não, eu preciso fechar a loja. Não, não… eles vão entrar aqui, vão roubar tudo, aquele bando que fica no acima do chafariz, aquele bando em frente à casa de câmbio. Eles vão se vingar, acabar com tudo aqui.

O policial se enerva. Dá nova ordem, mas Jurandir insiste em fechar a loja, baixar a porta primeiro. Sugere arrastar o corpo para fora e aguardar tudo na calçada, cobrir com um pano ou algo do tipo, debate. Não entende que a loja agora era cena de um crime. O policial perde a paciência e aponta a arma ao relojoeiro, para convencê-lo de vez.

— Sai agora, senhor! Sai, vamos logo!

— Sem trancar a loja?

— Sem trancar a loja. Já, anda!

Quatro décadas com ele, duas com o pai. Um homem honrado, que cumpre o dever de consciência. Que amou a esposa até o fim, resistiu à tentação daquela outra; que casou bem as filhas e tinha duas lindas netinhas. Que sonhava ir à Itália e aprendia o idioma para isso. Tudo graças à relojoaria da Galeria Novo Século.

Rispetto!

— O que o senhor disse?

“Não sem a loja”, Jurandir pensa, num segundo. Discreto, puxa o Taurus calibre 38, cano curto, aço polido, em direção à têmpora direita.

Um disparo.

O policial abate Jurandir com o braço a meio caminho. Ele tomba sentado no banco, de olhos abertos, com a arma perfeitamente empunhada na mão direita.

Mais jeito que força.

*

No dia seguinte, a porta de aço está abaixada. Em frente, o robusto amigo do homem assassinado monta guarda em frente à relojoaria.

— Não deixa nenhum curioso por aqui, ouviu? Qualquer coisa, me avise pelo rádio — diz o síndico da Galeria Novo Século.

Sissiô! — diz o estrangeiro corpulento, obediente. Era o novo vigilante contratado pela administração da galeria.

Dali a pouco, chega a mulher de turbante e túnica, num verde cítrico muito contrastante. Diz ao vigia e conterrâneo:

— Cadê o siô? Vai abrí a lojá? Vim comprá relojô. Agora eu tem dinheiro todo, ó.

A mulher abre a bolsa candidamente e mostra ao conterrâneo as cédulas novinhas em folha, recém-sacadas na casa de câmbio: todas bem enfileiradas na carteira.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/08/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Clarice e o
claricismo

Tempo de leitura: 2 minutos

Por volta de 1975, por aí, chegou ao conhecimento de dona Clarice Lispector que três escritoras do território nacional inauguravam o gênero literário claricismo. O claricismo consistia numa escrita toda calcada em epifanias, porém de segunda mão, baseada nos livros da autora.

Epifanias em nada parecidas com as reais de dona Clarice, que à altura não era nenhuma mocinha e já andava meio irritada com tudo e mais um pouco (“cansaço”, mentia, se perguntada; no climatério, queria mesmo é que não lhe enchessem os pacovás).

Os tais livros de claricismo irritavam a autora, pois continham apenas anacolutos com pontuações de soluço e alegorias fracas (“minha dor não tem nome” etc). Dona Clarice, então, disseram, ficara tão pê da vida por tentarem imitá-la sofregamente — justo ela que detestava se ler, imagine ler cópias ruins de si —, então ela ficou tão pê-da-vida que decidiu sentar-se com sua Olivetti verdinha no sofá e escrever uma novela sem epifania de coisa nenhuma, uma novela de macho narrada por macho, uma novela bem da machista com final decepcionante, não só trágica como besta, ou trágica de um jeito besta.

Dona Clarice então criou um narrador fictício Rodrigo S. M., que contava a história de certa alagoana vinda ao Rio de Janeiro só para sofrer, menina bobinha de nome Macabéa. Dona Clarice mal coloca o ponto final e intitula seu livro A abestalhada, mas depois o editor lhe telefona, aconselhando para ser aquela mesma Clarice de sempre, pelo menos no título, posto que ela vendia bem e coisa e tal.

