Guerreiro ferido

Descansa, meu filho, agora descansa:
Despido esteja de amargos temores
Respira e resguarda tua esperança
Que os vis espinhos protegem as flores

Refaz já teu brio, galopa a vingança
Ergue tua fibra, vêm dias melhores
Um passo apenas, contempla a bonança:
Vão-se tormentas, saem dissabores

Junta teus cacos: sê, pois, confiante
Renova em teus olhos um brilho vivaz
Com fé prossegue, tenaz, sempre avante

Se ontem caístes, és sobrevivente
Esteja em perigo, ó inimigo mordaz
Retorna e conquista, grande valente!

Pichado amor

Num muro da cidade, a inscrição
profundamente prosaica, diz:
“mais amor, por favor”.
Assim reclama o neo-chavão.

Medito e penso: errado pedido.
Sai, desde a base, deslocado:
pois pede-se um amor medido,
um pseudo-amor, quantificado.

Querem amor em porções,
vendido em doses, multicores?
O que entendem ser o amor,
ó tristes almas pós-modernas?

Tomam por amor a vã complacência,
sentimento cortês, boa convivência…
Como amar mais, amar menos?
Há o amar, completamente.

Que é amar?
é negar-se, é sofrer, é crer, abdicar;
é coragem, é doar e não requisitar.
Peso e medida não tem:
o amor não se pode mensurar.

O único amor possível
é dádiva suprema:
virtude por meio da qual
todo bem deriva.
Nasce, flui, total, não parcial
vem do Eterno e inunda a vida.

Nesse uno amor, desnecessário é
rebaixar-se e implorar, em muro sujo,
por um sentir abstrato e obscuro
a desatentos transeuntes.

O violeiro

Todo dia, na rua do bairro fabril e decadente
o violeiro senta-se com sua viola.
Entre um acorde e outro, o caipira desraizado
levanta a aba do chapéu, cumprimentando
transeuntes e carros que o ignoram, apressados.

Ele, com intransponível disposição
mantêm serenos o olhar e o sorriso,
esperando qualquer moeda
ou um miúdo cair no chapéu
que ao chão jaz depositado.

Enquanto pedestres, atarantados,
não o olham, nem o percebem,
cada dia um pouco noto,
o pouco caso deste curioso retrato.

Chegará, pois, o dia:
operários em seu passo
patrões em seus carros
cruzarão a esquina, na diária rotina
e o violeiro não se achará mais ali:
     com seu chapéu,
     o sorriso ameno,
     seu semblante marcado
     o surrado instrumento.

Não lhe saberão o nome e a história de vida
se mesmo foi feliz sua existência.
E o bairro fabril, cinzento e decadente,
continuará cheio de atarefados passantes
e quase sem nenhuma gente.

Zeitgeist

Meus risos andam tão raros…
Quem dera ter a alegria fútil das ruas: não posso.
Não disparo chavões como se fosse inteligência.

Vida social é cumprir convenções:
o agir compulsório, facilitar convivências.
É o preço por preservar minha paz:
conviver é fazer deferências.

Ceder. Ser cortês a cidadãos
quase sempre indesejáveis.
Tolerância, exerço aos bocados:
baldes dela são derramados.
Estoques imensos de compreensão
a tolos que espocam, em borbotão…

Sou inferior a quem tolero.
Conformo-me:
eles receberão a virtude reclamada,
eles, privilegiados
eles, semi-reis.

Haverá algo mais doce
de que obter compreensão
e nunca ter de compreender?
Eis aí a conveniência dos estúpidos.

É uma época propícia aos idiotas
— azar meu ousar não sê-lo.

Receba eu, pois, todas as cobranças,
e pague-as em dia, uma após outra.
De volta? Ganhe desprezo, indiferença,
e de bônus, covardia.

Não é mesmo uma época propícia aos idiotas?
E eu ousei não sê-lo.
Quanto a eles…
Nunca foram tão felizes.

O muito

O muito aprender fez-lhe afetado.
O muito duvidar fez-lhe amargo.
O muito discordar fez-lhe cínico.
O muito falar fez-lhe raso.
O muito pensar fez-lhe instável.
O muito escrever fez-lhe pernóstico.
O muito ler fez-lhe pedante.
O muito doar fez-lhe miserável.
O muito guardar fez-lhe miserável.
O muito crer fez-lhe fanático.
O muito descrer fez-lhe estúpido.
O muito transgredir fez-lhe oco.
O muito criticar fez-lhe apático.
O muito aceitar fez-lhe joguete.
O muito negar fez-lhe desprezível.
O muito adiar fez-lhe inútil.
O muito apressar fez-lhe estéril.
O muito exibir fez-lhe banal.
O muito ganhar fez-lhe egoísta.
O muito perder fez-lhe indolente.
O muito amar fez-lhe carente.
O muito é vário e a lista não cessa.
O muito não presta.
O muito é um mal.

Escute, Catarina

Sabe de uma coisa, Catarina?
Foi tudo aparência. Mera fantasia.
Veja nossa vida:
tão séria, estabelecida, documentada…
Ela foi, de verdade, vivida?

Falo por mim: sempre fui lógico.
Tediosamente lógico.
E era pragmático:
Tão fácil é ser pragmático
antes do castelo desmoronar…

Pensávamos haver uma vida normal…
Que risível, Catarina.
Vida alguma é normal.
Normal é ponto de vista, menina.

Fizemos o mesmo, todo dia,
Não mudamos vírgula:
Isso não nos fez alguém normal.
Normal foi só a rotina.

E tanta gente viveu diferente:
eram exóticos aos nossos olhos.
Mas também eles viam-se normais.

Não fique surpresa, Catarina…
Eles diferentes, nós sempre iguais:
somos todos idiotamente reais.