Dona Tuca
e o homem tóxico

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Manhã de sábado. Paulino Eiras de França Júnior se senta no sofá com um suco de laranja numa mão e um misto-quente que acaba de tirar da sanduicheira na outra. Ele gostava de tomar seu café da manhã assim, relaxado, de moletom velho e chinelo, na sala do apartamento de dois dormitórios que financiara em 30 anos pelo sfh e para o qual mudara-se há sete meses. Ele liga a televisão de 50 polegadas da qual ainda pagava as prestações — dividira tudo em 24 vezes no cartão de crédito — e procura algo para assistir.

Enquanto zapeia no controle remoto, França dá uma olhada panorâmica pela sala: mira o lustre chinês da salinha de jantar, bonitinho; depois olha o roda-teto de gesso — agora ele tinha uma sala com gesso no teto — , num estilo branquinho tradicional que contrastava bem com o azul-gelo suvinil das paredes, e arrematado pelo visual das portas brancas dos dormitórios. Incrível: nem custou tão caro tudo aquilo, mas mesmo assim o aspecto novinho do acabamento lembrava vagamente uma casa de classe média americana, igual a dos filmes, padrão que no seu entender representava o melhor do conforto e bem-estar doméstico.

França sentia-se orgulhoso de sua conquista recente, o belo apezinho; conquista não apenas sua, mas também da esposa, Edivânia Lucilene de França, no momento grávida de cinco meses e que infelizmente não pôde acompanhá-lo naquele café da manhã, pois estava no plantão de vendas da construtora onde trabalhava. Hoje era o dia do grande feirão imobiliário, e tudo indicava que ela conseguiria fechar uns bons negócios nesse final de semana; afinal, martelaram a campanha durante toda a semana no ShopMix, canal 19 UHF. Ah, com certeza. Daria tudo certo, em nome de Jesus.

Sem opção para assistir na tevê, França vai ao mesmo canal líder de sempre; o canal líder de sempre era aquele que se sobressaía em qualidade de todos os demais na tevê aberta. Os outros canais só exibiam programas de uma igreja evangélica diferente daquela que o casal frequentava ou reclames de panela antiaderente; tinha também o canal educativo do governo, que passava um jornal com voz abafada, sempre a falar da floresta e a mostrar uns índios tristes. Vai ver era por isso que o canal líder era o mais assistido do Brasil: a ruindade e o tédio dos outros canais praticamente garantiam uma reserva de mercado para aquela emissora.

Pois no canal líder de sempre exibem uma roda de debate, França percebe: está lá uma moça com uma soberba cabeleira que irradiava em todas as direções, e uma senhora branquinha, mais ou menos idosa, vestida com uma informal túnica de linho que destoava de sua expressão aristocrática; por último, um rapaz franzino com barba por fazer que, a julgar pelo tom e os trejeitos, devia jogar no time B da masculinidade.

O fato é que Paulino Eiras de França Júnior parou para ver aquela roda de conversa do show matinal, cujo cenário exibia uma rusticidade gourmet e despojamento chique; uma decoração pensada para quem não liga tanto para o luxo e valoriza o que realmente importa, muito além do dinheiro. Sentados em cadeiras de vime, os três debatedores falam de feminismo, lgbteísmo, racismo, machismo e vários ismos que a mídia tanto fala mas que ninguém dá a mínima no ponto de ônibus.

Parece que a moça do cabelo farto presidia lá uma ONG instituto zuma, zemba, mamba — França não ouviu muito bem; o rapaz diz ser ator e que acabava de chegar da Holanda; viera ao Brasil com o marido holandês para adotar três crianças bem brasileiras, disse; quanto à senhora distinta com roupa humilde, França ficou surpreso ao saber: era ninguém menos que a dona do mesmo banco no qual ele trabalhava como bancário, há cinco anos, exatamente na agência 3702 dígito 9, no Jardim Marialva, bem em frente à Praça do Relógio. Sim, aquela era a dona do banco Tupy, em pessoa. Ela se chama Antonina Seráfico, ou Tuca para os íntimos. Apelido simpático. Ao dar-se conta disso, França presta mais atenção nela, enquanto morde o misto-quente mais uma vez e estica o queijo à frente da boca. Aproveita a oportunidade para ver a fisionomia daquela que afinal era sua patroa, embora ela não soubesse. Que bacana… então foi ela quem carimbou sua carteira profissional?

Naquele momento, o assunto abordado era “homem tóxico”, a tarja informava na parte inferior da tela. A ativista da ONG desabafa como era vítima disso no dia a dia, enquanto os dois acenam a ela afirmativamente, de um modo um tanto reverencial. Tocados e lamentosos, pareciam dizer “sim, isso acontece mesmo, a gente sabe como você se sente”. Depois que a moça fala tudo que precisava falar sem qualquer interrupção, ela concede a vez ao rapaz casado com o holandês. Ele conta como na Holanda tudo era tão mais fácil para gente como ele, diferente do Brasil — “meu país” — , de onde teve de sair a contragosto; ao mencionar um tio que o humilhava na adolescência, o rapaz não contém a emoção, e uma fina lágrima escorre pelo seu olho esquerdo e para na barba por fazer. A câmera corta para a moça ativista num close, e seu olhar de empatia transparece no vídeo. Quando o rapaz pausa a fala e pede desculpas por estar emocionado, a câmera abre de novo e dona Tuca o afaga: passa a mão no seu ombro, ampara-o; demonstra estar comovida também, pois leva o dedo mindinho a seu próprio olho, como para segurar uma lágrima furtiva e não borrar a sóbria maquilagem no ar. Uma dama.

Vem a vinheta e os comerciais do intervalo. O primeiro deles, França nota, é o do banco Tupy. Coincidência. Ao som de ukelelês e assobios, uma adolescente mostra ao pai cafona e antiquado como o aplicativo do banco facilita a vida dela e poderia facilitar a dele também, caso deixasse de ser cafona e antiquado. Meio pascácio, o senhorzinho calvo admira-se da esperteza da filha jovem, que domina a tecnologia como ninguém, ao dispensar filas e portas giratórias das agências. A câmera fecha no homem com cara de bocó feliz e sobe o logotipo do Tupy, com assobios ao fundo: “assim a gente muda o mundo”, diz o slogan.

Telespectador, França mastiga o último naco do misto-quente. Ele ainda não tinha visto o novo comercial do Tupy. Achou legal. Mas, estranho: inconsciente, ele se solidariza intimamente com o senhorzinho pascácio e calvo do comercial, sem motivo aparente; quem sabe o faz porque, assim como o homem do reclame, ele não se sente necessariamente um pascácio; mas antes, já o incomodava suspeitar que fosse um tóxico, como o crack e a cocaína dos traficantes. Há poucos instantes, França tinha certeza de que não saía de segunda a sexta em direção à agência 3702 dígito 9, no Jardim Marialva, bem em frente à Praça do Relógio, para ser tóxico nem para engabelar senhorzinhos pascácios e calvos; e agora jogam aquilo em sua cara pela televisão. Coisa esquisita, desconfortável.

Volta o programa, sob aplausos da plateia.

Hora de dona Tuca falar. Magnânima, ela rememora o relato comovente da ativista exuberante no bloco anterior. Relembra os infortúnios por ela sofridos nos ambientes em que passou e denuncia a perseguição infligida apenas por ser do jeito que é, ou por apresentar-se em sua plena naturalidade ancestral; depois, a bondosa banqueira vira-se à esquerda e pondera o caso do rapaz casado com o holandês; arremata dizendo “puxa, como homem é tóxico, não?”. Por fim, ela não cita qualquer exemplo próprio — talvez a modéstia a impeça de usar a si mesma como case —, mas diz como “a sociedade não tolera mais homem tóxico e todo esse machismo retrógrado. A gente precisa agir nas causas do problema”, afirma, olhando aos dois com convicção. Frase forte, que arranca aplausos gerais.

A moça e o rapaz assentem levemente com a cabeça. A câmera abre e eles miram em dona Tuca, com olhinhos suplicantes, como a dizer “por favor, a senhora nos ajude nisso”. Tuca Seráfico, a dona do banco Tupy, faz cara de quem está lá mesmo para livrá-los de homens tóxicos e fazer um mundo melhor para todos. Porque, embora fosse muito rica e nem parecesse a mulher mais rica do Brasil segundo a Forbes, ela era acima de tudo uma pessoa consciente de seu papel social. E é de gente assim que o mundo precisa.

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Termina o programa e Paulino Eiras de França Júnior tinha umas camisas para passar, as que ele vestiria para trabalhar na semana porvir. Desliga a tevê, abre a tábua de passar, liga o ferro na tomada, e coloca o seletor na posição “tecidos delicados”. Quieto, fica a pensar naquele negócio de homem tóxico. Nunca tinha ouvido falar nisso. Será que ele era um homem tóxico? Matutava enquanto separava as camisas de tricoline do cesto para passar a ferro.

Na verdade, França lembrou-se do gerente da agência, o Milton Devisate. Aquele sim pegava pesado. França já vira duas meninas saírem chorando em direção ao banheiro depois de ele jogar na cara delas as metas não cumpridas do mês. A agência 3702 dígito 9 do Jardim Marialva era repleta de correntistas antigos, na maioria aposentados; e uns tempos atrás, Devisate esteve na berlinda, pois o Tupy, lá na central da Faria Lima, já havia mandado um recado ao gerente: ou a agência dá lucro ou fecha de vez. Porque é assim que funciona nos bancões: a agência tem uma meta de lucro mensal própria — pois cada agência representa um centro de custo isolado das outras — , e os funcionários devem vender os produtos do banco aos correntistas para baterem a meta de faturamento, bancarem o custo operacional da agência, dar lucro como unidade de negócio e assim manter a equipe empregada. Essa era a ordem da central e ponto final.

No fim das contas, o bancário banca o próprio salário, embora nenhum gerente diga isso abertamente à equipe ou comprometeria a confiança de todos, conforme o RH orientava. Coitados, os oito funcionários da agência 3702 dígito 9 achavam que o banco Tupy pagava seus vencimentos desde a tesouraria, com toda a generosidade. Ledo engano: o salário vinha das próprias vendas de planos de capitalização e empréstimos consignados que eles mesmos faziam. Aposentados aliás eram as vítimas perfeitas para isso, pois não faltavam velhinhas a obedecer servilmente à “moça do banco”: quando pegavam um empréstimo meio forçado, diziam em casa ter dado ouvidos à tal moça do banco: “ela disse, eu fiz. Ela, a moça do banco.” Nunca falhava. Naquele mês, porém, as duas moças tiveram dó das velhinhas ou sabe-se lá o que aconteceu. Então, deu no que deu: Devisate, o homem tóxico.

Sim, Devisate era tóxico, França agora sabia. O cara era implacável com esse negócio de metas a bater. Ele se lembrou de outra coisa, inclusive: rolou um comentário no passado, “Deus me perdoe”: o Devisate chegou a gerente ao surrupiar taxas inventadas em contas-corrente de clientes que quase não movimentavam o dinheiro. Pegava um tiquinho daqui, outro tantinho de lá. Somava tudo, batia e superava as metas assim. Um belo dia e pumba!, é promovido a gerente. Diziam isso, comentavam lá e cá nos corredores. França não podia provar nada e aliás temia tocar no assunto. Mas que tinha a pulga atrás da orelha, lá isso tinha.

Por sua vez, ele deixara de bater a meta duas vezes alternadas, sempre compensadas no mês subsequente. Por sorte, a central da Faria Lima incluiu na estratégia de vendas o saque do cheque especial e isso veio muito a calhar para os funcionários, pois, se tem uma coisa que todo correntista faz é cair no cheque especial. Graças a Deus a pressão das metas passara um pouco, e ele não precisava mais bancar o bookmaker da zona leste e vender sorteios pela loteria federal a velhinhos desavisados. Nem a velhinhos, nem a pascácios, nem a calvos. E outra: ultimamente o Devisate nem andava tão tóxico: a julgar pela reforma que a central mandara fazer na agência, mudando o carpete marrom mofado para o granito cinza, parece que a turma da Faria Lima andava feliz com a agencinha 3702 dígito 9 do Jardim Marialva, em frente à Praça do Relógio; principalmente a bondosa dona Tuca Seráfico, a dona com consciência social do banco Tupy.

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Ao fazer os vincos na manga da camisa com o ferro de passar, França se dá conta de outra coisa: o Tupy não contratava gerentes mulheres, exceto nas agências do Oca Tupy dos bairros nobres, divisão premium dedicada à clientela de alta renda. Nas agências de bairro, porém, apenas homens ocupavam as gerências. E eles — França se dá conta — costumavam ser tóxicos pra valer com aquele negócio de bater metas. Confrontados, viviam acusando a central, sempre a central que os pressionava, alegavam. Pois é: não era apenas o Milton Devisate que soltava perdigotos a semana inteira e chegava a mandar colegas praquele lugar depois que a agência fechava ao público; funcionários que vinham transferidos de outras unidades relatavam como o Tupy parecia fazer vista grossa com outros gerentes — todos homens e todos tóxicos. Sim, todos eles. Era meio que um padrão.

Alguns clientes que ganhavam salário mínimo reclamavam aos funcionários como deixavam o limite do cheque especial deles tão desproporcionalmente alto que podiam comprar um carro zero quilômetro à vista se quisessem; e alguns compravam mesmo, caíam em tentação. Então, a dívida contraída crescia como bola de neve e os engoliam vivos. Não raro, filhas apareciam acompanhadas de seus pais idosos nas agências e pediam para cancelar empréstimos consignados; a orientação que a central da Faria Lima passou era para conceder um segundo empréstimo para cobrir o primeiro, e todos usavam simuladores eletrônicos que convenciam os velhinhos como aquela era a melhor opção: pagar uma dívida pior com outra melhor. A central do Tupy implantara um moderno sistema de simulação automática e a família se convencia: entravam com um empréstimo, saíam com dois; e esticavam o prazo de vínculo com o banco, que os acorrentavam a si o máximo possível.

Fazia sentido? No caixa, sim. A cada trimestre, Devisate recebia o relatório e reagia com aquele jeitão dele: o banco estourara de lucrar mais uma vez. No mês passado, ele até recebeu uma caneta dourada da central, dizem que banhada a ouro, por estar há um ano superando as metas sem parar. Ninguém dizia o montante exatamente, mas a julgar pelo entusiasmo do sujeito, não devia ser pouco. Mesmo para França, o bônus gordinho que ganhou no último trimestre indicava que a coisa andava muito bem no Tupy. Imagine só para o gerente, cujo sorriso chegava quase à nuca ultimamente. Imagine então a quantas não andava a central do Tupy, o grupo todo, lá na chique Faria Lima…

Já a terminar de passar a última camisa, França pensa se, com aquele faturamento todo na casa dos bilhões trimestrais, não custaria muito ao Tupy evitar tanto homem tóxico nas gerências, como bem protestara dona Tuca na tevê. Poxa, seria justo. Aliás, será que ela sabia daquilo? Será que a central da Faria Lima a informava de tudo que rolava nas agências de bairro?

França tinha certeza que não: certamente ela não sabia daqueles homens tóxicos espalhados nas agências do Tupy a intimidar as colaboradoras, e muito menos devia sonhar com aquelas maracutaias todas de empréstimo sobre empréstimo nas costas de velhinhos aposentados. Sim, porque ela pareceu ser uma pessoa muito boa e do bem na tevê, ao ajudar os outros e ao patrocinar ONGs solidárias país afora. Ela dava o exemplo.

“No fundo, gente bondosa assim merece ter a riqueza que tem”, França conclui ao pensar em dona Tuca, “e Deus sabe o que faz: por isso os gerentes nunca vão chegar aos pés dela.” Ele termina de passar as cinco camisas da semana e já as pendurava nos cabides quando deixa escapulir uma última opinião, em voz alta, para encerrar bem o assunto da manhã: “sabe qual o problema? É que gente boa igual ela é sempre ingênua demais.”


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/8/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A indômita Frangland
e a jornada dos franglish

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MUITO EMBORA CHAMEMOS GLOBO TERRESTRE, nosso planeta não apresenta a forma duma esfera perfeita mas um pouco ovalada, como aquelas bolas de duvidosa procedência que comprávamos em vendinhas na infância. Acrescente-se que seu eixo — um palitão imaginário a atravessar a Terra de alto a baixo — também não se encontra perpendicular a retíssimos 90 graus, feito o palito na maçã do amor, mas algo inclinado, a aproximadamente 23,5 graus. Assim afirmam os melhores tratados da ciência astronômica e todos os peritos no assunto.

Posição tão pitoresca no sistema solar faz com que o giro descrito por nosso planeta em torno de si mesmo — a tal rotação das aulas de ciências — não se nos dê a enxergá-lo na totalidade, mesmo nos mais avançados satélites e sistemas de posicionamento global.

Não boceje, leitora e leitor: a NASA mantém-se quieta neste particular, contudo, em certos documentos não exatamente secretos mas muito discretos, a dita-cuja aplica um migué no resto do mundo: não declara abertamente que todos os seus sistemas de monitoramento somados abranjam algo como 96% de nossa querida bola azul vista do cosmos.

Ora, não é preciso ser nenhum Einstein para de pronto calcular que 4% do planeta não passa duma incógnita, um gigantesco ponto cego a todos nós, humanidade em geral. Para contornar o clamoroso vexame, a agência americana desculpa-se dizendo que essa faixa invisível corresponderia a uma desprezível continuidade oceânica no mar do Pacífico, a um punhado de milhas náuticas ao leste da Austrália. Bobagem, asseveram; café pequeno.

Ah, o imperialismo ianque e suas patranhas. Pois nessa ínfima parte não catalogada do planeta há sim um território inexplorado, do qual o governo americano reluta em dizer que não existe, por pura birra e por não saber perder. Este país faltante a todos os mapeamentos os mais sofisticados atende, pois, pelo sugestivo nome de Frangland.

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COBRADO A RESPEITO, o Tio Sam apelou a expedientes fáceis, como muxoxos e risos escarninhos; pega no pulo, a velha e calejada Europa admitiu a existência de Frangland, um tanto constrangida. Sem saída, rendeu-se; e recordou-se que o lendário navegador Américo Vespúcio relatara, num documento dado como perdido, a respeito dumas terras perdidas no hemisfério sul, donde os habitantes falavam uma língua parecida ao bretão e ao gálico no mesmo vocábulo. Um provecto linguista e filólogo deu-nos um exemplo de como funcionaria o obscuro idioma, na palavra em português queijo: em inglês, se diz cheese; em francês, fromage. Pois em franglish — eis o gentílico daquela nação — em franglish queijo é cheesage. Simples, como se vê.

Certo, mas se o exemplo anterior não elucidar o suficiente, pegue-se outro vocábulo em português, veludo, o clássico tecido. Em inglês é velvet, e em francês, velours. Em franglish fica velvelours. A propósito, dizem que não há charme maior que ver e ouvir as beldades de Frangland a pronunciarem este “velvelours” fazendo biquinho: é de enlouquecer a qualquer cavalheiro no seu mais perfeito juízo…

Mas falávamos de Américo Vespúcio. O famoso navegador descrevera em carta a terra misteriosa, no entanto, como na expedição anterior o desbravador chegara às Antilhas — viagem bem mais interessante à corte espanhola, pois para isto mesmo o contratara — ninguém deu pelota à viagem seguinte, realizada nos idos de 1506–1507. Também dissemos que o documento foi dado como perdido.

Felizmente, não mais: uma equipe de pesquisadores autônomos encontrou a tal carta, quase por acaso. Estava na seção de livros raríssimos da Universidade de Leicester, Inglaterra. Ninguém sabe como o documento foi parar lá: trata-se de uma folha de pergaminho em excelente estado de conservação, inserida num velho volume numerado da Divina Comédia de Dante Alighieri – exemplar no qual consta a ex libris do poeta florentino –, volume portanto de valor inestimável. Seja lá quem tenha guardado a carta de Vespúcio ali, provavelmente a usara como marcador de página, e esqueceu-se de onde deixara o precioso documento, se é que o tivesse por precioso.

Pois se Frangland esteve escondido do resto do mundo esse tempo todo, o resto do mundo também esteve escondido de Frangland esse tempo todo. Oh, caro leitor, estimada leitora: esqueça internet, televisão, telefone e tecnologias de igual cepa. A excêntrica nação comunica-se ainda ao modo medieval, via mensageiros de alpercatas em burricos, caixeiros viajantes em caleches, pombos-correio em telhados. Nas colinas de Frangland, conta-se, há toda uma cultura ancestral de falcoeiros para enviar encomendas a longuíssimas distâncias.