Então dona Clarice pensou “vou dar um título meloso e tapear essas fulanas da cópia barata”, e ela dá ao livro o título de A hora da estrela — que de estrela mesmo não tinha nada —, só para enganar as plagiárias, e este foi seu último livro publicado em vida.

Bem, essa história jamais existiu. Porém o claricismo existe e perdura até hoje. Inventei a lorota, inclusive para dizer que dona Clarice narrando como homem fez foi muito bem e, creio eu, melhor que muito homem com agá. Se viva, certamente ela faria mais do gênero e daria uma guinada na carreira, isso se antes a vida não lhe desse outra guinada logo à frente, guinada sorrateira, guinada traiçoeira e guinada lamentavelmente triste.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/07/2023



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(Selo criado por Beth Spencer)

A lição de
João Cabral

Tempo de leitura: 5 minutos

Trabalhei na famigerada Faria Lima entre 2013-15, no departamento de marketing de um banco não muito famoso. Como minha hora de almoço fosse mais prolongada (1h30, mas se passasse um pouco não tinha problema), eu aproveitava o intervalo para, além de obviamente almoçar, caminhar um pouco.

Andar sozinho não era problema para mim, pelo contrário. Aproveitava a caminhada para refletir e observar ao redor, algo que adorava e adoro fazer. Foi assim que descobri a biblioteca Anne Frank, meio escondidinha ali no bairro: toda murada com tijolos aparentes, o predinho térreo tem uma bonita arquitetura dos anos 1960 e, com charme peculiar, resiste discreta aos espigões envidraçados das redondezas.

Pois ali repeti um feito da puberdade, aos 12 anos: fiz uma carteirinha da biblioteca pela segunda vez na vida (agora aos 34), não sem antes assinar a entrada no livro de presença da recepção. Aquilo me trouxe certa emoção do passado.

Eu pegava livros de poesia emprestados para ler no Parque do Povo, a poucos metros dali. Certo dia, resolvo levar uma antologia de poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto, cuja obra não conhecia até então, só ouvira falar o nome.

Quando me aproximo do balcão da recepção, lembro bem a cara de espanto do bibliotecário, um senhor de cabelos brancos chamado Sérgio, “Seu Sérgio”. Ele disfarça a surpresa — com toda razão, imagino —, pois nenhum farialimer, mesmo técnicos do baixo escalão como eu, costumava entrar naquela biblioteca pública municipal para levar emprestado qualquer livrinho, quanto mais um volume de poesias.

Mas lá estou eu a ler o João Cabral no parque, quando este breve poema chamou-me a atenção:

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Como tivesse de devolver o livro dali a uma semana, fotografei o poema com o smartphone e o guardei. Tenho até hoje a foto nas clouds da vida e ainda o releria outras vezes. Não sei, aquilo de certo modo ficou na minha cabeça, pelo seguinte: no período, eu começava a tomar umas notas que me vinham à mente — alguns versos de pé quebrado, umas reflexões; frases, epigramas, máximas; às vezes, anotava impressões a respeito de certas situações da vida e do cotidiano; tudo muito pessoal e subjetivo. Mantinha uma espécie de diálogo interno por meio daquelas anotações, também com a intenção de treinar a escrita.

Passado um tempinho, o material se avolumou, ganhou corpo; e eu ficava pensando se aquilo não serviria para algo mais sério, para publicar de algum jeito. Mas logo me retraía, pois lia gente bem melhor e mais experiente que eu a publicar ótimos textos em blogs e a ganhar popularidade nas redes sociais, com mérito justificado.

Embora chegasse a arriscar um bloguezinho de poesia e outro de prosa com aqueles textos, não dizia a ninguém, pois no fundo não me achava muito no direito de sair divulgando aquilo. Achava que fazer uns versos e uns textinhos pretensamente inspirados e sair compartilhando por aí só aborreceria aos outros, quase ninguém se interessaria pelas tentativas de um anônimo. O mundo não precisa de mais um diletante, pensava.

