Desafogo

Após a traição, o perverso sorriu.
— Deus, porque me deste consciência?
Pois ela agrava o mal a cada passo
E toda injúria pesa-me nos ombros.

Fujo e evito infortúnios;
Fujo de minhas contradições;
Fujo dum caráter claudicante;
Fujo do ridículo infamante;
Fujo do mal latente e potencial, errante.

Quanto ao perverso, o perverso não:
Ele faz o mal e se ri.
Dormirá ele leve, sem culpas?
Lhe doerá a consciência?
Como Asafe, vejo seu agir exato e frio…
Seus olhos não demonstram qualquer duvidar…
Segue e prossegue, confiante, altivo.
Ampara-se em quê? Apoia-se em quem?
Não tem consequência o seu errar?

(calo-me um momento e respiro…)

Indagações complexas num finito compreender.
Enquanto não há respostas, oro:
A Ti entrego meu viver.
Vingança não peço, tampouco justiça,
Pois não é justo meu querer.
Este fardo sinto e não posso esconder.

Leva-me para longe, ao Teu seio, Teu ar!
O mal do mundo cessará, assim? Não o sei…
Queiras Tu meu sofrimento encerrar.
Tua graça é tudo que preciso e rogo:
Venha com ela minh’alma abastar.

Do bem ao mal

O bem inicial, sutil e apaixonante
Despertou-me um ébrio e ingênuo amante:
Bem de cores mil, mui viçoso, tão vibrante
Envolveu toda minha boa vontade infante

Tal bem, que de início assim colorido
Murchou qual flor, e seu belo, exaurido:
Tornando – surpresa minha! – num mal dorido
O bem que enfim pensei ser meu amigo

A culpa, quiçá, foi de meu ego inocente:
Abrí-me qual uma rosa, puro e candente
Sem ver que rosa não é flor, somente

De espinhos é repleta, negando a perfeição
Assim é o falso bem, de igual incorreção:
Mal oculto há consigo e engana o coração.

Indignidade

quando não há mais que valorizar
fracassados ensinam a vencer
mentes cegadas fingem enxergar
criaturas vis assumem o poder

gente tão feia dita o embelezar
hipócritas lucram com falso ser
indolentes fazem-nos trabalhar
iletrados ganham para escrever

fúteis definem o quê admirar
néscios completos crêem entender
quem não conhece, mais tem a falar

há especialistas em nada saber
a alma brilhante vive a se anular
e indignidade mata o merecer

É verdade

É verdade, não sou o centro do universo.
               O mundo não existe por minha causa.
               Não passo de um medíocre — com esforço.
               Não sei escrever como gostaria.
               Não tenho dinheiro além do suficiente para sobreviver como gente.
               Sou brasileiro – não nego, não gosto: portanto, não alardeio.
               Sou esquisito; o que me traz certas vantagens (não conto quais são).
               Não meto-me na vida alheia: viva com suas escolhas e não reclame depois, eis a minha lei.
               Mudo década após década. Quando não mudar mais, “bem sei quem sou”, finalmente direi.
               Não exijo atenção: não mereço ser lido. Mas quem quiser — que honra! — seja bem-vindo.
               Desprezo a muitos, admiro a poucos e ignoro a maioria.
               Não me sinto bonito nem feio. Não penso no que vejo ao espelho.
               Não temo a morte. Morte é sono e eu adoro dormir.
               Creio em Deus. Ele existe? Em mim existe, e isso é tudo.
               Desprezo política: de sorte que põem-me na parte direita da arquibancada, sem que eu o peça.
               Sou sensível, porém macho, rapá. Porque gosto e gosto não se discute, certo? Errado.
               A maioria das músicas de que gostava na adolescência, ainda gosto, porém menos.
               É bom ficar velho: “ficar”, o processo; não “ser”, a condição.
               Sou boa pessoa. Não tanto quanto preciso, porém acima do que imaginam, imagino.
               E o mundo não existe por minha causa.
Ainda bem.

Pseudoconselho

Ficam proibidas as músicas românticas.
Ninguém mais ouse cantar músicas românticas!

Use a mente, somente; o coração não.
Não vês que a dissimulação é a única ação
aceita e aprovada — socialmente praticada?

Ora, ser romântico leva a nada…

Estes sentimentos, que trazes em ti?
Tão logo o expresses, alguém se ri!

Põe tuas melodias numa gaveta, trancadas
Pois românticos, hoje, são como bêbados
trôpegos e errantes na beira da estrada.

No consultório

Segunda-feira é dia de médico, e eu fui ao Dr. Siqueira.

Sempre gostei do Dr. Siqueira. Médico velho, CRM antigo. Até dá aula em faculdade. Esses eu respeito.

O Dr. Siqueira não é como esses médicos de hoje, não, muito bonzinhos e voz mansa; pelo contrário, Dr. Siqueira fala firme, até briga com a gente se precisar. Lembra um pouco meu pai.

Chego ao consultório.

“Vai mandar tirar a camisa”, penso.
“Vai lá, tire a camisa”. Acertei.

Põe o estetoscópio gelado nas minhas costas: “respire fundo.”

Respiro.

Dr. Siqueira examina minhas pálpebras, seriamente.

– É, o senhor está bem. Vou pedir uns exames aqui, de sangue, de urina. Pra garantir.

Pedido anotado, Dr. Siqueira puxa uma conversa:

– Mas e a patroa, não veio hoje? Ela sempre vem. Como ela está?

– Ela tá bem, doutor. Mas o casamento, nem tanto.

– É mesmo? O que acontece?

– Bom o senhor perguntar. Sobre isso vim falar com o senhor.

Após ouvir minha história, Dr. Siqueira fez uma receita e deu-me uns conselhos.

Saí do consultório, satisfeito. O Dr. Siqueira é a única pessoa em quem confio.

E quer saber de uma coisa? Não vou fazer exame nenhum.

Epifania
da Verdade

No leito da vida almejo um remanso:
a pura Verdade, o ímpar descanso.

Agita e revolve em mim a vontade,
e, inquieta, ela busca a realidade.

Fremente é meu passo e a bruma me encobre:
ofusca a senda que anelo encontrar.

Errante, dissipo a névoa e hesito;
aceito e recuo: não foi desta vez.

Indago: será a Verdade um molde
que molda o espírito e a alma, talvez?

De mim, ela tem a ínfima parte,
mas não o todo, a integralidade.

Pois a verdade me é desarranjada:
em mil unidades fragmentada.

Um dia, se encaixa o quebra-cabeças,
e tão vera imagem verei se formar?

Assim me será desvelado o mistério,
e a plena Verdade virá me habitar.

A bela

todos notavam
dela a beleza:
cada garoto
senhor idoso
mulher azeda
ele que é noivo…
um após outro
quando passava
não resistia:
lhe contemplava
passava e ia.
sempre assim era
hora por hora,
dia após dia:
e ela que a todos
a vista ornava
mal percebia.
num belo dia
enfim notara:
o tempo passou…
e ela que herdara
beleza rara
qual sua surpresa!
sozinha ficou.

A palavra

Existe a palavra.
Palavra nomeia, enumera, declara,
causa reação, espanto, emoção:
mas é só “palavra”!

A palavra é como uma chave que abre uma porta,
— uma não, várias portas — portais rumo ao Ser:
o único acesso ao Ser se dá pela palavra.

E o silêncio, é palavra não expressada?
E a imagem, é palavra não codificada?

Há o pensar sem palavra? Não há.
Palavra, quem inventou você?

O que é a palavra? Há quem a defina:
e usa… palavras. Tudo é assim:
ninguém escapa da palavra.

A palavra emerge do Ser, só pode ser.
Igual ao Verbo: palavra que “é”, palavra também.
Palavra, o que é? Como saber?

Leve digressão

Feitos grandiosos um dia almejei,
das belas obras o edificar:
para angariar respeito ao curriculum,
algo a outrem tentei provar.

Anos passaram e veio um porém:
o entusiasmo desabou ao chão.
E o coração murchou-se, em desdém:
“aqueles tais feitos, onde estão?”

Sucedeu a crise a reflexão:
“será possível algum dia, enfim,
quando farei algo além, ou senão,
qual sentido estar vivo tem?”

.   .   .

Eis deixei tudo com o Pai, meu irmão:
o mais vem Dele, pensei também.
O homem não vive apenas de pão,
nem sua alma de realização…

Na vida há o sim e há negação
e o que Ele nos der já está muito bem;
de meu destino fiz Dele artesão
para conceder o que me couber.
Amém.