Há solução?

A ARROGÂNCIA da humanidade atual reside na noção de que todos os males sociais e humanos podem ser resolvidos pelo próprio homem. Para tudo há uma solução prática, à mão, basta vontade e um projeto. Por trás dessa noção há um pensamento arraigado, oriundo das filosofias modernas e filho da revolução francesa, que enxerga na política a redentora laica da humanidade.

A arrogância da solução – chamo assim – é patente na política oficial e no trabalho de think tanks, de ONGs, de ativistas e engajados mundo afora, que agem como sacerdotes sem divindade. É a ilusão do mundo ocidental: a mania de resolver, na marra e artificialmente, os males da sociedade, em nome da “democracia” e de valores abstratos, sem qualquer raiz espiritual; ao contrário, por vezes, negando-a.

Males da alma culminam nos males sociais, e estes não podem ser entendidos em profundidade, por mais que se debruce sobre eles e se tente estudá-los “cientificamente”, em departamentos de Universidade e órgãos de pesquisa. As causas espirituais do mal não podem ser detectados por qualquer conhecimento puramente humano.

Seja pelo diálogo, pelo protesto, pelos discursos; seja pela violência, guerras ou conflitos; seja pelas negociações nas mesas redondas internacionais, as nações parecem dar voltas em círculo, acreditando chegar a algum progresso humano com base na mera fórmula política de administração da sociedade. Tudo advém da idéia de que o homem é autossuficiente, evolui necessariamente, redime a si próprio. Deus? Superstição vaga, distante e tola, que nós, democratas e plurais que somos, concedemos às massas o direito de acreditar e seguir, enquanto assim desejarmos.

Mas a verdade é esta: há problemas para os quais não há solução. Nenhum poderoso diz isso abertamente, ninguém confessa. Talvez seja por orgulho, por interesses mesquinhos, ou mesmo para não espalhar o pânico geral. No “reino laico”, as poucas melhorias possíveis são mecânicas e efêmeras, sem amor ao próximo, sem nenhum lastro na Eternidade.

Quando as medidas humanas fracassam, o establishment não admite sua fraqueza patente e vexaminosa. Parte, antes de tudo, de um orgulho cheio de si, o qual, quando falha por completo, culmina em morticínio: uma olhadela nas experiências políticas desastrosas do século XX demonstra isso claramente: nunca se matou tanto quanto na era dos “regimes políticos ideais”: nazismo, fascismo e comunismo (este último ainda vivo, defendido, disseminado e plenamente operante).

Por outro lado, a abordagem cristã, modesta e humana, admite sua limitação. A caridade cristã trabalha em melhorias pontuais, aqui e ali. A força motriz da assistência social, no cristianismo, é o amor ao próximo, que atua pela disposição e boa vontade das pessoas comuns dispostas a ajudar. Não refiro-me ao cristianismo oficial, vinculado à estrutura de poder, o qual sempre se transmuta em outra coisa. Falo da base cristã na família, na paróquia, no vilarejo, na comunidade local; caridade que nasce na convivência natural entre as pessoas, alheias à ingerência de grandes instituições e às ideologias pretensamente “progressistas”.

Sem Deus, sem Cristo, não há boa vontade para estender a mão a quem precisa. E a boa vontade, quando inexiste, primeiro relega seu dever a um ente abstrato, o Estado e seus instrumentos; incapazes de prover a necessidade prometida, o Estado falha. A sociedade, desamparada, mergulha no cinismo, no egoísmo, na apatia e no niilismo: ninguém confia em ninguém, a descrença é geral. Neste estágio, para não cortar os pulsos ou algo parecido, as pessoas recorrem à busca de satisfação e prazer, a qualquer custo. A sexualidade, supervalorizada, é distorcida e instrumentalizada, perdendo seu sentido benéfico e natural.

Só o Criador alegra e preenche a alma do ser humano, dando-lhe significado. Não pode haver boa-fé e amor ao próximo sem se crer no Bem superior, Cristo: de sorte que nunca houve época tão cínica quanto a nossa. Num mundo assim, o bem não se estabelece, não enraíza e não dá fruto. O resultado é a infelicidade geral e, no limite, a barbárie.

*Ilustração: Matt Cunningham

poema veloz

vida prática, tão prática
que precisa se arranjar:
sem ter tempo pra poeta
— dá licença, tenho pressa!
(tenho é nada na cabeça)

          há que correr
          há que pagar
          há que comer
          há que estudar
          há que obter
          — e a lugar algum chegar.

trabalhar é o dever:
põe o ser pra funcionar
sem saber pra quê viver.

Pra começo
de conversa…

ESTE PRIMEIRO post sai numa mídia um tanto antiquada: o blog. Eles já tiveram sua era de ouro, entre 2000 e 2010, até ceder um bocado da audiência às redes sociais. Pessoalmente, sempre gostei de blogs. Gosto até hoje. Talvez estejam meio fora de moda. Para mim, sem problemas. Sou da geração que viu a Internet nascer, crescer e evoluir (ou involuir, a depender da abordagem) e ainda leio blogs com frequência. Por essa mídia conheci ótimos escritores, alguns profissionais mainstream hoje em dia, revelados por eles. Por isso, creio que eles ainda possuam um público fiel.

Mas por quê, passados esses anos todos e ciente da perda de audiência – especialmente para o Facebook – por quê alguém ainda publicaria seus textos nesta mídia, de modo tão retardatário? Problema de timing?

Possivelmente seja, não nego. Porém, há outras razões para se fazer um blog. A maior delas é a qualidade de conteúdo que ele pode oferecer. Nos Facebooks da vida, o texto entra no limbo das timelines entulhadas de vídeos, memes, virais, propagandas indesejadas, o escambau, que pipocam via algoritmo. Não, não quero ser chato: admito que isso tenha lá seu lugar, sua graça. É a bola da vez. Mas as idéias ficam ali, espremidas no meio daquilo tudo, torcendo para que alguém as leia, para então perder-se instantes depois.

E mais: no seu perfil de Facebook, os leitores fatalmente serão seus amigos e possíveis seguidores. O problema é que, a menos que você seja um influenciador profissional, nem todos estarão interessados no que você tem a dizer; ao contrário, é bem capaz que eles, ao verem o que você escreveu (verem é o verbo, pois passam rapidamente pelo post e dificilmente lêem), te ignorem ou te achem um mala sabichão, algo metido à besta ou no mínimo alguém esquisito. Convenhamos, não é exatamente a situação ideal para quem ousa escrever algo mais denso, com alguma substância.

E quanto ao blog? Em contrapartida, ele possibilita uma coisa interessante, bonita mesmo: de certa forma, ele é escolhido. A pessoa visita a página como quem vem à sua casa e o melhor, faz isso porque quer, porque se interessa. Quer um conteúdo mais relevante, mais interessante, quem sabe um escape para sair do bombardeio alucinante (ou azucrinante) das redes sociais. É um alívio para quem, calmamente, busca respirar ar fresco ou tomar um “cafezinho virtual”. E não é isso que as redes sociais deveriam ser, no fim das contas?

Então, ficamos assim. Publicarei por aqui coisas legais, outras nem tanto, algumas ranhetices, filosofices, literatices, e por aí vai. Tentarei não ser piegas, cabotino ou outras coisas feias. Com o tempo, a gente pega o jeito…

Por enquanto, muito obrigado e seja bem-vindo. Até!

*

P.S. Quanto a mim, pessoalmente, não tenho credenciais vistosas nem carteiradas a dar, sinto muito. Não sou famoso, titulado, condecorado, acadêmico, nada do tipo. Tenho um, aspas, diploma universitário, o que significa um passe precário para o infame “mercado de trabalho”. Escuso-me a apresentá-lo. O que eu gosto é de escrever e escrevo há um tempinho. Tenho outro blog, de poesia, há três anos no ar. Se quiser dignar-se a clicar, deixo o link: www.letranascente.tumblr.com. “No tumblr, Fernando?” Sim, no tumblr. É que sou tímido.

*Ilustração: Eugenia Loli

Lojinha

A lojinha velha e decadente:
Produtos sujos pendem das prateleiras.
A loja escura, quase sem freguês.

A cidade grita lá fora, fere o silêncio.
O tempo passa lá fora. O carro passa lá fora.
A ambulância canta, estridente, pede abertura:
De tudo acontece na via suja.

A lojinha parada, sempre aqui.
Sempre invisível. Sempre aberta.
Não sente o tempo, a ruga na cara dos outrora jovens
E o agito da geração sem nenhuma chance.

A cidade que não melhora,
Toda a gente que não muda:
O grosseiro, o crente, o mendigo,
A moça na bicicleta, o louco que grita
Com o demônio que só ele vê.

O homem sanduíche, envolto em sua placa.
A mulher distribui papéis cujo destino é o chão:
Lógica previsível, fato inevitável.