E não nego que ainda penso assim, vira e mexe o pensamento volta. Essas coisas nunca desaparecem totalmente. Aquele retraimento ainda ocorre hoje, embora de modo diferente. Varia de dia para dia, ora mais, ora menos, conforme o humor e o astral, digamos assim.

Voltando ao poema, imagino que o diplomata João Cabral — já imortal da ABL à altura da publicação, em 1975 — tivesse rabiscado aqueles versos em sua mesa de trabalho, como quem não quer nada; e, meio involuntário, fez uma peça importante (para mim, ao menos), enquanto aguardava na embaixada em Mauritânia um possível telex da capital federal — que decerto não mandavam tanto a terras tão ermas.

Mas que tem o poema de especial, em cujo sentido refleti depois de ler e reler algumas vezes?

Que toda arte ou mesmo tentativa de arte que fazemos, não importa o quão amadores sejamos, nunca será à toa, em vão; que aquilo que com sinceridade e entrega escrevemos — ou pintamos, desenhamos, compomos, cantamos, enfim —, tudo que expressamos artisticamente, uma vez divulgado, servirá de algum modo a alguém, nalgum momento e lugar; e que, justamente isso de chegar ao outro, ainda que somente a uma pessoa, valerá a pena este esforço do fazer, como diz o poeta recifense, mesmo que para criar algo tenhamos de abrir a fórceps o tempo diário e conjugar o trabalho criativo com outras tarefas a comprimir as horas do dia.

Pois costuma ser assim: de tantas prioridades aparentemente mais importantes que a criação artística livre e espontânea — sempre sujeita ao desânimo e ao abandono, pois demandada por absolutamente ninguém exceto nós mesmos —, deixamos de lado o registro de nossa expressão autêntica (que vale muito, mesmo que ninguém dê a menor pelota), e os anos passam, a vida passa… e deixamos o potencial artista em nós simplesmente morrer. É o caminho mais natural, que mais ocorre todos os dias com tanta gente, em variadas partes do Brasil. Tenho certeza.

O poema cabralino se dirige ao “artista inconfessável” — epíteto que o poeta atribuía a si, inclusive. Claro que, no nosso caso, embora quem sabe sejamos inconfessáveis por justas razões, não somos nem devíamos ser isentos de interesses. Temos em nós todos os sonhos do mundo, já dizia outro poema. Quem não gostaria de viver de sua arte, de sua criatividade e ofertá-la de bom grado a quem possa interessar? Quem não queria ver-se livre das contingências, da esterilizante responsabilidade diária, do trabalho alienado, e dedicar-se a algo belo, significativo, relevante?

Sim, queremos tudo isso. Sobretudo porque pouquíssimos nesta sombra do Ocidente podem viver da própria obra e dedicar seu tempo a ela, enquanto contempla a vista de sua bela casa campestre. No dito mundo civilizado, tal privilégio não costuma ser tão raro como aqui.

Bem, mas nada de lamúrias: sonhemos, que sonhar não custa nada, diz o chavão. Como João Cabral e seu “artista inconfessável”, sejamos impelidos a criar e fazer, apenas por fazer, apenas porque sim; pois a obra nunca será vã ou dirigida a ninguém, diz o poeta. Ela será útil a alguém — ainda que se chame Ninguém —, e sempre chegará num lugarzinho diferente de onde partiu, mesmo que jamais saibamos disso.

Ora, a prova está bem aqui, não? O poeta-embaixador nunca pensaria que certo fulaninho leria seu poema no século vindouro, tirasse lições dele e tratasse dele no futuro, divulgando-o para mais gente, numa corrente de transmissão invisível e dinâmica. Pode não parecer, mas afinal isso denota um poder grandioso e sutil, o poder contido no simples ato de criar.

Logo, significa que não há arte verdadeira que seja inútil, pelo contrário; se impelido, se chamado, o artista inconfessável deve somente fazer e deixar o resto com Deus e com o destino.

Mãos à obra, pois.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/06/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)