O homem-cápsula

Um tipo comum na cidade é o homem-cápsula.

Todo dia ele acorda em seu apartamento-cápsula. Veste-se e sai para trabalhar, tomando o elevador-cápsula do prédio-cápsula onde mora, até o estacionamento. Entra em seu veículo-cápsula e dirige-se ao trabalho.

Uma hora depois (se não chover, se chover leva mais tempo), o homem-cápsula adentra o moderno edifício-cápsula para acessar seu escritório-cápsula todo envidraçado e sem janelas. Meio-dia ele almoça na copa-cápsula, após receber o almoço delivery: homens-cápsula são muito ocupados, não têm tempo a perder.

Às seis da tarde, o homem-cápsula deixa o escritório-cápsula. Aguarda o elevador-cápsula aparecer no hall, lotado; desce ao subsolo; entra novamente no veículo-cápsula e retorna em direção ao prédio-cápsula residencial. Lá, sobe, via elevador-cápsula, de volta ao apartamento-cápsula. Ufa, finalmente! Exausto, resolve pedir comida pelo aplicativo, direto do aparelho-cápsula. O homem-cápsula está sem saco para cozinhar, hoje. O dia foi extenuante. Talvez amanhã.

Ah, mas não pensem que o homem-cápsula não é feliz! Ele até se distrai, ele até se diverte. Às quartas e sextas, ele malha na academia-cápsula e aos sábados, vai à balada-cápsula com a namorada-cápsula que mora numa cobertura-cápsula perto dali. Aos domingos, dorme até tarde e fica de pijamas: não sai do apartamento-cápsula por nada, porque ninguém é de ferro. “Meu filho, até Deus descansou” — justifica a si próprio, repetindo a frase da avó. Que nunca foi cápsula.

Então, é segunda-feira. A rotina-cápsula recomeça.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Pensando bem…
(vol. II)

O MEDÍOCRE só admira gênios mortos. São inofensivos.

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Ser do contra: a teimosia da impotência.

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Idiotas nunca mudam de opinião.

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Mentiras eficazes contém um pouco de verdade.

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Relativizar a beleza: a vingança elegante da feiura.

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Curioso: a verdade não irrita ao mentiroso, mas ao idiota.

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Inexistem: 1. unicórnios 2. pessoas que mudam de opinião mediante argumentos contrários.

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Gente alegre busca a agitação; gente feliz, a calma.

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Homossexualidade, ou solidariedade amorosa entre similares.

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Acolheu a mentira por conveniência? A verdade se imporá pelo trauma.

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Não é realmente inteligente se não lê poesia.

O ensino no
Fernandisburgo

INVENTEI um país, o Fernandisburgo. No Fernandisburgo, o ensino é assim:

A criança ingressa aos 8 anos. Aprende língua portuguesa e latim (o Fernandisburgo é bilíngue): leitura, gramática, compreensão textual, produção literária e retórica. A modalidade ocupa 50 por cento da grade curricular.

Em matemática, leciona-se intensivamente as quatro operações fundamentais (e um pouquinho de frações, porcentagem, matemática financeira e geometria básica). No ciclo intermediário, contabilidade. No fim do curso, exponenciação e radiciação, de leve. Preenche 30 por cento da grade.

Depois, estudos de cidadania e artes manuais completam o currículo: ambas as disciplinas ocupam 10 por cento da grade cada uma.

A duração do curso é de sete anos. Aos 15, o jovem, após orientação vocacional, pode ser encaminhado a um curso técnico (há opções para diversos ofícios úteis à sociedade) e começa a trabalhar. Caso prefira e demonstre aptidão, faz um exame preparatório e segue carreira acadêmica, como pesquisador ou docente.

Somente na formação universitária o aluno aprende especificidades como logaritmos, angiospermas, gimnospermas, ácidos, bases ou sociologia.

Para a carreira artística, nenhum diploma é requerido: o único critério é o talento reconhecido pelo público e crítica, apenas.

No Fernandisburgo, as empresas são proibidas por lei de exigir diploma superior para funções técnicas de nível médio.

Seremos uma nação próspera e um berço de gênios, com toda certeza.

Soa absurdo? Acaso seu país tem algo de melhor para ensinar ao meu?

*Ah, sim, quase esqueci. O Fernandisburgo não é filiado à ONU.

Os sem-carisma
e as redes sociais

CARISMA ou você tem ou você não tem, já dizia certa propaganda. Quando se tem carisma, até palavrão vira poesia. É um feitiço misterioso, um charme inexplicável, um solzinho particular o carisma: dele todos querem ficar pertinho, se aquecer, se iluminar; flores em botão abrem-se ante os raios que o carismático emana.

Mas não vou falar dos carismáticos, muita gente já tratou deles. Quero falar com você, pessoa normalzinha, de uma aura meio acinzentada e sem graça; você que não desperta interesse algum. Já era hora de alguém falar com você. Vou identificá-lo como sem-carisma, para facilitar as coisas, ok?

Os sem-carisma sofrem em tempos de rede social. Quando alguém carismático posta algo banal na rede, coisa bobinha, uma foto da obturação no dente por exemplo, ganha logo uma penca de likes, risinhos, comentários fofos e engraçados, solidariedade “ui, Rê, doeu? Tá tudo bem? S2”. Quem vai lá no perfil do carismático vê: 4.990 amigos, 12.955 seguidores (ou muito mais). “Como assim?” pensa o sem-carisma. “Essa daí só posta bobagem!” Fale a verdade, dá uma inveja…

Com frequência, o sem-carisma é justamente aquele que comenta posts de carismáticos. Caixas de comentário são o habitat dos sem graça nenhuma, é preciso dizer. Muitos, almejando um destaquezinho que seja, vivem à sombra dos charmosos, como se a interação virtual os jogasse instantaneamente para o lado dos bacanas. O truque não funciona: então, deprimidos, eles verificam que continuam lá, no cantinho dos desinteressantes, mesmo com aquele comentário tão sublime, tão pertinente… Pôxa, é duro.

Sabe o que acontece, sem-carisma? Você é legal, sim. No fundo, é. Só que algo trava contigo, algo não decola, falta uma coisa astral, entende? De modo que os haters são o efeito colateral de ser sem-carisma, um estado extremo adotado por aqueles que cansaram de tentar ser legal na internet e não conseguiram. Daí, viram a casaca, revoltam-se.

A coisa é séria. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem até cursos de carisma, de charme. Psicólogos, coaches, especialistas auto-proclamados de todo tipo oferecem, por módico valor, a arte do magnetismo pessoal. No fundo, fica implícito que timidez e introversão são uma espécie de doença que deva ser curada. Eles vendem que carisma se aprende. Pessoalmente, duvido.

Deixar a timidez e o estilo reservado é contrariar a natureza. É negar a própria personalidade (e aqui descambo para a auto-ajuda). O mundo parece forçar quem não tem carisma a tê-lo, compulsoriamente. Daí, você finge. E sofre.

Tá, antes que narizes formiguem e olhos marejem, vou ao meu ponto: dá para sobreviver sem carisma nas redes? Claro que dá. Em primeiro lugar, não tente fingir, não force para ser agradável e engraçado, bancar o divertido, algo assim. Sem-carisma quando posa de carismático, ou é ignorado sumariamente ou ganha lá uma aprovaçãozinha assim pequenininha, uma caridade, por pura dó — o que é uma forma de humilhação.

“Seja você mesmo” diz o velho conselho. Não tente imitar ninguém. A essa altura você já entendeu que não tem carisma mesmo, e daí? Você não pode brilhar de outra maneira? Talvez não seja o popular, é verdade, mas se sentirá confortável consigo mesmo quando nem se preocupar mais com isso. Cá entre nós: você quer realmente ser popular? Quer ter puxa-sacos, inimigos, stalkers, haters e coisas do tipo? Receber inboxes de gente esquisita? Olha, viver bem e em paz é muito melhor. Perfil lotado em rede social é vulgar, e pode ser um aborrecimento no fim das contas. Administrar reputação virtual — tem coisa mais chata?

Carisma parece a coisa mais importante do mundo, mas não é. “Também não acho, mas duvido que tudo isso aí acima funcione.” Funciona sim, meu pobre sem-carisma desiludido. Funciona sim. Veja, você mesmo chegou até aqui e leu tudinho, não leu? Então.

Noir

Miro tua foto que o tempo descoloria
Nela enamorei-me de teus límpidos olhos:
Penetram minh’alma até íntimos refolhos
Ó delicada musa, namorar-te-ia!

Em vão ano nasci, vã a hora em que morrias
Mas unirei-me a ti, minha menina-dos-olhos:
Magia ou sortilégio, qualquer meio escolho
Pois tal amor veraz eu jamais desprezaria

Parto sem temor, que deixar-te é agonia
Cativo voluntário, prisioneiro a voar:
Volto rumo a outrora, à sombra e luz noir

Cores, que são elas? Frívola perfumaria,
Tua expressão me basta, é perfeito convocar:
A mim requeres, sinto-o: diz-me teu lindo olhar!

Pensando
bem…

SABEDORIA é ser senhor das próprias reações.

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Não há canalha que não seja gentil.

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Impossível: convencer um burro da própria burrice.

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Indignação de brasileiro, no fundo, é pura inveja.

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Quem fala asterístico não dá certo na vida.

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Apontar os maus não faz de alguém um dos bons.

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A moda cria; a indústria massifica; a mídia populariza; o povo vulgariza; a moda acaba. E o ciclo recomeça.

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Não há medíocre insatisfeito consigo mesmo.

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Inteligentes se cobram demais; os idiotas se acham preparados.

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O bom gosto é sempre discreto.

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Não leu romance e poesia? Tudo o que leu, não valeu.

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Ama multidões os muito tontos e os muito espertos.

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Medíocres só elogiam consensos.