Na terra crua

Deito-me inerme na terra crua
E sujo-me com o pó de que fui feito.
Com os olhos fixados no alto céu,
Medito reflito e vejo a mim mesmo:

O quanto enganei-me vezes tantas
Ingênuo, envolvido em vã aparência
E vaidoso, qual Narciso na lenda
Apaixonei-me pelo lindo reflexo
E n’água profunda quase mergulhei…

.    .    .

Mas deitado, aqui, na terra crua
Na terra nua a qual ninguém valoriza
Retorno meu ser à condição inicial
E emulando antecipo o destino final

Na terra suja, estendido, me purifico
No húmus sagrado, relembro quem sou:
Do pó vim e ao pó tornarei
E desde aqui minha humildade advém:

Do santo solo, da terra absorvente,
Onde o grão morre e renasce
Onde a planta, tão mais se aprofunda,
mais firme se impõe…

.    .    .

Humilde enfim, e fitando o céu
Deito-me aqui, na terra
Sujo-me aqui, na terra
Para lembrar-me, sem vacilar:

Se humilde a Ele me humilhar,
No húmus deitado, a soberba deixar
Ele, desde esse chão me exaltará.

Eis o que o Amor Sagrado estabeleceu:
Humildade é, portanto, perder para ganhar,
Com Deus.

6/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Desejos

Desejo o acalento que acalme o coração.
Desejo o sopro da brisa, o bálsamo d’alma.
Desejo simples respostas qual flechas certeiras.
Desejo sentir que o necessário pra mim
Comigo se encontra desde que nasci.
Desejo humilde partir e íntegro chegar.
Desejo ser como a criança
E entrar no reino dos Céus.

Não me embaraceis!

5/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Se eu ganhasse na Mega

Se eu ganhasse na Mega compraria uma mansão
Se eu ganhasse na Mega compraria um avião
Se eu ganhasse na Mega no estrangeiro ia morar
Se eu ganhasse na Mega só ia viajar
Se eu ganhasse na Mega seria alguém melhor
Se eu ganhasse na Mega vestiria Dior
Se eu ganhasse na Mega a vida eu curtiria

Continuaria medíocre

Mas ninguém descobriria.

5/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

A essência da poesia

Talvez a essência da poesia
Seja encontrar, sutilmente,
Imagem escrita que enriqueça,
Preencha a alma de sensações.

E assim impeça
A plastificação do viver.
Não somos máquinas:
É preciso lembrar.

Se a poesia tem alguma função?
Tem mil. Mas nem precisava.
Nós que precisamos dela.

5/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Cordel da sina do brasileiro

O brasileiro só vive em mau-trato,
Vem desde o nascer, desde o parto.
É xingo da mãe, do pai sopapo,
E se indagar, patada é no ato.

Cresce de tal modo violento e confuso,
Que quer se vingar num inimigo difuso:
Em qualquer um, mulato ou cafuzo —
Busca nisso algum alívio abstruso.

Vem lá de pequeno, este é o problema:
Só vê feiúra, envolto em dilema.
E se estragando neste sistema,
Sua vida não encontra um estratagema.

Ah, se o Brasil conhecesse a beleza!
Não o falso belo, mas a sutileza…
Cada qual criado sempre em gentileza,
Eis gente elevada, de delicadeza!

Seria possível que a dificuldade
Se superaria e a necessidade,
Com uma só dose de boa vontade,
Lugar daria à felicidade.

5/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Vazio em mim

Existe em mim um imenso vazio
Que nunca confessei
Disfarço, sorrio, dou voltas, despeço
Dissimulo bem
Será que eles percebem?
Sou infeliz e não conto a ninguém

Esse nada interior é produto
Da fuga desesperada diária
De mim mesmo
Do meu passado
Do meu presente
Desagradável

Existo como se aqui não estivesse
Quem dera…
Não precisar representar um papel
Viver para os outros:
Esse não sou eu.