Esta é a cidade, assim é a avenida
E aqui, a lojinha. Aqui jaz a lojinha.
A prateleira triste, tão empoeirada!
De quê o senhor vive, se quase nada vende?

Mas eu entrei aqui. Avisto um item raro:
É meu! Não resisto: comprei.
Minha vinda à lojinha valeu a pena, enfim.

A tela

Eis-me defronte à tela branca e fria
Pincéis, paleta: preparo mil cores
Inspira minh’alma os muitos amores
Que obtive de ti, musa fugidia

Preencho e misturo suaves pinceladas
Deslizo o óleo na superfície nua
E eu que deslizava na pele tua
Tenho lembrança, tinta e mais nada

Matizes confundem, nada aparece
Nuances não vejo, nem visões sutis
Tal é nosso amor, que falha e fenece

As cores não vivem, há só luzes vis
Meu quadro está opaco, opaca é minha prece
Amar não queres: a tela não te quis

Além

Ninguém sabe o que há para Além:
sabe-se, porém, que o Além há.

Muitas coisas ensinou-me
a religião; contudo permanece,
intocado, o mistério

Isto, a que chamam pecado
talvez devêssemos chamá-lo,
simplesmente, controle?
(seria mais honesto).

O Infinito, o todo inimaginável
pensaram feito pessoa:
rosto, porte e imaginação.
então, lidamos com Alguém
a quem chamamos Deus.

Fé: eis o máximo que é dado
do Além a nosso ser limitado

Ninguém conhece o Ser,
a contingência inabarcável.
calem-se, pois, sacerdotes:
não sabem do quê falam,
qual todo mundo: nada sabem.

O mundo é idéia, idéias sem fim,
e há juízes demais, por toda parte:
iníquos, hediondos, pútridos, eles fedem,
feito eu, feito você e qualquer outro

A pureza, o Ser essencial, o mortal
jamais alcança. Somos cegos e cegos,
tontas alminhas, de costas ao etéreo:
indignos de todo transcendental.

Da virilidade

O varão de outrora:
singrava mares,
explorava terras,
subjugava feras,
erguia altares.
Nas longas jornadas, saudosas ausências:
donzelas amadas a reencontrar.

O mundo atual, arqui-desbravado, tecnológico:
parafusos e porcas, amontoados.
Mil telas luminescentes, nada a observar,
faces estranhas a nos ordenar.

Códigos tolos em tudo apontam:
o quê fazer,
em quê pensar,
o quê comer,
o quê negar e o quê aprovar.

Foi-nos embora
a auto-determinação,
a autodefesa,
a subsistência.

Quem ainda planta pra colher?
Quem ainda caça pra comer?
Há sempre um fantasma, desconhecido, distante
Pago para tudo por nós fazer

A força que antigas máquinas demandavam
trocou-se por toques em telas, delicados:
pensar não é preciso; basta operar.
Não há em nada disso sentido.

A vida do Homem tem sentido se plena
de nobre missão, o senso do bem, cumprir seu dever.

Por isso é que anulam a virilidade:
sem ela o Homem não pode viver

— não querem deixar o Homem viver.

Eu gosto
de livro

Gosto de livro.

Gosto de livro, arte visual.
Gosto de livro, papel, digital.
Gosto de livro até enquanto tal.

Gosto de livro, edição, autoria.
Gosto de livro, sebo e livraria.
Quase estudei biblioteconomia!

Gosto de livro: velhinho, seboso.
Gosto do cheiro que tem livro novo.
Gosto de livro, garimpo tesouros.

Ler livro é frescura? É literatura.
É disso que gosto, é nisso que gasto.

Nos livros descubro segredos de Deus.
E em cada leitura sei mais quem sou eu.

Ninfa

Leva-me, ó ninfa, em afável mistério
Que no rubro enlaçar de teus cabelos
Envolvo-me em teus cachos, tão vermelhos
Num doce voar, qual pássaro ou ébrio

Revela-me a alma, quem sou e não sabia:
Segredos sublimes, a mim mesmo ocultados
Mergulhe na essência e eu, maravilhado
Ouço mil cantos que eu desconhecia

Transponho o visível, em doce fantasia
Teus toques de seda perpassam-me amor
Acabam infortúnios, esvaem-se apatias

Passeio em tuas curvas, bela simetria!
Embevecido, transcendo minha dor:
Só tu, ó ninfa, restauras-me a alegria