Ocorre que, depois de tantos anos em segredo e sob uma estupenda autossuficiência de recursos, os franglish decidiram singrar os mares: para a empreitada, construíram enormes caravelas do mais resistente carvalho de suas florestas, e lançaram-se ao mar bravio em busca de novas terras, pedras preciosas e especiarias — isso em pleno século 21. Se bem que, na contagem franglish, eles andam pelo século 17, e não se sabe que referencial utilizam para enumerarem seus dias. Estima-se que tenham suprimido centenas de estações do ano; talvez saltaram miríades de fases lunares ou, quem sabe, utilizem uma singular adaptação do calendário gregoriano. Resta averiguar.

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BEM, MAS POR QUE FALAR deste país Frangland e de seus nativos, os franglish? Ocorre que as três enormes embarcações aportaram na praia de Maragogi, paradisíaco litoral das Alagoas, na pátria amada Brasil. Tão logo a tripulação franglish molhou as botinas em águas brasileiras, foram recebidos por esquálidos pescadores que falaram ôxe ao ver-lhes a indumentária, ao que foram alvejados imediatamente: julgaram tratar-se de piratas. Levados os corpos pela correnteza a uma movimentada cidade vizinha, a polícia científica local realizou uma perícia improvisada, tal como pôde, pobrezinha, já que a verba congelara desde os anos Michel Temer. Chegou-se à conclusão de que os tiros partiram de rudimentares trabucos, mui parecidos aos dos nossos bandeirantes de quando desbravaram o território nacional.

Atracados em Maragogi, depressa os franglish construíram um píer do mais puro mogno, belíssimo cais por sinal; e, encantados com a paisagem circundante, decidiram edificar por ali sua nova cidade, a qual julgavam tratar-se de uma ilha perdida no Atlântico, conforme apontavam todos os astrolábios, sextantes e lunetas. Sempre curiosa, bem que nossa imprensa tentou aproximar-se, mas foi logo debelada com pedras de atiradeira revolvidas em betume fumegante. Conseguiu-se apurar, por sorte, que a intenção dos franglish era mesmo colonizar a região, e batizaram-na de Neweau Frangland (Nova Franglaterra, em tradução livre).

Por ali os colonizadores abriram ruas perfeitamente planas e, de um lado a outro, separaram às suas famílias lotes de um quadrado perfeito, como que medidos à régua. Além disso, erigiram uma capela repleta de vitrais coloridíssimos numa praça central cuidadosamente projetada, com uma doirada cruz de Santo André (Saint-André) postada no alto da cúpula, símbolo maior dos franglish, constante em sua bandeira, em suas armaduras, em seus escudos, e em suas moedas.

Entrementes, o governo brasileiro preocupou-se sobremodo com o avanço franglish na região: nossos nativos relataram como os colonos erigiram uma fortificação na cidade litorânea, muito semelhante a um feudo do ano mil da era cristã; e que, qualquer um que se aproximasse com aparência suspeita, era logo recebido por uma saraivada de setas esbraseadas, atiradas por arqueiros posicionados no alto da amurada.

Procurado, o Exército Brasileiro (EB) disse ser muito difícil acessar o litoral de Maragogi, e mesmo achar Maragogi no mapa escolar; semelhante resposta deu-nos a Marinha nacional, cuja fragata E.S.S. Charles Bolsonaro aguarda há mês e pouco no porto de Itaguaí por falta de óleo diesel (que anda mesmo pela hora da morte, diga-se), além de ocupar-se na proteção do comércio marítimo de armas e munições a policiais freelancers das comunidades cariocas.

Nada desesperador, no entanto: “pra quê essa angústia?”, consolou-nos o comandante-em-chefe de nossas defesas, tranquilizando-nos a todos. Com efeito, nossas Forças Armadas não faltariam mesmo à sua precípua missão, ao fim e ao cabo: sob esforço inaudito, destacaram um avião tucano da FAB para monitorar a colônia invasora. Ó, fortuna: não foi este abatido por um canhonaço ao sobrevoar a fortificação? Rodopiou em parafuso e esboroou-se em alto mar. Ai de nós…

Lamentável também foi a tentativa de negociação política, como sempre se procede em nossas plagas: um deputado Ernon Lira partira confiante em missão diplomática para falar ao líder franglish. Dissera ao patriarca que, se chegassem a um acordo, ele ofertaria uma emenda parlamentar de grande monta, mediante gorjeta de 20%, metade antes, metade depois. Ao ouvir-lhe a infâmia, o líder franglish saca de seu arcabuz e dispara-lhe contra o peito. Testemunhas disseram que o rombo atravessava o braço dum homem sem sujar-lhe as mangas. Outros deram conta de que o tiro não fora disparado exatamente à comissão proposta, mas depois de um lúbrico Lira olhar lascivamente à senhora do líder franglish – loura bem fornida e deveras magistral –, ao vê-la pronunciar “velvelours” com biquinho típico. Mas isso, disse a viúva, há de ser boato.

Os satélites do Inpe mapearam os progressos franglish em território nacional: as residências foram todas cercadas de um tapete natural, forradinho de tulipas multicores. Diante da notícia, populares da cidade julgaram ser aquele um condomínio de alto luxo, “só pra quem tem, ó”, disseram, esfregando o dedo indicador no polegar. Enquanto isso, os franglish prosseguem na colonização à sua maneira. Erigiram até escolas ou algo assemelhado para suas alvíssimas, rosadíssimas criancinhas.

Ultimamente, uma fila de populares vem se formando perto da fortificação, pedindo “algum serviço”. Compungidas, estalajadeiras despejam tinas e mais tinas com repolhos velhos e restos de uvas pisadas dos lagares, cujo mosto excedente permite a feitura de conhaques caseiros, vendidos a caminhoneiros como rebite. Por dez real a garrafada, chamam à beberagem “vevelú”: única palavra em franglish que conseguiram decorar, a seu modo, ignorando-lhe entretanto o significado.

O departamento de sociologia da Universidade Federal do Norte Alagoano (UFNAL) tem produzido estudos a respeito da opressão dos povos franglish e criticado o regime patriarcal em que vivem, sobretudo suas mulheres; por outro lado, o Núcleo de Etnicidades e Outros Saberes (NETOS), da mesma instituição, discorda; dizem que as mulheres franglish são de um louro platinado tão ofensivamente eurocêntrico que até reluz, e que portanto trata-se de uma gente assaz privilegiada. O relatório “Velvelours: a objetificação da mulher franglish enquanto biquinho”, da pesquisadora-chefe da ONG Rosa Luxemburgo de Feminilidades e Transfeminilidades, denuncia que as mulheres franglish são liminarmente impedidas de serem arqueiras nas torres, operadoras de catapultas ou tocadoras de sino na igreja; defendem que elas podem ser o que quiserem, mas, por enquanto, sua antiquada cultura admite o trabalho feminino fora do lar apenas a moças enjeitadas, como aguadeiras nas edificações, taberneiras nas bodegas ou cortesãs nos lupanares.

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DESDE A INVASÃO FRANGLISH, nossa República sofre um impasse de maneira generalizada: a governança local não alcança bom êxito nas negociações com óbvias vantagens de parte a parte, como sempre sucede aos mandatários das comarcas vizinhas. Os franglish parecem desprezar as generosidades da mãe gentil, o que a todos causa espanto, curiosidade e inconformidade.

Nosso glorioso Exército de Caxias prossegue no estudo das melhores rotas rumo à inacessível Maragogi. Tomará as devidas providências, garantiu, tão logo compreenda mapas territoriais. Torçamos. A intelectualidade acadêmica também propôs-se a ajudar na reconquista, se bem que passa por apuros: grassam confusões nas muitas assembleias democráticas, sob um inédito conflito intraprogressista, já que o conceito sociológico de hoje choca-se com o de ontem, e este, com o de daqui a pouco. Cotejados, todos anulam-se mutuamente, sob variegadas contradições.

Para dirimir a situação diplomaticamente — posto não ser nossa tradição o extermínio de povos inteiros, ao menos não ex officio — uma comissão da Câmara dos Deputados formou-se para discutir o imbróglio. Compôs a mesa diretora não apenas atores políticos mas também de novelas, além de ativistas, youtubers, percussionistas de trio elétrico, jogadores de futebol, cyberfunkeiros, sertanejos do centro-oeste e traders paulistanos, meu.

O relatório final da comissão propôs uma solução aclamada unanimemente. A mais brasileira das soluções, diga-se: importar, em caráter de urgência urgentíssima, dez comboios de populares popularíssimos e uns quantos traficantes ao local, e circundar ao redor do feudo de Neweau Frangland uma enorme favela — comunidade, a bem dizer — a toque de caixa, para ensejar o efeito esperado. Assim se fez: comboios enormes trazidos por insucateáveis Mercedes-Benz dos anos 70 transportaram os insumos da empreitada, quais sejam, tijolos baianos e concreto pra laje, além de muitas parabólicas. A Anatel — Agência Nacional de Telecomunicações — também colaborou, provendo postes com farta fiação para neles dependurarem as pipas mandadas e os tênis velhos pelos cadarços, e, sobretudo, prover aos novos ocupantes do novíssimo cinturão favelístico um pouco de diversões domésticas via gatonet. Ademais, ninguém sabe quem pediu, mas a igreja Assembleia destacou dezassete sacerdotes vocacionados per se e providenciou três milheiros de cadeiras plásticas de jardim para prover a religiosidade da novíssima comunidade, sob módica contribuição dos devotos.

A coisa vai de vento em popa, com efeito. Hoje, quando se chega às bordas de Maragogi ou Neweau Frangland, as muitas pipas no alto indicam que a comunidade brasileira resiste e prolifera: nos derredores já se ouve populares a bradar algo como “manda lata, Zé”: o belo ritual popular de enchimento de lajes, múltiplo e incessante.

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QUANDO ESTE ESCRIBA VISITOU PESSOALMENTE o portento que é Neweau Frangland, teve antes de passar por uma espécie de estreitamento de pista, onde jovens seguranças da comunidade, descamisados e armados de potentíssimos fuzis, exigiam pedágios um tanto arbitrários, é forçoso admitir, especialmente smartphones. Tivemos de entregar. Vimos alguns turistas mais relutantes a irritar os descamisados da resistência, que saltavam dentro dos carros e subtraíam a justa taxa de entrada, ao que, diziam, “perdeu”, “tudo nosso” etc.

Enfim, a estratégia idealizada pela gloriosa comissão política, intelectual e artística parece ter dado certo. Relatos dão conta de que os franglish andam mesmo intimidados com o cinturão comunitário, no qual o verde-água do horizonte dá lugar ao laranja-tijolo e ao cinza-cimento, e os muitos fogos Caramuru Três Tiros de Canhão, disparados quando em gols do Flamengo ou por viaturas ao longe, assustam as sentinelas franglish no alto das torres, sobressaltando-as.

A intelectualidade acadêmica louvou tal iniciativa de resistência, tão brasileira, tão nossa; quando nossos carteiros chegam aos umbrais da fortificação — mensageiros são bem-vindos em Neweau Frangland, como é costume no país de origem — , bem, os carteiros entregam periódicos traduzidos em perfeito franglish aos líderes daquele povo, conscientizando-os de que praticam a mais hedionda exclusão social aos habitantes do cinturão comunitário, e que deviam se abrir, integrar-se mais aos resistentes. Sim, deviam viver em harmonia e a tudo dividirem, sobretudo suas mulheres franglish, chamadas “as novinha” pelos rapazes da ocupação, acometidos de mil priapismos ao ouvirem-nas dizer “velvelours” com charme inebriante. Tão logo leram as cartas, os patriarcas convocaram uma novena na capela Saint-André, a fim de penitenciarem-se e clamarem o perdão coletivo.

Por fim, os bons resultados principiam a aparecer: murchas e fenecidas, as tulipas das residências franglish são trocadas por concreto de betoneira, dádiva da Bruninho Lira Concretagens, do empreendedor e filho do falecido parlamentar lúbrico do mesmo clã. O sinal da Rede Globo já chega aos lares franglish, sob os auspícios da afiliada TV Marolinha, propriedade do atual governador Aristides Calheiros de Mello. Além disso, a taxa de natalidade franglish sobe a níveis estratosféricos de quando comparada ao início da colonização: nota-se como as crianças curam-se do exagerado alvor cutâneo e libertam-se do incômodo róseo nas faces. Antes onipresente, o louro platinado e reluzente deixa a cada dia o louro, o platinado e o reluzente.

Hoje, quem visita a pitoresca fortificação vê na entrada do cinturão comunitário uma grande placa, pintada à cal e restos de esmalte sintético, bem na praça de pedágio de smartphones: “Comunidade Vevelú” e embaixo o simpático subtítulo “aqui as novinha é tudo benvimdas” (sic). Enfim, a ordem e o progresso de nossa flâmula impõe-se novamente no território, e a brava gente brasileira triunfa uma vez mais. Tá tudo dominado.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Zé Lins ensina
a ironizar

Tempo de leitura: 5 minutos

Ainda leio jornal que suja a mão, no bom e velho papel. Faço isso desde guri, quando meu pai lia o Diario Popular (sem acento no “a”, mesmo) ou a Gazeta Esportiva, ambos de São Paulo, extintos. Pouco mais tarde, na adolescência, minha irmã mais velha encasquetou de ser jornalista e, em busca de referências, muniu-se de periódicos mais chiques: a Folha e o Estadão. Lembro especialmente das edições dominicais desses jornais, que pesavam por volta de um quilo cada exemplar. Era leitura para a semana toda. A partir de então, aprendi a ler colunistas, não sei porquê. Não parei mais. Eu devia ter o quê, uns onze, doze anos.

Leio colunistas hoje em dia: malgrado exceções muito honrosas, na maioria remanescentes do cenozóico, há uma entressafra no colunismo de dar dó. Dó do leitor. Sobe-me uns pudores por dizer o que direi, contudo é preciso: tem gente a assinar colunas que eu sinceramente não sei bem o que faz ali, para além do eventual ganho monetário. Não falo de concordância ou discordância de ideias: leio com frequência gente de quem discordo, desde que maneje bem a língua de Camões; aliás, ganham-me assim. Mas da tal entressafra, a imagino caída de paraquedas, encaixadas no veículo de imprensa por coincidências incríveis ou espertezas inimagináveis. Não sei bem.

Recentemente, dois desses privilegiados queixaram-se no Twitter de que fizeram colunas irônicas e foram mal interpretados. “Onde está a compreensão textual?”, pareciam dizer, expoentes da clareza e do bom estilo que são. Aham. A julgar pelas réplicas de leitores nervosinhos, diziam, o pessoal não entende uma simples ironia. Será? — pensei com meus botões. Porque, sendo ambos produtos da entressafra, eles não são lá muito hábeis na arte de ironizar. A figura de linguagem é coisa fina, reservada a mestres. Quero dizer: souberam eles trabalhar o recurso para que o pobre leitor entendesse, de bate-pronto? Porque, suspeito, o problema talvez fosse outro. Talvez fossem maus textos, aqueles. Eis a dura verdade.

Sustento a tese de que figuras de linguagem bem aplicadas, a ironia em especial, são captadas de imediato pelo leitor médio. Por avançados, nem se fala. Digo captados no efeito, não na definição semântica. Também quereria explicar que ironia não é sarcasmo — que é exagero carregado e amargo; nem galhofa, que é o atropelo da sutileza. Entretanto, não me dou a didatismos. Não sou professor de estilo, nem me arvoro a tal.

Para tirar a limpo, replico abaixo um texto do escritor José Lins do Rego, a que tive acesso recentemente. Não apontarei ironias: veja por si a gentil leitora, o gentil leitor, como o autor de Menino de Engenho, Fogo Morto, Riacho Doce e grande elenco maneja o idioma. E aproveite para deleitar-se com a verve do mestre, assaz melhor que a desta irrelevância, e elemento faltante à nova geração do colunismo. Volto em seguida:

Carta a Escorel

“Recebi, meu caro crítico, a sua carta onde volta a tratar de clássicos e românticos. É pena que eu não disponha de espaço para transcrevê-la, pois se trata de missiva muito bem escrita, embora não tanto bem pensada.

Em princípio não afirmei que as suas preocupações anti-românticas fossem caminho em rota batida para o reacionarismo político. Temi, somente. E temor de quem já vira outras grandes vocações como a sua tomarem por estradas perigosas. Sei de sua honestidade intelectual e me alegro em sentir em mocidade tão vibrante, e generosa, desejo de debater e, sobretudo, de compreender.

Agora, meu caro Escorel, vou lhe ser franco, muito franco: o seu horror ao romantismo, isto de querer colocar a questão entre liberdade e licença, isto de falar de anarquia, tudo isto não me agrada. Os déspotas sempre que se depararam com o problema fundamental da liberdade vinham logo com esta palavra de licença, para confundir e meter medo. Para todo aquele que se batia pela liberdade, o déspota tinha a chave: “estes que gritam pela liberdade só desejam a licença para destruir a ordem”. Confesso-lhe que não gostei de ver a sua mocidade com palavras de raposas sabidíssimas.

Outra coisa também, com que não me conformo, em sua carta, é querer você atribuir ao romantismo os crimes do nazismo. E querer botar em cima de Wagner e de Nietzsche as culpas desta guerra. Por que confundir o crime com o romantismo? O que existe no nazismo não é uma exasperação romântica como você diz, o que existe ali é somente fúria assassina. E fúria assassina ordenada, conduzida com o maior rigor, dentro de normas, ao compasso de marchas de gansos, tudo elaborado com a mais requintada gramática latina. Hitler é filho germânico de César, criação política de Roma. Wagner e os duendes da floresta negra são somente cenário para o sonho de mais um criador do império mundial. Mas isto é outro conto, como diria o inglês.

Cita você André Gide, fala de disciplina clássica como de conduta essencial à criação literária. Está tudo muito certo. Mas Gide fala para literaturas de maturidade, e nós no Brasil, meu caro Escorel, andamos em perigosa adolescência. O que é remédio para quem já deu um Montaigne não será dieta para quem carece de terra, de sol, de substâncias outras que organismos saturados repelem. Estamos nós brasileiros em tempo de muito precisar de viver, à grande. Para o homem que tem rios para atravessar, árvores para derrubar, terras virgens para lavrar, não se vai obrigar a tomar professor de ginástica sueca. A ginástica sueca fica para Gide, que cultiva rosas.

Em todo caso eu lhe diria, caro Escorel, é preciso não temer românticos. Fala o grande Valéry, tão da ordem clássica, que “toul classicisme suppose un romantisme antérieur”. E este mestre chega a estabelecer um quadro onde o romantismo aparece como o espírito pioneiro, a força que desbrava, a energia que conquista. E que, para completar esta obra, viria o clássico como a polícia de costumes, como a lei que impõe cartas de posturas, etc.

Sucede, meu caro Escorel, que nós no Brasil ainda estamos em plena selva. Ainda há muito trabalho para bandeirantes, para desbravadores, para gente dura e rude. Por isto, Escorel, eu ainda prefiro escutar os Sarmiento, os Euclides da Cunha, os Hernández, os Castro Alves. Estes sabem os segredos da mata, os perigos dos bichos, as asperezas da terra. E Gide, com todo o seu gênio de jardineiro, e Maurras, com toda a sua sabedoria da antigüidade, não saberiam nos conduzir na “bandeira”. É tudo quanto lhe diz o seu admirador.”¹

E então, ironias captadas? Se sim, minha tese há de estar certa: o bom leitor entende o bom texto; o mau escritor reclama do leitor. Possível objeção: “mas há gente que não entende mesmo, caspita! Você não sabe do analfabetismo funcional?” Sim, decerto. Mas ninguém que escreva profissionalmente o faz para incapazes de entender. Daí o problema dos moçoilos queixosos ser outro, com licença: falta muito Zé Lins e companhia limitada na cuca.

Portanto, pessoal: treino e aprendizado. C’est fini. Sem caô.


¹ REGO, José Lins do. Dias Idos e Vividos (Antologia). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981. pp. 113–114.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



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(Selo criado por Beth Spencer)

Véio da Havan
no Museu do Prado

Tempo de leitura: 5 minutos

Horas depois de tomar a terceira dose da vacina contra a Covid-19 — o booster by Pfizer — sentei-me um pouco no sofá, pois o imunizante causara em mim o que na boa Bahia chama-se leseira. Reação à vacina. Mas tentei passar a leseira de um modo interessante, e então, ao bater os olhos numa velha coleção repousada na estante, intitulada Grandes Mestres da Pintura, puxei o volume 7 que trazia as obras de Diego Velázquez (1599–1660).

Inevitável ver a reprodução dos quadros do pintor espanhol e não sentir um enlevo na alma. Mergulhamos no indecifrável ao ver suas telas, saímos de onde estamos e como que adentramos no quadro, o qual torna-se vida, presença. Cada olhar enigmático captura nossa atenção como um ímã. Cada pessoa, cada cena retratada por Velázquez é como se o artista transportasse o fragmento vivo diante de si num instante longínquo e o trouxesse a nós, hoje. Então, abre-se como que um portal no tempo. Penso, contemplativo: se a arte existe, Deus existe. Velázquez pintava com a mão de Deus.

Fechado o volume, encerra a contemplação. E devagarinho vai-se a leseira by Pfizer.

No dia seguinte, vou ao supermercado. E naqueles corredores, tenho um flashback: vem-me à cabeça uma conversa que tivera em 2008, no corredor do cafezinho da empresa. A Mega-Sena acumulara, e a turma, ao combinar um bolão no escritório, pôs-se a sonhar e a dizer o que fariam se botassem a mão na dinheirama. Pergunta batida, respostas idem: carro, casa, viagem; ajudar os pais; chutar o patrão e trabalhar “pra mim”; arranjar uma gostosa; e companhia limitada.

Daí o zé papo-cabeça aqui não se segura. No meio do parlatório, olho para um colega que divagava bobamente à minha frente e digo: “se eu ganhasse aquela grana, em primeiro lugar aprenderia a ser rico”. Ele me olha meio espantado. “Que diabos esse aí tá falando?”, faz com a cara. Leio seus pensamentos e emendo, “de que adianta ter tanto dinheiro e não saber desfrutar? Mansão, carro, viagem? Ter avião, fazenda com pista de pouso? Depois, escutar breganejo universitário e entornar rabos-de-galo em frente à churrasqueira? Isso não é ser rico. É ser pobre com dinheiro. Rico pede um jeito de ser, um refinamento adequado, uma cultura de acordo.”

À evidente falta de interesse do colega, corto a argumentação. Pena. Sigo por aqui, anos depois, pois continuo com a mesma opinião fresquinha na mente; opinião aliás renascida e vitaminada, sobretudo desde que travei conhecimento com certa figura infeliz deste vigente Brasil do Bozo: o famigerado Véio da Havan.

A este senhor, cujas lojas macaqueiam a Casa Branca do Tio Sam sobre nosso barro vermelho, chamam também Zé Carioca. Algo injusto e impreciso. Primeiro porque, malgrado o paletó-fantasia, Véio da Havan não tem nada de carioca; segundo que nem de longe mostra a simpatia do papagaio boa-vida de Walt Disney. O sujeito está mais para Dr. Silvana, arqui-inimigo do Shazam. Com uma diferença: Dr. Silvana respeitava a ciência até demais, afinal era um cientista maluco. O Véio da Havan, nem um pingo: sonega o conhecimento acumulado pela humanidade até em delicados assuntos de família, como num caso que tristemente soubemos.

Mas o tipo é bilionário e orgulha-se em dizê-lo. E grava uns vídeos em smartphones – hábito deveras aristocrático. Pois num daqueles vídeos, põe-se ele a dizer “eu tenho dinheiro, tenho dinheiro, posso parar de trabalhar quando quiser, e você?”, por aí vai. No contexto, ele se colocava contra o isolamento social no início da pandemia de Covid-19, insinuando que essa história de pobre se isolar da doença é muito luxo. Em seguida, esfrega na cara do brasileiro médio a montanha de dinheiro que possui. Gesto nobre e magnânimo. Algo como Mike Tyson ir a uma creche, reunir uns pimpolhos em volta de si e dizer “ninguém aqui é páreo pra mim”, para depois enrijecer os bíceps e rosnar (Mr. Tyson jamais faria isso, quero crer).

Pois o lamentável senhor pode ter mesmo muito dinheiro, ninguém nega — o que prova que o capitalismo pode ser tudo, menos justo. Porque o Véio obviamente não aprendeu a ser rico conforme defendi na frustrada disputatio da firma, em 2008. Ele teria grana de sobra para degustar, sei lá, um canard au sang no La Tour d’Argent de Paris, por exemplo; ou quem sabe repousar à mesa um legítimo Pata Negra Juan Pedro Domecq; poderia ainda umedecer a goela com um Macallan in Lalique 50 Years, sem sobressaltos. Mas, por favor: consciente do que significam tais mimos, com detida atenção aos detalhes.

Enfim, ele poderia tudo isso e muito mais, não apenas porque “tem dinheiro”, mas porque a bufunfa possibilitaria ampliar horizontes, gozar a vida, admirar-se um pouco do bom e do belo que o mundo tem a oferecer. E quem sabe, com o coração enternecido pela sorte que tem (ninguém chega a bilionário trabalhando, pare com isso), bem, retribuir algo à nossa sociedade, uma nesga que seja. Bancar a Cinemateca Brasileira, por exemplo. Seria o mínimo.

E olha, para tanta experiência aprazível nem precisa bilhão. Uns milhões já são suficientes. Mas o bilionário certamente trocaria a Costa Amalfitana de Gore Vidal pela Disneylândia do Pateta, para comer hot-dog com ketchup e pipoca amanteigada no balde, todo faceiro e pimpão; tanto mais porque não há empregadas a dividir o vôo da United com ele, graças a Paulo Guedes, seu igual.

Mas deixe-me voltar ao livro de Velázquez. Na última página, consta a informação de que as principais obras do pintor ibérico encontram-se no Museu do Prado, na Espanha, perfazendo um total de 53 quadros expostos. Pergunto-me se o cara das estátuas americanas de fibra admiraria a autêntica galeria madrilenha. Duvido muito. “O quê? Museu? 53 quadros? Peraí, você disse 53?” Certamente daria logo um bypass, não sem antes indagar-se, meio apoplético, “pra quê isso? qual a serventia?”, enquanto baba na camiseta verde e amarela.

Ok, meio que pego pesado. Dirão que invejo o Véio. Óbvio que sim: quisera eu ter tanto dinheiro como o havânico, saibam os doutores. Ademais, que resta a nós, aprisionados nesta encarnação de pobre melhorzinho-esforçadinho, um degrauzinho e meio acima da pobreza e a brigar todo mês com o cheque especial; ora, que nos resta exceto menosprezar um pouco os ultra-endinheirados? Sobretudo os filisteus até a medula? Tivesse uma fraçãozinha daquele tutu, eu seria feliz como ele nem imagina.

Claro, claro: não precisa ser bi nem milionário para ir ao Museu do Prado ver Velázquez. Bastaria arranjarmos um Ministro da Fazenda decente, que arrumasse a economia e o câmbio, no plano macro; e no micro, trabalhar, juntar algum e programar a viagem. É, eu sei. Está nos planos. Ocorre que o calvo poderia fazê-lo na hora que quisesse, mas a hipótese muito provavelmente nem lhe ocorre. Em vez disso, o que faz? Come hambúrguer no Madero? Lê as obras completas de Carluxo no Zap? Financia estripulias golpistas a terças-livres et caterva? Quanto desperdício. Pfui.

Enfim, o Véio é daquelas figuras que nos ressecam a inspiração, de modo que é melhor não demorar-se muito nelas. Portanto, encerro este colóquio à guisa de desabafo com uma pérola do filósofo popular e jurado Pedro de Lara, dita a madame Elke Maravilha (referindo-se a Silvio Santos — pioneiro da mesma lavra filistina donde procedem havans e quejandos):

“Tem gente que é tão pobre, mas tão pobre, que a única coisa que tem é dinheiro.”

Ó, sábio homem. Ó, injusto mundo.

Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 5/2/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Meus sete níveis
da prosa literária

Tempo de leitura: 8 minutos

Certo dia, pus-me a pensar na questão “o que é literatura?”. A palavra evoca certa erudição à primeira vista e há variadas definições para ela. Pessoalmente, diria à minha filha de seis anos que literatura é o mesmo que a arte da escrita. Não importa qual gênero textual. Por exemplo, é consabida a história dos famosos relatórios administrativos de um certo prefeito de uma cidadezinha do interior das Alagoas: um tal de Graciliano Ramos.

O alcaide teve o talento para a escrita descoberto por meio daqueles papéis burocráticos que relatavam a situação da administração do município. Ocorreu que a veia do artista já aparecia ali, em frases surpreendentemente interessantes. Numa palavra, aquilo tinha literatura, pois tinha arte. Chegado tal material ao conhecimento do sr. Augusto Frederico Schmidt — poeta e editor no Rio de Janeiro — fez-se o contato inicial e o ex-prefeito Graciliano foi alçado àquela que seria sua verdadeira vocação: escritor.

Quem dera tivéssemos mais Gracilianos e mais Schmidts.

Mas voltando ao assunto. Tudo que se publica é mesmo literatura, ao menos um pouquinho? Bem, críticos literários bocejariam nesse instante, pois sabem que tal pergunta já foi respondida de há muito. Minha intenção é mais modesta. Não sou crítico literário. Apenas rabisco um mapinha num guardanapo para a amiga e o amigo se encontrarem, de um jeito simples. Lúdico, até.

De modo que proponho um exercício prático. Imagine que você vai a um hipermercado e ali, antes da seção de pneus, esbarre num estandezinho de livros dispostos com desmazelo típico: vê uma autoajuda ali, o panfleto feminista acolá; um manifesto identitário e um Machado para constar; a biografia daquele ex-BBB; outro manifesto feminista e atrás dele, um livro de dieta. E o Torto Arado.

O que há de literatura ali?

“Machado, claro”, dirá o espertinho, sem titubear. Fácil demais. “Ah, Torto Arado!”, dirá a doce jovem que ama ler e que coleciona marca-páginas de crochê e assiste a booktubers. Hum, Torto Arado… ouço falar e uso de boa-fé. Mas enquanto a hipótese de visitar o sr. Itamar não me ocorre, seus leitores poderão saber se o bom baiano faz mesmo literatura, em qual nível; isto se minha classificação abaixo fizer algum sentido e conversar com a verdade.

Mas antes: não dogmatize, caridoso e eventual leitor; credo-em-cruz, Deus me livre e guarde. Sou leitor como tu, não autoridade no assunto. Ciente disso, posso inclusive abandonar esta classificação se me chegar uma melhor. Haverá melhores, seguramente. Dou-me por satisfeito se soar parecido aos mestres, se resvalar um tiquinho nos grandes. Embora deva dizer que jamais vi classificação parecida; logo, qualquer semelhança será mera coincidência.

Outra coisa importante (não vá embora!): a classificação serve apenas para prosa de ficção. Não entendo patavina de poema, de teoria poética. Este gênero está fora da consideração abaixo, exceto onde anotado. Também não trato de não-ficção (exceto no último nível, por pura necessidade). A arte da escrita está presente na prosa não-ficcional, evidentemente. Mas quanto a esta, limito-me a admirar os bons textos e rejeitar os ruins. Não me atrevo a classificar.

Sem mais delongas, enxergo a prosa em sete níveis por ordem de importância, a saber: Literatura de Tradição, Altíssima Literatura, Alta Literatura, Literatura Intermediária, Baixa Literatura, Subliteratura, Desliteratura.

Nível 1: Literatura de Tradição

Nela se baseiam as grandes religiões. Ela inicia civilizações, cria e mantém as grandes tradições; são a base da linguagem, mãe de idiomas. São os livros sagrados, as obras eternas, únicas, sem paralelo; mesmo o não-leitor tem contato ao menos indireto com elas, pois estão incorporadas ao espírito dos povos e de nações inteiras. É o nível mais alto da literatura, quase transcendente, pois separa o humano das demais criaturas, inventa sua Língua, estabelece seu espírito e dá forma a seu pensamento. Dela derivaram todas as demais expressões literárias, todas as manifestações culturais e tradições dos povos ao longo da História. Breves exemplos: os livros sagrados das grandes religiões; as peças gregas; os épicos; a Ilíada e a Odisséia; a Eneida; a Divina Comédia¹.

Nível 2: Altíssima Literatura

Esta é a categoria das obras mais importantes da prosa enquanto leitura. Não são apenas obras clássicas, mas referências máximas que modelam gêneros, justificam a existência destas e elevam a outro nível a arte literária. São matrizes quando se trata de ficção. Por exemplo: Dom Quixote, Moby Dick, Guerra e Paz, Os Irmãos Karamázov, o Fausto de Goethe, as peças de Shakespeare².

Nível 3: Alta Literatura

Esta é por excelência a seção dos maiores clássicos da literatura universal (e aqui adentra um brasileiro), especialmente os grandes romances dos séculos XIX e XX (mas não só): Madame Bovary, Crime e Castigo, Anna Karenina, Razão e Sensibilidade, Um Conto de Duas Cidades, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro etc. etc. etc. Impossível listar os mais importantes. O conjunto consta nos cânones.

Nível 4: Literatura Intermediária

Clássicas ou não, as obras intermediárias carregam adiante a tocha da literatura. Nada têm de medíocre — muito pelo contrário. São grandes livros: uns clássicos e outros não necessariamente, segundo a crítica. Podem figurar em listas importantes e não raro serem “clássicos pessoais”, a depender do gosto de quem os lê. De toda forma, são prosas feitas com tal arte que ultrapassa o mero prazer em ler. Dialogam com a existência humana e seus dramas. São obras importantes, pois nenhum leitor que se preze pode prescindir delas ou menosprezá-las. Alguns exemplos (dentre centenas): O Processo Maurizius, Servidão Humana, Mrs. Dalloway, A Montanha Mágica, Lolita, O Som e a Fúria. A lista é imensa, imensa…³

Nível 5: Baixa Literatura

Não se assuste com o “baixa”. Falamos ainda da arte e estamos protegidos pelas cercas do bom gosto. Ainda nos abrigamos na casa da literatura, mas fomos ao quintal para espairecer um pouco, tomar ar fresco. Por que este “baixa”? Algo pejorativo? Não, de maneira alguma. Pelo seguinte: embora ainda literatura, aqui estão obras mais comerciais, geralmente recentes do ponto de vista histórico, mas de qualidade indiscutível. São livros de ótimos e de bons autores, que dialogam com os grandes textos e grandes autores. Caracterizam a baixa literatura:

  1. a intenção de ser popular, porém com qualidade;
  2. transportar e preparar o leitor para literaturas mais elevadas (dos níveis acima, portanto), numa espiral ascendente. Aqui está sua maior atribuição.

Portanto, digamos que a baixa literatura cumpre uma função nobre e importante: apresentar o mundo dos bons livros ao leitor iniciante e ensiná-lo o gosto por ler. Não que seja coisa apenas de novatos, de maneira alguma. Pode ser que os livros desses autores tornem-se clássicos algum dia, embora seus autores não sejam clássicos no todo; o que não os afasta da apreciação mais que merecida. Exemplos (por autor): Morris West, Somerset Maugham (cujo Servidão Humana citado acima considera-se clássico), Truman Capote (A Sangue Frio, outro clássico), Georges Simenon, Agatha Christie, Isaac Bashevis Singer, Mario Vargas Llosa, Milan Kundera… entre centenas e centenas de outros.

Nível 6: Subliteratura

Aqui a coisa muda sensivelmente: fechamos a cara. Há um corte abrupto, uma mudança de cenário. Saímos da arte e entramos na caricatura da arte, logo, no engodo. Como o nome indica, a subliteratura está abaixo do fazer literário. Há uma subliteratura de iniciantes ou amadores inábeis, facilmente detectável e tolerável por motivos óbvios: o que não significa que todo estreante faça subliteratura, longe disso. Todo grande escritor começou um dia. A diferença se nota no teor. Quem fizer algo relevante irá adiante, cedo ou tarde.

Mas grassa aqui outro tipo de escrita, algo intencional. Seus autores escrevem por fórmulas fáceis de composição, tramam enredos esquemáticos, formulinhas que “funcionam”: começo, meio, fim, pá e pum. Não têm cuidado com chavões ou lugares comuns, pelo contrário.

A subliteratura profissional busca vender muito e distrair. Não busca a reflexão. Não dialoga com a existência humana, dá-se apenas a melodramas rasos. Abusam da linguagem coloquial. São inverossímeis, e de umas situações tão escancaradamente vazias que por vezes são percebidos pelo próprio consumidor. Seus personagens são rasos, com nomes estranhos. As falas copiam os piores filmes.

Diferente da baixa literatura (nível 5), a subliteratura não quer leitores mas clientes. É o fast-food dos livros: enganam a “fome de ler” mas não nutrem. É o lugar dos best-sellers da hora (americanos em especial; geralmente de autores-franquias, com o nome gigantesco e padronizado nas capas): Tom Clancy, Jojo Moyes, John Green, Danielle Steel. A lista não acaba. Mas há como detectar: o nome do autor é maior que o título da obra? Eles tem um caminhão de títulos e lançam um novo a cada ano? Hum…

De resto, a liberdade. Um Big Mac de vez em quando não mata ninguém: consuma, se quiser. O dinheiro é seu. O tempo, também. A mente, etc.

Nível 7: Desliteratura

O pântano. O horror. Um atentado à inteligência popular. Sim, é possível baixar um pouco mais. Se a subliteratura está abaixo da arte e afasta o leitor-consumidor dos melhores textos, a desliteratura dedica-se a destruir qualquer arzinho de gosto literário. Picaretagem em forma de livro, feita de espertos para burros. Pega-trouxas. Aqui pousam os trapaceiros, os oportunistas, os caça-níqueis; apelativos de toda sorte. Puro desperdício de eucalipto, são todos escritos por ghostwriters de quarta categoria, sempre apressados, mal pagos, com muita preguiça ou tudo junto. Quando autorais (algo quase impossível), serão escritos por gente que se arvorou a escrever sabe Deus porquê, já que não gostam de ler, nunca leem nada na vida, sequer uma nota de jornal. Fácil comprovar: a ofensa ao idioma grita a cada linha.

Nesse ensopado cabe tudo: “biografia” de ex-BBB, confissões da youtuber com uma Espanha de seguidores; aquela capa que grita “Seja Foda” ou “Foda-se-Alguma-Coisa”: sabe que tipo de leitor se impressiona com uma palavra chocante na capa, a ponto de comprar o livro? Zero. Nenhum. Só o não-leitor e futuro nunca-mais-leitor.

Esqueça qualidade. O propósito da desliteratura é vender pelo choque, embarcar no timing e faturar. Quem a consome, suicida o próprio gosto pela leitura de imediato e incrementa a burrice — isso se ler mesmo. A esses, seria melhor assistir séries no streaming, ver rede social no smartphone. Poupar as árvores.

E a literatura brasileira?

Machado de Assis é nosso escritor universal. Diria universal aquele cuja obra o mundo devia conhecer, para seu próprio benefício. Nossos demais escritores clássicos, porém, não os vejo como universais. Suas obras habitariam da alta à média literatura (Níveis 3 e 4). Quanto aos contemporâneos, creio que fiquem pela baixa literatura (Nível 5): conduzem seus leitores à média e alta literatura. E fazem arte, em geral.

Então, pensei nos portugueses que nos deram o idioma, afinal. De cara, confesso minha ignorância além do básico que nos chega ao Brasil (para nosso azar!). Destes, universais indiscutíveis são Camões e Pessoa, eternos. Mas são poetas, e não trato aqui de poesia. Na prosa, Eça e Camilo estariam no Nível 3, Alta Literatura. Universais, também. Saramago foi Nobel de Literatura, mas temo classificá-lo: julguem seus leitores. Lobo Antunes estaria no Nível 4. José Luís Peixoto, Nível 5. Certamente cometo injustiças, sem intenção. Demais lusófonos, há que conhecê-los. Chegarei a eles conforme as indicações me constrangerem a ponto de não suportar o vexame de não lê-los.

Por fim

Toda literatura de todos os gêneros literários nos torna melhores na alma — em diferentes graus. Bons livros sempre levam a melhores livros. Livros ruins levam-nos para longe de todo e qualquer livro. De modo que é preciso educação literária: quando menos, alguma informação que ajude na tarefa. Tentei isso neste breve artigo, humildemente. Espero que com proveito para quem eventualmente o acessar e ler.


¹Nota – nível 1: Embora se apresentem em versos, portanto poéticos, é preciso considerar que a escrita antiga lançava mão da versificação como forma de passar da oralidade à textualidade. Não se trata de poema como conhecemos hoje, isto é, de gênero literário em separado. Ademais, a escrita em verso antecede a prosa tal como a conhecemos, por isso, Tradição.

²Nota – nível 2: Estas duas últimas (Shakespeare e Goethe), embora em verso, foram escritas para o teatro. Goethe também escreveu em prosa. Quanto à versificação, de certa forma, aplica-se o mesmo caso da nota anterior.

³Nota – nível 4: Talvez haja dissenso aqui; certamente haverá. Por isso, reitero: sem dogmas. São apenas percepções pessoais, passíveis de equívoco. De toda forma, mesmo quando não clássicos absolutos, todas as obras são de muito alto nível aqui. A diferença reside justamente na ausência do “cânone” consensual entre a crítica, esta que pode variar muito, pois não se trata de ciência exata.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 29/01/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

os senhores respeitáveis

os senhores respeitáveis:
se reúnem novamente
os senhores respeitáveis.

deliberam, entreacordam,
engendram leis detestáveis
os senhores respeitáveis.

urdem tramas nos carpetes,
contra campos e cidades
os senhores respeitáveis.

jamais cuidam realmente
da gente as necessidades
os senhores respeitáveis.

dentro em casa, nobres damas
gestam a continuidade
dos senhores respeitáveis.

longe, esperam as amantes
que saciam apetites
dos senhores respeitáveis.

moral falsa: capa útil,
camuflagem das maldades
dos senhores respeitáveis.

A alma sensível

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Para além da inteligência, há quem possua uma força invisível que vivifica e impele sempre adiante e acima. Uma gente inconformada, no sentido de não se encaixar em formas predefinidas nem em camisas de força. Não são renegados nem rebeldes, mas espíritos elevados, movidos por virtudes afirmativas e não por oposições e implicâncias. São poucos, entretanto. Não há designação única e definitiva para personalidades assim. José Ingenieros chamou tal disposição de “o idealista”. Ernst Hello, de “homem superior”. O profeta Daniel designa tal caráter como “espírito excelente”. Há outros exemplos.

A essa força motriz, a esse ímpeto provindo de fonte desconhecida e inexplicável chamarei alma sensível. Trata-se da mesma substância descrita acima e, em todo caso, tais personalidades — não importam quais pequenas variações as diferenciem — , opõem-se preliminarmente a dois defeitos da humanidade: a maldade e a mediocridade. A luta desta alma sensível consiste em combater malignos e medíocres, antes de tudo dentro de si. Mas não somente.

Mais frequente que a malignidade é a mediocridade. Produto social, ela normaliza nos indivíduos os vícios da coletividade até o ponto de não serem mais percebidos como vícios. O medíocre — não confundir com o equilibrado e portanto virtuoso — acomoda-se às convenções do momento por um cálculo a um só tempo astuto e defensivo. Sua alegria é rasa e seus lemas de vida estúpidos, sempre obtidos por repetição. Vive de emblemas superficiais e não o incomoda a própria imperfeição. Se chamado a se examinar e a se modificar, o medíocre se ofende e reage, pois, refratário, faz de seus sentimentos confusos e impressões vagas escudos contra toda luz nova e diferente. Evita porquês a todo custo e, passivamente satisfeito, detesta grandezas. Do ponto de vista do intelecto, medíocres são como mortos em vida.

Por outro lado, a sensibilidade interior jamais se nota à primeira vista. Há quem aparente ser alguém absolutamente comum, sem qualquer atrativo imediato, cuja alma é sensível. E existem indivíduos notavelmente cultos e eruditos que, opacos por dentro e por fora, são precários em matéria de espírito.

Nem toda pessoa sensível no sentido comum do termo possui esta alma contemplativa, introspectiva. Seu traço marcante está na abertura às percepções sutis e, ao se valer da cultura — em geral o faz — , não a traz na epiderme mas no íntimo, internaliza seus significados mais elevados. Almas sensíveis captam o movimento dos mistérios, como se todo oculto não fosse invisível mas translúcido, diáfano; discernem o que há por baixo das coisas, captam segredos, notam detalhes por entre as proposições antagônicas. Elas intuem e antecipam.

Humanas, tais almas podem incorrer em erros, claro. Têm um fraco por conjecturar demais e não raro viciam-se em si mesmas, nos próprios pensamentos e teorizações. Também correm o risco do solipsismo. Serão espíritos saudáveis se não confiarem muito nas formulações a que chegam e deixarem a realidade educá-las, falar por si. Com a maturidade, a alma sensível aprende a trabalhar a intuição e a formular conforme as impressões tomam corpo e se definem. Enquanto isso, é magnânima, compassiva. Não age feito juiz ou moralista — exceto se a falha for intencionalmente má.


“Se você é dos que orientam a proa visionária para uma estrela e estendem a asa para a sublimação inatingível, desejoso de perfeição e rebelde à mediocridade, leva dentro de si o impulso misterioso de um Ideal. […] Você só vive por essa partícula de sonho que o eleva sobre a realidade.”
— José Ingenieros¹


Soa algo metafísico, com efeito. Almas sensíveis realmente sentem algo a mais no ar, detectam causas e consequências; taciturnas, são previsíveis na rotina e surpreendentes nas opiniões. Contudo, podem equivocar-se também. A ser assim, refazem o parecer inicial quando a massa mal assimila o senso comum de anteontem. Saem do equívoco antes de consumar seu efeito ou nem mesmo entram: sabem quando o bem torna-se mal; leem sinais difusos ainda em germe no horizonte; recusam-se a ser ovelhas rumo ao matadouro ou mosquitos que, hipnotizados pela luz, voam ao redor da lâmpada para a morte.

Almas sensíveis são reconhecidas por outras almas sensíveis, jamais pelo vulgo. Elas buscam seus pares, seus iguais, porém raramente os encontram, pois não se dão às amizades. Desconfiam muito, reservam-se demais. A presença constante dos outros as deixam aturdidas e irritadiças, como se o contato lhes sugasse a seiva, a energia espiritual. De maneira que se fecham àquilo que justamente as poderia fortalecer: os amigos. Talvez esteja aqui sua maior fraqueza.

Como se vê, ninguém é perfeito. Mas as almas sensíveis anelam a perfeição. Embora seja impossível alcançá-la, a jornada vale por si. Seus padrões são elevados. Para com fortes, alternam admiração e desprezo; e dos fracos sentem compaixão. Sua marca pessoal é a solidão, mesmo em meio às multidões.

Enquanto isso, grassa o vulgo lá fora, sempre em busca de satisfação imediata e entorpecimentos variados; saboreiam o mundo como uma sobremesa, incham e esparramam. Não faltam motivos para permanecer no ponto em que estão, no plano interior. Tampouco faltam companhias. Medíocres existem em maior número por um único motivo: facílimo é ser medíocre.

Almas sensíveis, por outro lado, não importa o tamanho de suas angústias ou o peso de suas dificuldades, recusam o nivelamento. Adaptam-se socialmente por necessidade, caridade ou prudência, e só. No mais, são autodisciplinadas e carregam algo da Eternidade em si. Possuem como que asas invisíveis, embora, para não serem tomadas pela soberba para depois caírem como anjos rebelados, não levantam voo diante do próximo. Enquanto presos a esta vida, a elas resta escapar do chão de outra maneira: por meio de realizações edificantes, a si e ao próximo.


¹ INGENIEROS, José. O Homem Medíocre. Curitiba: Editora do Chain, 2011


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 22/01/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Diálogo com Odeque

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Cesare Pavese escreveu Diálogos com Leucó, um clássico; eu arranho um Diálogo com Odeque, um pastiche. Antes, o dito-cujo: Odeque é O. de C., Olavo de Carvalho. À guisa de preâmbulo, autorizo-me a dialogar com este Odeque de minha criação mental, pois apesar de ter sido seu aluno durante uma década, o mestre propriamente dito não me conhecera em pessoa. Andei ali pela escolinha entre 2006 e 2015, meio às escondidas, num tempo em que o máximo de fascismo que um petista podia conceber encarnava-se na acabrunhada figura do dr. Geraldo Alckmin. Bons tempos.

Pois bem antes de o coisa-ruim Bolsonaro lançar gratuitamente o país num inferno astral, estava eu ali, cândido e oculto, na turma do fundão do olavismo cultural; daí que o professor jamais me conhecesse. Contudo, libertei-me e sobrevivi àquilo, vale dizer. Estou limpo. Entretanto, não estive no fundo da sala por ser um dos alunos arruaceiros, como reza a tradição dos fundões. Os alunos arruaceiros tornaram-se os queridinhos do mestre, soubemos depois, quando aqueles subiram ao palco e tomaram conta do show de 2018 em diante. O resultado está aí.

De minha parte, eu ficava lá acanhado, casmurro; aquele aluninho que até estuda um bocado mas guarda tudo consigo, não se projeta, não se manifesta; um esquisito que entra e vai ficando, inofensivo. Ninguém mexe com ele, ele não mexe com ninguém. Pois assim estive lá, a ouvir, anotar, refletir. Depois, debatia tudo intensamente com meus botões, com pedras e plantas.

Findo o preâmbulo, vamos ao assunto.

Em certa entrevista antiga, Odeque afirma com sarcasmo típico que o Brasil jamais teria um Dostoiévski, que nunca chegaríamos a tanto: o tipo da frase desmoralizante que leva o vira-latismo brasuca ao clímax, dado que não há esporte mais estimulante ao complexado vira-lata brasuca que amassar bem amassado a estima brasileira e condená-la ao fracasso antecipado, à frustração preventiva. Antes garantir a derrota líquida e certa que expor-se a lutas, a esforços ou a vãs competições. Leva o troféu, estrangeiro-qualquer-um, toma logo o que é teu. Gastar tempo com disciplinas e melhorias? Abrace logo o fracasso e seja infeliz, pensa o vira-lata. Dá menos trabalho.

Mas divago. O fato é que, mais uma vez, Odeque teve razão. Certamente ele folgaria em saber disso, por novamente diagnosticar a vida como ela é. Todavia, seu acerto deu-se por outra via, de um jeito que ele não esperava. Chutou torto e acertou sem querer. Claro, naquela entrevista — amarga à época, pois Lula acabava de vencer de novo as eleições — ele quis cumprir seu papel e missão de vida, qual seja, polemizar, espezinhar e ofender o brasileiro e a brasilidade, do qual tinha e ainda tem bronca até a medula, embora sirva-se dela. O intento original saiu pela culatra, porém.

De fato, nunca teremos um Dostoiévski porque já tivemos um Machado. Constatei isso na prática quando, em 2016, vi um mendigo na rua a sorrir e a fazer troça não sei de quê. Ao observar aquela cena singela tive um lampejo. Descobri ali certa substância brasileira, no mendigo que ri. Algo que escapa à lógica. Que pode haver de mais nosso que aquilo?

Evidente que, como na Rússia do Fiódor, não nos faltam humilhados e ofendidos; não obstante, nossos oprimidos guardam no lugar da melancolia uma esperança viva dentro de si. Constantemente os índices de felicidade colocam o Brasil numa posição de destaque, até com certo exagero. É comum repórteres da tevê chegarem a pessoas que tiveram a casinha alagada numa enchente, as quais perderam tudo do pouco que tinham e que, sabemos, ninguém irá ajudá-las, e elas dizerem, esperançosas, “podia ser pior, vamos em frente com fé em Deus”. Dia desses vi uma entrevista assim. Quase submerso, o homem sai de sua casinha alagada com documentos nas mãos e sorri: “consegui salvar o RG”. Um forte.

O caso é que o brasileiro não dá muito ibope a seus infortúnios, nem moral demais a estacas zero. Ele sorri — não por alienação nem irresponsabilidade, muito menos por insanidade. Naquele sorriso mora uma centelha, uma fagulha íntima a apontar que o pior já passou, passa, passará (salve, Nelson Ned). Deus há de ajudar. Ele sempre ajuda.

Daí que a escrita soturna de um Dostoiévski não caberia mesmo no Brasil, Odeque. Nossa natureza é outra. Nosso sofrimento foi sublimado pela ironia machadiana, que foi a forma elegante — do bruxo e a nossa, por extensão — de rir das mazelas todas. Rir e lutar, é claro. Com isso não digo que a melhor literatura daqui seja feita apenas de gargalhada e gozação. Temos drama de sobra na praça. Mas sempre sobra uma forcinha residual, um último fôlego guardado para o instante seguinte, para quando a tempestade acabar — e ela sempre acaba. Então, a fibra toma o lugar do desânimo e o brasileiro sobrevive para contar. Além disso, não descemos a subsolos; não nos entregamos a ridículos; não deixamos que o niilismo more em nós a ponto de matar velhinhas usurárias ou engendrar revoluções que traumatizem nosso destino por décadas. Até nossa violência é uma enorme brincadeira (embora de péssimo gosto, bem entendido). Em tudo somos lúdicos e crédulos.

No fundo, nossa aparente fraqueza é um tipo diferente de força. Porque o Brasil é indomável, veja: tirano algum consegue manter nas mãos nossa índole escorregadia, sem aderência. Aqui está um segredo brasileiro. A inexatidão de nosso temperamento e a imprevisibilidade de nossas reações não permitem a ninguém um domínio perfeito e duradouro do país, como quem segura uma maleta pela alça. Ditadores desorientam-se conosco, cedo ou tarde. Nós sempre os driblamos, feito uns pelés.

A história comprova: quem tentou domar o país perdeu-o pouco depois e sempre de um modo estúpido em vez de sangrento. Mesmo na vigência daquele pretenso domínio, o tiranete da vez bambeia, segura-se para não estatelar no chão mole de nossa complexa indefinição e sofrer um vexame que o faça arrepender-se do golpe inicial. Ele queria nossa melancolia, nossa depressão; porém, consegue nosso humor. Assim enfrentamos os dissabores. Se o hoje é triste, o amanhã será diferente, sobretudo porque o tiranete está excluído de nosso amanhã. Saber disso o perturba desde já. Poder no Brasil é pau-de-sebo: tenta-se o topo, escorrega-se em seguida.

Portanto, sim: não temos um Dostoiévski, Odeque. Você está certo do jeito errado. E por tal ilogicidade provas que, embora a contragosto, também és mui brasileiro. Não que o Brasil faça lá muita questão disso. Fazemos questão de Machado e de Pelé. Quem não vive sem a gente é vossa senhoria.

De resto, é como bem disse outro escritor nosso que também não foi Fiódor: viva o povo brasileiro.

Bicho romancista,
filhote romance

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O bicho romancista não é apenas um contador de histórias. Seu ofício não deve ser visto como qualquer coisa menor, como se não passasse de inventar uns quantos causos razoavelmente elaborados ou conversa fiada na forma de livro. O bicho romancista pode ser também um artista do idioma, filósofo, historiador, psicólogo, profeta, (santo não digo). E até mais.

Bicho é modo de dizer, pois ele é estranho à primeira vista. No entanto, pode ser mais gente que a gente. O romancista penetra no tecido da realidade, por entre as tramas, com sensibilidade e argúcia. Ele enxerga a alma humana com olho clínico. Alimenta-se da verdade oculta nas coisas, nas pessoas e situações do mundo, para depois metabolizar tudo de um jeito singular. Feito outro bicho, a águia, ele vê o senso comum desde as altitudes e o recria, o retrabalha.

O romancista é feroz e calmo, veemente e sutil, a um só tempo. Ele articula extremos, ata as pontas, sintetiza complicações, comprime e expande. Abre as percepções como quem abre a janela de um quarto escuro, e nesse simples gesto dissipa as trevas da incompreensão.

O filhote do bicho romancista é o romance. Sem prejuízo dos demais gêneros literários, o romance representa a maturidade da literatura enquanto tal. Por exemplo, muita gente já ouviu o elogio que se faz à natação, “esporte completo, que trabalha todo o corpo”. Pois bem: o romance é gênero completo que trabalha toda a imaginação. Afinal, onde mais se pode descrever tantas faces da existência — faces por vezes caleidoscópicas — , reunidas numas poucas personagens e situações?

As demais artes não são capazes de tal, tampouco se propõem a tal. Pois o romance serve a burocratas, sociólogos, atores, faxineiros, médicos, clérigos; a pobres e a ricos. A toda gente. É nobre criação, da qual o romancista é artífice habilidoso.

Mas, e quanto ao leitor? Descendo ao rés do chão, não vejo com bons olhos quem leia de tudo exceto romances. Tudo bem: pode ser que, para alguns, ainda não tenha ocorrido um encontro feliz com o gênero; haverá tempo e oportunidade se houver disposição. Contudo, refiro-me àqueles que por ignorância desdenham da ficção literária em geral; ou dela façam leituras protocolares, de exceção, para fins de repertório livresco. Agem como se pairassem acima da arte, com suas seriedades comezinhas e estúpidas. Uns filisteus.

Por outro lado, consumir livros de afirmação — a não-ficção propriamente dita, com suas variadas ramificações; voltar-se apenas a teses rígidas e pré-digeridas pelos autores, repletas de conceituações ou análises áridas do cotidiano — , obviamente tem seu valor e utilidade. Não obstante, somente o romance dará ao leitor uma massa maleável e informe a ser moldada por sua própria imaginação. E a imaginação é o dínamo da inteligência.

Quer liberdade maior para o pensamento? Que outro gênero oferece tanto? O romance constrói, amplia e enriquece a visão da vida e das coisas. Depois de lido, a própria não-ficção deriva-se também, ultrapassa as inculcações superficiais, os dogmatismos esterilizantes. Romances educam o ato de ler, treinam a compreensão. Fazem os demais textos ficarem claros, discerníveis. Inclusive os textos ruins, ao denunciá-los como ruins.

Além disso, não vendem certezas. As teses do romance são sutis. Não fazem a cabeça, pelo contrário; por vezes questionam as convicções, como se postassem um espelho diante de nossa vaidade autoindulgente, a nos dizer: “olha como é você, como somos, de que é feita nossa humanidade”. Chegam a confundir-nos, de modo benfazejo; amadurecem-nos, desenvolvem nossa consciência moral e abrem perspectivas, varrendo pré-julgamentos.

Claro: refiro-me ao melhor produto e aos melhores produtores do gênero. O bicho romancista e o filhote romance não se deixam confundir, não admitem impostores. Antes, os desmascaram.

O gentil-homem

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Em tempo de minorias e identitarismos mil, ninguém fala dele: do gentil-homem. Não do homem pura e simplesmente, por favor. Homem é coisa (sim, coisa) detestável per se hoje em dia, categoria condenada por sábios e entendidos de gêneros e temas afins. Falo do gentil-homem, outro papo.

Gentil-homem é aquele tipo boa praça, razoável ou minimamente culto, um pouco tímido, um bocado acanhado, sempre contido. Trabalhador, estudioso, vai por aí. Obviamente honesto e invariavelmente bondoso; jovem ou nem tão jovem. Um tipo de quem a vovó quando moça chamaria bom partido. Aquele a quem Baltasar Gracián dedicou toda uma obra, intitulada El Discreto.

O gentil-homem é tipo raro atualmente, um Quixote sem Dulcinéia, repleto de virtudes ocultas e portanto desperdiçadas. Ele não estará nas noites da cidade. Ele não pegará ninguém. Ele é romântico e atencioso sem ser gay, fique bem entendido.

Ninguém espere que o gentil-homem saia pelas ruas empunhando cartazes em sua defesa, reivindicando direitos, exigindo representações. Seu pudor jamais o permitiria. Quando feministas montam em seus rolos compressores verbais, asfaltando tudo que é masculino, os exemplares canalhas e cafajestes do grêmio macho nada sentem, pelo contrário; mas no seu canto, o gentil-homem enrubesce e se recolhe. Acha que é tudo com ele, coitado. Se responsabiliza, se culpa. Porque ele vê algo de sagrado no feminino: a sua própria mãezinha, a Virgem Maria Mãe de Deus.

É mais fácil que gentis-homens empunhem livros clássicos nos espaços públicos — talvez num Kindle se for jovem — que montar em motos com coletes de couro e ir a motociatas do Bolsonaro para xingar comunistas. Ninguém os verá em barbershops de macho a tomar cerveja artesanal, arrotar e falar de bunda feminina. (Gostam de ambas, sim; com discrição e cortesia, porém.)

Não esperem que programas de sofá da tevê debatam a segregação do gentil-homem, que reúnam cases emblemáticos, depoimentos de vítimas do preconceito contra eles. Tal não ocorrerá, pelo simples motivo de que ninguém sabe o que é um gentil-homem. Hoje em dia, ninguém sabe. Principalmente — e infelizmente — as moças e suas sonhadas futuras famílias (pois sim, há ainda as que desejam tê-las, embora o artigo esteja fora de moda), elas não se dão conta da existência deles, deixam-se levar pelo barulho. De modo que ambos se desencontram na vida e nada lá fora ajuda na tarefa de aproximá-los.

Pois o mundo ainda sofrerá por desdenhar o gentil-homem, anotem. Ele, comedido — e quem sabe agora mesmo um tanto ruborizado ao ler estas linhas modestas, um tanto tocado por essa lembrança singela — , ele terá pudores de avisar em público a sua utilidade. Embora saiba disso. Embora saiba um bocado de coisas.

De sorte que, se a sociedade os ignora, ó moça valorosa, despertai! Se és realmente inteligente e de boa cepa, não dê sopa! Gentil-homem é o nome: procurai, observai, notai! — porque eles existem e estão a vagar por aí, asseguro.