Noturno

Para nós, a sós
inexiste o tempo:
medível, contável

Há tão-somente
suave mistério
incontrolável

Possuímos parte
da eternidade
em movimento

Não temos forma:
somos ar, somos gás
liquefazemos

Não somos dois:
somos, apenas
acontecemos

Pura presença
verbo e luz
auto-existente

Sangue pulsante
semi-sufocante
em nós latente

Há algo agora
que não se pode
denominar

Falta-nos termo:
chamemos de amor
chamemos de amor
só por nominar.

A Fabiane Maria de Jesus

Numa tarde comum Fabiane saía
e só pedalando, em nada pensava.
Singela e tranqüila, quem imaginaria?
Grande tragédia por ela esperava…

Lá pelo bairro sorria e acenava,
em lúdica andança. Ela não cuidava
que algo tão simples desencadearia
tal bárbara horda, que a vitimaria.

Quando uma fruta, inocente, ofertava
a um pequeno, assim deflagraria
a fúria de bárbaros, que lhe assassinava.

Com ódio monstruoso, a turba imolava
a moça indefesa. E a quem não merecia,
o bem mais precioso, sua vida, doava.

Massa nacional

Meia dúzia de valentes
manobram a massa nacional
E em vilania, projetam domínio
De abrangência clara e geral.

A massa não pensa: transfere o que é seu.
A massa pede mão forte: terá o que quer.

Auto-sabotada, será controlada
Por leis estúpidas de sinistros fins
Que a meia dúzia de valentes
Não cessa de produzir.

A massa não pensa: transfere o que é seu.
A massa pede mão forte: terá o que quer.

A meia dúzia de valentes, por ora
Canta aos ouvidos da massa:
Seduze-a, suborna-a, entorpece-a; a massa retribui.
A meia dúzia comprou a massa: pouco custou.
E lhe moldará, molhada argila: como desejou.

A massa, de súbito, quererá reagir: será tarde.
A massa pediu mão forte: obteve o que quis.
A massa transferiu o que era seu.
A massa não pensou.

Valsa de elefante

Menos palavras últimas,
frases que esgotem assuntos:
valsas de elefante.

Mais empatia:
amar ao próximo
sem odiar ao distante.

Mais serenidade,
mais conversa boa,
mais bolo gostoso,
mais sinceridade,
mais alma leve,
mais inspiração.

Eu preciso, tu precisas, eles precisam, nós precisamos:
saber sorrir,
saber olhar,
saber sentir,
saber medir,
saber. Amar. Ser.

26/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Do escrever

Atingir a forma ideal,
ir à essência do ser
no ato mesmo de escrever:
leitura transparente.
Escrever por simular
alguém que não sou,
falsear a verdade,
e criar falsa impressão?
Emular em mim teatro,
ópera-bufa, dramalhão,
mambembe encenação?
— Não.
Tenha a escrita minha
sinceridade e pulsação,
letra pura e alma nua,
sem qualquer afetação.
Desafio pra uma vida,
eis aqui a decisão:
quem vier a ler minhas linhas
leia ali meu coração.

A cidade e a caixa de brinquedos

A cidade é uma caixa de brinquedos:
Cheia de pecinhas e bonequinhos.
Quem é o dono da caixa?

O dono mete a mão na caixa, bagunça as pecinhas,
chacoalha os bonequinhos.
E arruma de novo, pra mexer depois.
Do jeito que quiser.

(Há outros donos, de outras caixas.
Muitos nem mexem em suas caixas, e elas ficam lá.
São donos cujos pais são bem velhos.)

Às vezes, o dono da caixa de brinquedos
chama outros garotos pra brincar:
eles estragam pecinhas, perdem bonequinhos.

A cidade é essa caixa.
Quem é o dono da caixa?

O dono quis pôr a Natureza na caixa,
mas ela não coube.
Couberam pecinhas e bonequinhos, apertados.

A cidade é essa caixa.
Quem é o dono da caixa?

Mulher pelada (explicando a ativista)

Homem gosta de mulher pelada porque é machista.
Mulher fica pelada porque é feminista.

Homem gosta de mulher pelada porque não a respeita.
Mulher fica pelada porque se respeita.

Homem gosta de mulher pelada porque é alienado.
Mulher fica pelada porque é engajada.

Homem gosta de mulher pelada porque é opressor.
Mulher fica pelada porque se libertou.

Motivações variam. O que nunca varia é mulher pelada.

23/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Assalto

SUSTO! Estaco.
Vulto cinza. A ordem:
– Passa rápido vai vai vai.
Oco e nada:
Sangue: some
Reflexo: congela
Pensamento: foge.
O braço, mecânico: entrega.
O vulto cinza: pegou correu sumiu.
Acabou? Acabou.
Pensamento volta.

.    .    .

Isto aconteceu? Aconteceu? Aconteceu.
Perdi. Dane-se o cálculo.
O tempo não volta.
Raiva ou alívio? Ódio?
Vontade de triturar carne e não existir.

.    .    .

O tempo não volta.
Deve estar rindo de mim, sei lá onde.
Venceu. Perdi.
O vulto cinza ganhou.
Não há porquê.
Estou vivo.
Aconteceu mesmo.
O tempo não volta.

21/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

No trem

Queria endireitar o mundo:
A menina que não para de falar
O pedinte sadio que não pensa em trabalhar
O moleque curioso que estica o olho pra ver o que escrevo
A história da senhora de cara sofrida:
Deve ter sofrido tanto nesta vida, meu Deus…

Queria endireitar o mundo:
A menina que não sabe se vestir,
Nem falar, nem rir com decência
O homem que não sabe o que é educação
E só pensa em dinheiro, dinheiro, dinheiro

Queria endireitar o garoto covarde, o jovem sem fibra
O religioso tagarela, o estudante burro, o imbecil orgulhoso
Queria extinguir a música feia, a cidade feia
E a esquisitice geral ao redor…

Queria endireitar meu caminho:
Pra não reparar, nem passar por isso.
Feliz e satisfeito, nunca ter tempo
De pensar em endireitar, amiúde
Tudo aquilo que não fosse eu.

20/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente