Maria
do sertão

Maria Eleutéria, no alto sertão,
soca o milho no pilão, com esmero:
cedo dá de comer à galinhada,
que à sua roda espera o farelo.

Junho começa e Maria matuta:
“o mês inicia, é perto o São João.
A colheita foi miúda, é verdade,
mas graças a Deus não faltou o feijão.”

São João deverá ser festa bonita
e ela faz angu, paçoca e canjica.
E Nosso Senhor lhe dá o mantimento:
sobra até pra quem pedir alimento.

Mulher de fibra há no sertão, decerto:
há tempos levou-lhe o marido a morte,
e cinco crianças, por brio e sorte,
lutando criou, com Cristo por perto.

Metrópole

Metrópole.
Nascer em ti é não ter raiz:
vínculos duram um ano letivo.
Um dia festivo. Um emprego ativo.

Metrópole.
Nas multidões, milhares de solidões.
Nos entreolhares desconhecidos,
caras de mútuas suspeições.

Metrópole.
Alegrias etílicas, risos compulsórios:
toda inibição é quebrada
por extroversão forçada.

Metrópole.
Guetos e tribos: não-pessoas, fantasiadas.
Grades vigiadas: casas-prisão, torres-fortes.
Vultos através de vidros fumê, velozes.

Metrópole.
Viver, em essência? Fora de ti, apenas:
descalço no chão, comida com a mão;
nenhuma fachada ou civilidade inventada…

Metrópole.
Livrarei-me de ti, semi-perpétua prisão:
distante daqui, vida despojada,
a libertação mais que desejada.

— E quando este dia chegar, então,
mero vapor de lembrança serás:
tortura perene, nunca mais não.

…porque, no final das contas,
todo mundo está só.

Mesmo o mais
      solicitado
      requisitado
      sociabilizado
está só.

Dor se sente só.
Fome se sente só.
Sede, igualmente, só.
Responsabilidade?
Assumiu, ficou só.

Cooperação, solidariedade?
Convívio, afinidade?
Amor, amizade?
São finas cascas:
fragilidade.

A solitude é sentida
se a mão estendida
quando urge, se ausenta:
há o eu, mais ninguém.

Obviedades?
Bem o sei.
Não há nada de novo a dizer
neste mundo velho.

E quando tudo o mais finda,
incluindo a própria vida,
o que fica é solidão:

cabe somente um corpo
dentro do caixão.

A dança invisível

No meio do saguão,
ao longe, há uma dança:
num uniforme cor de nada,
com seu par ela balança.

Mil pernas passam,
ninguém lhe nota;
e nem mesmo ela
olha à sua volta.

A vassoura, empunhada,
é tácita companhia
a bailar com ela,
todos os dias.

A bailarina parece invisível.
Quem contempla sua arte?
Quem sabe seu nome?
Que sonhos tem?
— Certamente ela os têm.

No mar de interesses mil
ninguém dá a mínima
à tímida bailarina
que, cabisbaixa,
mal ousa levantar o olhar.

Mas ela, faxineira-dançarina,
não apenas dança e faxina:
tem alma e anseios, família, RG…
e dança a mesma dança da vida,
igual a mim, igual a você.

Minoria de um só

Sou de uma minoria:
Minoria de um só
Minoria, tão menor
Não é nem categoria

Unitário e recolhido
Dispenso inclusão
Quanto mais fora, melhor
Sou avesso à adesão

Reivindico minha mente
Ideologia sem par
Passo longe toda vida
De batalha popular

Militante ou ativista
Em nada disso me espelho
Hastear bandeira, nunca
Destes grupos de vermelho

Minha política é sossego
Minha paz, paz mundial
Solidão, minha utopia
Incoletiva pessoal

Viação gerúndio

Eu “podia” estar roubando!
Eu “podia” estar matando!
– Não, seu moço, não podia!
Não, não diga essa bobagem
Ponto a ponto, todo dia
Pode até vender produto
Toda sua mercadoria
Roubo, morte, não é pra tanto
Coisa boa há, todavia
Pense bem, por um instante
No seu lugar, eu faria
Quem sabe um dom escondido?
Talvez escreva poesia…

Vexame

O meu vexame
Teve platéia:
Fui humilhado
Diminuído
Devido à troça
Da patuleia

Hoje, ao revés,
Tanta vergonha
Dantes, tristonha
Desobrigou-me
Doutros agradar

Expectativas?
Sinto-me livre
Plenamente livre
De tamanho fardo
Pesado levar

Por meu ridículo
Mil satisfações
Ao gosto alheio
Hoje não mais
Tenho a prestar

De início, humilhou-me
No meio, mudou-me
Ao fim, libertou-me
O meu vexar