Preciso resolver e é difícil
Me encarar, abandonar de vez
As performances, as caras e bocas
Inúteis disfarces, ridículas máscaras
Vida de entulho amontoado na alma
Caricatura do ser ideal

Quem sou eu, de verdade?
Sou a cabeça no travesseiro
Que chora em silêncio, no escuro
Pensa, repensa e mergulha em mim:
A sós comigo, só Ele me vê
Só Ele me entende

Serei preenchido é por Deus…
Preciso e quero: assim decidi.
E pôr tudo a perder?
Tudo o quê?
Tudo a ganhar…
Só tenho este exato momento
E a hora é já.

Humildemente,
Começo uma oração.
Do jeito que dá. Do jeito que eu sei.
Ele ouvirá.
Jesus ouvirá.

21/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

José Emanuel
Dias da Silva

José Emanuel Dias da Silva.
Nome comprido, RG curto: década de 60.
Planejava se aposentar.
Naquele dia, colocou a roupa, ajeitou a gravata.
Tomou o café. Silenciosamente.
Pegou o táxi e foi ao trabalho.
Igual todo dia.
Subiu ao andar, sorriu pra secretária bonita do chefe.
Falou bom dia.
Tomou cafezinho, comentou a rodada do futebol.
Riu.
Checou os recados em cima da mesa.
Listou as tarefas, terminou a de ontem.
Respondeu ao e-mail: digitou digitou.
Olhou para o lado, o peito apertado.
E, de repente, desmoronou.

.    .    .

— Enfarte do miocárdio.
José Emanuel Dias da Silva deu entrada às 9:20 no PS.
Às 10:30, faleceu.
Num dia normal, anormalmente.
O RH mandou circular lamentando o ocorrido.
À tarde, choveu.

21/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

O popular

O popular adentra o ambiente:
Fala frases feitas (e fala alto!)
Ocupa o espaço, rouba a atenção
Aponta o dedo, cutuca do lado
Quer ser o centro da situação

Ri de si mesmo, de velhas piadas
Dispara-as todas em repetição
Tenta perturbar quem estiver quieto
E de todo mundo requer adesão
Impertinente, se entende benquisto
E é só suportado, com educação

12/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Canção
do Saber

Ninguém é o mesmo após saber algo
Nunca mais é, por mais que o queira…

.    .    .

Se menos soubesse, eu não sofreria
Se menos soubesse, não me faltaria
O que desconheço, e nem poderia
Pois o que não sei, por não saber
Em minha alma não existiria

.    .    .

Talvez seja este o preço a pagar
Por ver claramente a realidade:
A ninguém jamais poder explicar
Se já não há quem queira a verdade

.    .    .

Saber é fiar-se, é se amarrar
É pactuar com a Consciência
E para trás não poder voltar:
O Saber reflui, em reminiscência

Saber é riqueza, mas não recompensa
Tesouro no âmago, peça de museu:
Tem suma importância, tanto representa
Mas é velha História que amareleceu

.    .    .

Devia a infância ser época mágica
Tão pouco se sabe, viver é brincar
Apenas se vive a realidade
Sem jamais com ela se preocupar

Tudo que chega na infância, vivemos
Quando os anos passam, vem o recordar:
Por que em tais laços assim nos metemos?
E como aqui viemos parar?

.    .    .

Solução, talvez, seja o saber menos
E do que sabemos, só vivenciar
Toda parte boa, agradável e bela
Que a realidade, nem sempre tão dura
Capaz, assim, seja de nos dar

8/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Seu Pedro,
um brasileiro

Conheçam Seu Pedro, homem atual
Mantém-se informado no telejornal
De tanto assistir, descobriu o mal:
“Propina, político e marginal!”

Seu Pedro aposta na Federal
E almeja voltar à cidade natal
Quando faturar o valor colossal
“Ah, se ganhar, alegria geral!”

Suspira em seu sonho habitual:
“Cidadão ilustre lá na capital
Distinto e grande seria afinal
Bem considerado, fará nada mal!”

Seu Pedro, retrato comum nacional
De mediocridade tão fundamental
Despreza político e marginal
Mas grana no bolso o faz quase igual

18/5/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente