A primeira impressão
é a que fica?

Tempo de leitura: 4 minutos

“Axe. A primeira impressão é a que fica.”

O famoso slogan data dos anos 1980, quando os comerciais de tevê não desfrutavam dos atuais recursos de computação gráfica, de imagens em 4K HDR a 60 frames por segundo e outros recursos tecnológicos da atualidade. Naquele tempo, a limitação visual da publicidade era compensada criativamente pelo texto publicitário, e há toda uma galeria de propagandas daquele período que se tornaram marcantes, inesquecíveis: o dilema de Tostines, o efeito Orloff, e tantos outros.

Embora ótimo, o slogan “a primeira impressão é a que fica” talvez caísse bem para o desodorante, não para o gosto literário. Bem, assim julgo eu, a partir de minha própria vivência de leitor até agora. Passo à primeira pessoa do plural, pois imagino que a experiência nos seja comum: no início, quando se abre a caixa mágica da grande literatura para nós, logo elegemos nosso autor preferido e nada mais importa nessa vida. Essa é a primeira impressão. Que não fica, porém.

Conforme descobrimos e mergulhamos na leitura, o leque de afinidades se amplia ou até muda completamente. Não significa que o autor preferido de ontem será o desprezado de amanhã, pif-paf, como se o gosto literário fosse algo bipolar. Não. Ocorre que, quanto mais o repertório de obras aumenta, mais descobrimos aqueles autores que se adequam não apenas ao nosso paladar textual de momento, digamos, mas ao nosso temperamento, à nossa personalidade, circunstância, maturidade. Numa palavra, à nossa afeição.

No meu caso, um escritor que de início deixou-me embasbacado foi Flaubert. Li Madame Bovary e fiquei não apenas fascinado com a história enquanto tal, mas também com a precisão vocabular, o acerto meticuloso de cada parágrafo, como se ele escolhesse cada palavra com esmero, para não estar ali à toa. De fato foi intencional, descubro depois. Achei genial.

Depois ainda leria de Flaubert seus Três Contos¹ (Um Coração Simples, A Lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade) e então não tive dúvidas: o melhor romancista era também o melhor contista. Achei meu lugar. Demais autores que me perdoassem, mas meu coração de leitor pertenceria ao mestre francês. Ainda leria depois seu Educação Sentimental e minha predileção só aumentou.

Mas a fila andou, sem que eu desse por isso. Guardei em bom lugar a ternura que senti por Flaubert e fui acessando outros textos e escritores. Sem intenção alguma. Não quis trocar de autor preferido a princípio. Por exemplo, mais à frente conheceria Tolstói. Colossal, monumental, o maior de todos. Assim entendi Tolstói: um totem para ser admirado com distanciamento reverencial e certo assombro. Grandioso demais para ser autor de cabeceira. Sua voz representa a universalidade do drama humano de todos os tempos, não de um leitor específico (embora possa, claro).

Contudo, não são os monumentos que trazemos ao coração, via de regra. Nosso autor preferido fala ao nosso íntimo, à nossa particularidade subjetiva, para além de suas histórias cativantes. Traz-nos uma identificação pessoal. De sorte que continuei fiel a Flaubert, até que por acaso tomei conhecimento de um tal Philip Carey, protagonista de uma obra chamada Servidão Humana, escrita por certo William Somerset Maugham.

Para além da obra em si — espetacular — a maneira de Somerset Maugham narrar inspirou-me não apenas a ler com gosto, mas a escrever. Quer dizer, quando li Servidão Humana² tive um estalo e disse a mim mesmo, não me pergunte como: quero fazer isto aqui, desse jeito (o dedo indicador direito batendo na página). Escrever ficção. Depois iria a outras obras suas, e a sensação permaneceu. De novo, não se tratou de um aspecto comparativo, de maior este-menor aquele. Maugham tornou-se melhor que Flaubert para mim? Não. Ocorreu a identificação, espontaneamente. Se um dia eu escrevesse, seria aquele meu norte. Não como cópia ou imitação; de fato, não sei se o ‘som’ do meu texto é semelhante ao de Maugham (para azar meu).

Então, o que houve?

Para além do estilo adorável, notei que a prosa de Maugham não deixa o leitor perdido, flutuando na narrativa. Com peculiar sutileza, ele situa o leitor no espaço, no tempo e na situação; muda o cenário, ele te situa. Talvez esse cuidado decorresse de sua carreira de teatrólogo que ele também foi, e dos grandes. Mas ele faz aquilo de maneira gentil, captando com antenas sensibilíssimas tudo que acontece ao redor: cada levantar de sobrancelha, cada rubor disfarçado, cada olhar de soslaio, cada expressão corporal a expressar secretamente pensamentos e as reações íntimas que os engendram. Maugham descreve com argúcia ímpar cada, como direi, microrreação dos personagens (não sei se existe o termo, perdão).

E faz tudo isso com uma clareza fascinante, direta, não de maneira labiríntica. Pessoalmente, admiro esse tipo de fluência textual escorreita, o qual, sem abrir mão da elegância, não abusa das frases intercaladas. Não sou exatamente inimigo da intercalação, note. Considero o recurso como um dressing gastronômico, um toque, uma pimentinha no bobó de camarão. Um efeito sonoro no espetáculo da clareza.

Além disso, em sua maneira de narrar, Maugham é um cavalheiro, trata com educação seus personagens, não como se fossem estúpidos (a menos que sejam mesmo). E sua voz autoral não faz questão de se exibir, esconde seu conhecimento. Faz isso por modéstia, acho, por temer o cabotinismo e a afetação. Maugham não se pavoneia, talvez por timidez ou delicadeza. Troca o julgamento pelo espanto e admira as personalidades que retrata. Escreve como quem pinta um retrato, com pinceladas suaves e precisas, estudando cada tonalidade, cada nuance. Gosto disso. Quero ser assim.

De maneira que não abandonei Flaubert, por favor. Ainda somos bons amigos e eu não ousaria desmerecê-lo nem um pouquinho (mas vê se pode!). Confesso, porém, que não o visito há um certo tempo e, para ser sincero, temo que tal distância não nos esfrie a amizade, resultando em mera simpatia distante. Admito o risco. Isso não significa também que doutor Maugham possa se gabar de algum monopólio afetivo-literário por aqui. Não obstante, como ainda há muito em sua obra por descobrir, diria que por enquanto até pode, um pouquinho; tanto mais porque nutro por ela interesse e curiosidade, ingredientes essenciais de um relacionamento literário duradouro.

E de qualquer relacionamento, aliás.



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(Selo criado por Beth Spencer)

Como encontrei
Júlio Verne

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês

Tempo de leitura: 4 minutos

Levei exatas quatro décadas para ler Júlio Verne, no seu A Volta ao Mundo em 80 Dias. Leve, divertido e de ótima prosa, o livro transportou-me aos tempos de Sessão da Tarde, na infância, quando passavam na tevê aqueles filmes de aventura divertidíssimos como os de Indiana Jones e Allan Quatermain.

Não falarei do livro, que aliás recomendo. Falarei de seu autor, sr. Júlio Verne, o próprio.

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês. Um dia, passando pelo pátio exterior do metrô Barra Funda, em São Paulo, vejo uma banquinha com diversos livros de encalhe a preços simbólicos. (Notinha: adoro essas feirinhas. Fuço, reviro tudo, garimpo mesmo. Foi numa delas que encontrei verdadeiras preciosidades: Stendhal, Henry Miller, Joseph Conrad, Oscar Wilde, Stevenson; do Brasil, Marques Rebelo, Lucio Cardoso, entre outros.)

Bem, a banquinha ficou lá por certo período e toda segunda-feira tinha novidade, conforme averiguei com um atendente. Pois um dia deparo-me com uma biografia de Júlio Verne, escrita por J. J. Benítez, escritor espanhol famoso por sua série de ficção científica Operação Cavalo de Troia. Achei inusitado um escritor best-seller interessar-se por outro escritor a ponto de dedicar-lhe uma biografia, sem ser biógrafo. Ele conta o motivo na introdução, aliás comprida e um tanto maluca, com uns lances de esoterismo, coisa e tal. Vale a pena. O fato é que me interessei, fiquei dois reais mais pobre (sim, dois reais) e levei o livro pra casa.

Folheio o livro no metrô como quem não quer nada e logo sou tragado. Jamais lera Benítez. Achei seu texto bem bom, envolvente, interessante. Parei o que vinha lendo para entrar naquela obra e conhecer a vida do sr. Verne pelos olhos do espanhol.

Mas não contarei tudo que li. Destacarei alguns pontos.

Ao contrário do bom humor e da sagacidade de Phileas Fogg, o protagonista de ‘…80 Dias’, Verne era um sujeito um tanto bisonho, triste. No início de uma carreira que custava a decolar, enfrentava os queixumes constantes da mulher que era pura cobrança (com alguma razão; mas ela exagerava). O fato é que a esposa só fazia reclamar, a ponto de cozinhar os neurônios do pobre Verne, infernizá-lo; além de impingir-lhe certa pecha de fracassado, “por que não arruma um trabalho decente?”, coisas assim. (Notinha, de novo: incrível como a realidade de Verne neste particular coincide com a do personagem Campos Lara, de O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa. O brasileiro soubera, de alguma forma? Impossível este ter lido a biografia de Verne, publicada quase cinquenta anos depois. Coincidência incrível que a ficção proporciona…)

A bater de porta em porta de editores, Verne finalmente encontra um sujeito disposto a dar-lhe uma chance. Publica, e o livro vende feito pipoca em porta de circo. Então, sua sorte muda não por enriquecer, pelo contrário; recebia pouquíssimo pelos direitos do que produzia (familiar, não?). Mas o tal editor ouvia o tilintar constante da caixa registradora na cabeça e passa a encomendar livros e mais livros ao escritor. Chegava quase a espremê-lo para ver se pulavam uns originaizinhos de seu paletó. Verne entregava um novo volume a cada três meses em média e entrava agora num modo frenético de produção literária, quase em escala industrial. De onde tirava tanta imaginação?

Bem, quanto à sra. Verne, essa gostou: viu que o marido finalmente pagava as contas com aquele ofício esquisito que abraçara. Se fazia a comida chegar à mesa, tudo bem.

Para fazer o dia render e ter absoluto silêncio durante o trabalho, Verne começava a escrever às quatro da manhã. Fazia-o inclusive para evitar o choro ensurdecedor do filho recém-nascido, que lhe quebrava toda a concentração. Nessa toada, o francês escreveu mais de uma centena de obras. Estima-se que ele tenha escrito até mais.

Quando a carreira amadurece, seu nome finalmente conhece a fama, e ele, a prosperidade. Não acumula nada exuberante que se possa chamar de fortuna, mas torna-se um escritor bem-sucedido, estabelecido, embora não tanto quanto gostaria e merecia.

Enfim, haverá outros fatos importantes de sua vida pessoal na biografia que deixo para quem quiser procurar pelo livro, facilmente encontrável em sebos. Para mim, o que fica é a perseverança do escritor profissional, de alguém que acredita na vocação e devota-se a ela com afinco, como se não pudesse fazer outra coisa na vida (e até poderia: formado em Direito, vinha de uma família de advogados).

Que eu saiba, seus escritos não figuram nos cânones, não constam como fundamentais na literatura universal. Entretanto, sua vasta obra permanece pela força criativa, pela diversão que proporciona (e não é disso que se trata a ficção, afinal?) e para escritores sua vida serve de inspiração, sobretudo por seu empenho incansável e por sua entrega de corpo e alma ao ofício literário. Um baita exemplo.

Que privilégio o nosso, leitores de todas as idades e origens, poder ler Júlio Verne ainda hoje. Com efeito, o homem sacrificou-se por isso. Leiamos, pois.




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(Selo criado por Beth Spencer)

O outro
Crime e Castigo

Assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Mais sérias que o mero factual

Tempo de leitura: 3 minutos

A respeito de Dostoiévski e sua obra-prima Crime e Castigo, leitores ilustres e críticos em geral são unânimes em apontar um ingrediente que admiram na obra: a redenção de Raskólnikov, depois de desferir suas machadadas na pobre velha usurária e em sua azarada irmã.

Entretanto, Raskólnikov não me desperta qualquer simpatia, malgrado sua suposta redenção no final (ai, spoiler! já foi). O sujeito permanece cínico e indiferente ao crime cometido por toda a trama— exceto pela irritação causada pelo noivado da irmã, reação que no fundo sugere algo de fundo incestuoso a meu ver, e pelo cerco psicológico a que o submete o inspetor de polícia Rostinikov, quando o enquadra a fim de obter sua confissão. Raskólnikov não se arrepende do crime, contudo. Queria tão somente ser deixado em paz na sua loucura eremita, a despeito dos assassinatos praticados.

Como todo clássico, há que ler e reler Crime e Castigo. Contudo, acho estranho como ninguém — até onde eu saiba — destaque uma passagem singela do livro a qual tocou-me profundamente: quando a família do beberrão Marmeladov passa por apuros após a morte idiota deste, depois de cair de bêbado no chão e ser pisoteado por um cavalo. Desamparada, a família se vê obrigada a esmolar para descolar uns cobres e não morrer de fome.

A viúva de Marmeladov, coitada, imagina que conseguirá uma audiência salvadora com o príncipe, já que teria ela um remoto título de nobreza ancestral. Talvez delirasse. Mas caso fosse verdade, teria tal título alguma validade, alguma relevância? Seu apelo urgente à distinção era fruto do desespero. O caso é que tal audiência jamais acontece; e a mulher, sem alternativa, bota o filho pequeno para dançar e fazer macaquices na rua, enquanto a filha mais velha, Sonia — mocinha que afinal será a responsável por redimir Raskólnikov — termina por prostituir-se para ajudar a família.

Uma tragédia familiar desnecessária, lamentável, estúpida. Como todas as tragédias familiares, quem sabe? Até oonde sei, o evento passa batido pela crítica, centrada no protagonista e na tal redenção. Um desperdício.

Pois aquela passagem me marcou pessoalmente. Imagino como algo do tipo poderia ocorrer a qualquer família. Fico a pensar na responsabilidade que pesa sobre mim: jamais brincar com a negligência, como fez Marmeladov, sob pena de minha própria família terminar feito a dele, humilhada nas ruas por gente mil vezes mais indigna que ele próprio.

Bem, de tantas camadas de significado possíveis, especialmente esta depreendi de Crime e Castigo na primeira leitura. Certamente a obra tem a revelar muito mais numa próxima visita, pois assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Não raro, mais sérias que o mero cotidiano factual.

Viva os 200 anos de Dostoiévski. Viva Crime e Castigo. Viva a grande ficção literária, que é coisa muito séria. No bom sentido.




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(Selo criado por Beth Spencer)

Gilson, um brasileiro

Tempo de leitura: 5 minutos

“Tá com inveja?”

Gilson morria de medo dessa frase. Imagine só, ter inveja. Pecado capital.

De modo que Gilson era generoso. Parabenizava todo mundo: pelo novo emprego, pelo novo cachorro, pela nova promoção. No fundo, acreditava, celebrar a conquista alheia talvez funcionasse como uma cosquinha na barriga da existência, um cafuné no destino: talvez o universo retribuísse a generosidade dele algum dia.

Gilson curtia o post, comentava; era fofo. Não perdia um aniversário nas notificações, parabenizava a viagem do conhecido — que mal lhe respondia de volta. “Feliz por você, brother”. Nada. Se mulher, Gilson comentava com tato e sensibilidade, para evitar grosseria e machismo. Refazia o elogio, editava o comentário uma porção de vezes.

E era incrível, mesmo: parecia que todos ao redor de Gilson se davam bem, tanto que ele chegou a pensar se o bem-querer ofertado ao mundo não causasse um efeito maior, não influísse nas energias invisíveis a beneficiar seu círculo social, se não movesse as engrenagens espirituais do progresso alheio. Quem sabe? Algum bem devia fazer. Mistérios existem.

Um dia, sem mais nem menos, Gilson é demitido. “Tudo bem” — diz à chefe, visivelmente embaraçada — “as coisas estão difíceis, mesmo. Essa pandemia não tá fácil pra ninguém.” Aperta-lhe a mão e agradece, como se fosse promovido, como se recebesse um troféu. Gratidão na perda: Gilson sentia-se especialmente enobrecido por cultivar tal sentimento. “O universo vê tudo; ele está vendo, agora”.

Quando passou pelo corredor, viu que já tinha alguém chegando à sua mesa, colocando coisas, um desconhecido. “Que loucura… eu, gerando emprego? A família dele vai receber uma ótima notícia hoje, posso até imaginar”.

As pessoas viviam pedindo favores a Gilson. Quando recebeu a indenização trabalhista, pagou o cartão de crédito da irmã cujo marido estava desempregado há ano e meio. Como tivesse um carro com caçamba e tempo de sobra, levava pra lá e pra cá bugigangas de todo tipo: máquinas de lavar, sofás, armários desmontados, entulho de reforma. Perdia fins de semana com aquilo e seu carro colecionava arranhões. Mas ele ajudava, sentia-se útil. Custava nada.

Quando foi sacar o FGTS, Gilson traçou um plano. Como soubesse da má vontade dos funcionários na agência do bairro onde morava, dirigiu-se a outra agência, num bairro nobre onde gente remediada frequentava. Geralmente, a equipe lá era mais treinada no atendimento ao público vip, o qual não tolerava grosserias.

Bem, ele foi. Tomou um belo chá de cadeira, pois a agência só tinha dois caixas funcionando e um deles era preferencial, de sorte que não parava de chegar idosos. Saía um, entravam dois; saíam dois, entravam três. “Tudo bem, eu espero. Tenho tempo”, pensava.

De repente, chega ao lado dele uma velhinha e o cutuca. A princípio, toma um susto: “fiz algo errado?” Mas não. A vovó só queria conversar. Solícito, ele ouviu, olhando em seus olhos. Gilson lera tempos atrás o best-seller “O Monge e o Executivo” e lembrou da grande lição do livro: saber ouvir. Ele internalizou o ensinamento, de modo que escutava atentamente tudo que a mulher lhe falava e aguardava por sua vez de responder, quando e se solicitado.

Quando começou a falar — com todo cuidado para não ser invasivo nos problemas familiares da senhorinha — a mulher aponta para o ouvido, sinalizando não escutar direito. “Não ouço muito bem”, disse baixinho, “abaixa só um pouco essa máscara”. Obviamente ele usava o acessório oficial da pandemia. Obedeceu. Só um instante não devia fazer mal. A velhinha também usava a máscara dela, um tanto afrouxada é verdade, a pender e a deixar o nariz para fora.

Enquanto Gilson falava olhando nos olhos da vovó — que ela desviava às vezes para o monitor, pra ver se sua senha não aparecia na tela — de repente ela tem um acesso de tosse, e na primeira tossida a máscara sai completamente de lugar. Gilson a ampara, coitada; depois, ele vê um garrafão d’água postado na coluna ali perto e lhe traz um copo. Ela agradece, secando as lágrimas com um lenço e se recuperando do acesso.

Depois de beber a água, o assunto não prossegue. Chamam a senha da velhinha na tela, que sai sem se despedir. Mas tudo bem, porque Gilson também já tinha sido chamado, enfim. Quando se aproxima do caixa, o funcionário sinaliza que sua máscara estava abaixada, ao queixo. Ele reposiciona e se desculpa. Finalmente, consegue resolver seu assunto no banco, sem dificuldades. O plano dera certo.

Dias depois, Gilson sente uma dor de cabeça intensa. Depois, coriza e tosse seca. “Igual a da senhorinha no banco!” — lembra dela logo na primeira tossida, idêntica. Naquela noite, não dormiu bem. Dores no corpo, mal-estar. O que fazer? O mesmo que em qualquer gripe comum: chá de limão com alho e mel, dipirona pra abaixar a febre, própolis para aliviar a garganta irritada. Enquanto isso, isolamento e rede social para distrair. Curtidas. Likes. Desejos de sorte e sucesso aos amigos. Ficar por dentro das novidades.

Aproveitou e postou que estava com covid-19. Subiu uma foto do teste. ficou esperando as reações: duas curtidas e um comentário “força, man”. Mas ficou nisso. A timeline se atulhara com a repentina morte de um ator famoso. Daí em diante, só se falava naquilo. “Caramba, ele era famoso mesmo. e eu nem conhecia…”

Calculou que por isso não deram muita atenção à sua covid-19. A princípio ele esperava alguma interação maior, já que vivia a pandemia na pele, tal. Se lhe perguntassem, diria que foi a vovó no banco, sem dúvida. Depois, recomendaria cuidados e precauções, relataria sua experiência. Mas ninguém lhe pediu qualquer detalhe.

Dali a duas noites, Gilson tem uma forte crise de falta de ar. Como sua esposa não soubesse dirigir, decidiram ir de Uber ao hospital. Antes, deixaram o filho de oito anos com a sogra, que viera de ônibus.

No pronto-socorro, Gilson foi logo conduzido à UTI e dali colhem os exames todos. Na sequência, é internado às pressas com síndrome respiratória. “Ele vai se recuperar” — diz o enfermeiro à esposa, meio sem olhá-la direito, como se falasse aquilo a todo mundo em modo automático. Gilson é transferido para a ala dos respiradores. Intubado, fica instalado ali até a recuperação.

Recuperação que não ocorria, porém. Gilson não sabia, mas era cardíaco. Sua diabetes também andava nas alturas e ele nunca detectara. Agora sua saturação estava baixíssima. O coração oscilava. A ala estava lotada, aquele estresse, movimentação intensa.

Após seis dias de muita dificuldade, Gilson não resiste e falece. “Complicações da covid-19”, diz a certidão de óbito. Naquela tardinha, ele torna-se o brasileiro vítima da covid número 431.997. Durante a convalescença, ninguém o visitara, ninguém perguntara por ele. Natural. Na pandemia as pessoas evitam mesmo os hospitais.

Dias depois do falecimento repentino, como não aparecesse mais nas redes sociais, Gilson perdeu alguns seguidores: dos 103 adicionados, contava agora 81. O número diminuía a cada dia. Por enquanto, ninguém dava ainda pela sua falta. Parecia que a qualquer momento pipocaria seu like rotineiro, seu elogio com emojis, sua figurinha de bom-dia.

Mas Gilson habitava outro plano, agora. Se visse aquilo com seu smartphone em mãos, diria algo como “tudo bem, é assim mesmo com as redes sociais, quem não interage acaba sumindo.” Sim, certamente. Daí, consolado por si mesmo uma vez mais, Gilson retornaria contente a seu cantinho no lar que o abrigara em definitivo: o seio do universo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O inútil
do escrever

Tempo de leitura: 4 minutos

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

– João Cabral de Melo Neto, O artista inconfessável

Se uns sábios, ilustres e entendidos em geral me colocassem no centro de uma roda e, com veemência e gravidade peculiares, me apontassem seus dedos respeitáveis, dizendo: “você não tem razão, garoto; você está errado!”, eu, malgrado o susto que a assertiva coletiva me causasse no momento, me conformaria no instante seguinte. Não sofreria mal algum. Zero trauma.

E isso não porque, no fundo, eu os desprezasse com moralidade superior e quisesse, do alto de minha irrelevância semianônima, colocar-me como um profeta não reconhecido (como sói acontecer a profetas), alguém cujo fracasso lhe subiu à cabeça. Não. O caso é que não apenas concordaria com eles — vai ver não tenho razão alguma, mesmo — como não faria absolutamente nenhuma questão de desmenti-los. Não lutaria para estar certo e não estenderia os punhos em riste para soar convincente, aos perdigotos. Debates e embates me dão preguiça, Deus me livre. Toma, olha: é sua, fica com a razão todinha pra você. Faria assim.

Assumo, sou mais um dos muitos levados pela onda da liberdade de expressão digital. Esta fez e faz do mundo ocidental um lugar tagarela como nunca antes e amplia o “alcance” dos zés-manés formidavelmente. Daí que, entre as tantas vozes que se estapeiam para sobressair-se de algum modo da multidão e — glória das glórias — ainda faturam uns cobres por isso (bem-aventurado quem paga o leite e a gasolina com o que recebe por sua escrita hoje em dia), pois bem, em meio a tudo isso este serviçal esboça apenas alguma brincadeira literária enquanto armazena um romance não revisado na gaveta e planeja outros três faz um tempinho, já. A esperança é a última que morre.

De minha parte, respeito quem venda suas lindas razões da mesma forma que respeito quem venda churros ou pneus. Tudo é necessário de algum modo. Não sou exatamente contra o capitalismo. Mas, parece, quem vive de vender teses não aprecia muito que vez ou outra surjam engraçadinhos como este aqui, que se atrevam a escrever coisinhas algo curiosas e, como um camelô que monta a barraquinha na calçada e atrapalha o movimento da loja em frente, desviem parte da freguesia dela sem querer querendo: então, se aparece um gaiato, lá vai cascudo: “você está errado; você atrapalha!” Desista e vá embora, parecem dizer. Se conseguem espantar o pentelho, respiram aliviados. Menos um.

Mas este teimoso aqui escreve. Não sei bem porquê. Preciso, apenas. Clarice Lispector disse uma vez que escrevia para expulsar de si as histórias que lhe ocorriam. Expulsar, Clarice: perfeita colocação. Também expulso as caraminholas que me flutuam na cuca enquanto observo a vida passar. Há algo de terapêutico nisso de escrever. Ajuda a aliviar a carga. Pensamentos insistentes brotam, pesam; frases se formam e pedem a rua como o vira-lata deseja passear um pouco ao ver outros vira-latas com plena liberdade indo e vindo lá fora. Late, grunhe, se atira contra o portão — por também querer aquilo. Escrevo mais ou menos por isso: praticar a liberdade.

De modo que não preciso ser levado a sério, ó sábios e entendidos: descansai, pois. Porém, notem: até poderei. Não preciso ter razão, ó notáveis, mas vede: ocasionalmente a terei. E poderei também estar errado e dizer bobagens imensas as quais, uma vez reveladas, serão assumidas como tal. Passarei as vergonhas todas. Assumo: ao compartilhar nesta plataforma gratuita algumas linhas, quero obviamente ser lido por alguém além de mim mesmo. Não sou imune a vaidades, saibam — como tampouco os senhores o são, diz o pregador.

Por isso, nas pouquíssimas vezes em que sou confrontado pelo que escrevo, depois da surpresa e algum choque, acho graça. Porque falo do quê? Do que sinto, penso, observo, formulo. Escritores são assim, não? Expressam impressões autênticas (Benedetto Croce) e não há mesmo impressões erradas enquanto tal. No máximo, equivocadas. Ademais, não falo por apuds — “isto é aquilo conforme o teórico X cuja obra completa estudei, etc”. Respeito, mas de novo: não provo teses nem as elaboro a sério, não vendo certezas, não exponho fundamentos suculentos no varejão das ideias. Se querem saber, no fundo me acho um escritor vagabundo (não vagabundo escritor): desvinculado das rodas importantes, jamais cogitado para um chopp no bar dos bacanas do intelecto (porém, se um dia chamarem, aceito o convite.)

De modo que sou feliz assim, acho eu. Sigo levando — e o que vier é lucro. Eu disse lucro? Aí está, pode até ser… quem sabe um dia? Como disse, não sou exatamente contra o capitalismo. Ora essa. E algum camelô seria?




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(Selo criado por Beth Spencer)

Gorjeios literários

Tempo de leitura: 2 minutos

Antonio Abujamra costumava perguntar ao entrevistado, em seu extinto Provocações, ao saber que este lia com frequência: “qual é o autor que você já encontrou? E qual ainda não encontrou?”

O entrevistado nunca saía-se bem nessa questão. Natural. Quando lemos literatura com alguma frequência, nossos autores preferidos vão se afunilando, diminuindo, diminuindo… não raro, desgostamos de muitos clássicos que, sim, são obrigatórios, e nos afeiçoamos a outros nem tão clássicos assim, por vezes longe disso. Pessoalmente, dá-me uma pontinha de vaidade saber de autores muito bons e quase desconhecidos da maioria. Bobagem? Talvez. Como toda vaidade, ora essa.

Parece-me que leitores maduros prefiram a delicadeza à veemência. Bem, não generalizo; falo por mim. Busco na arte literária o captar do sutil no banal, do verdadeiro no corriqueiro. Me espanta a frase precisa sem a intencionalidade forçada de sê-lo e identifico o lirismo poético na prosa mais despretensiosa. Beletrismos, porém, logo saltam aos olhos e denunciam-se, enjoam, cansam. Na vida e na arte, veemências dão bocejos.

Depois de alguma vivência na leitura, fica fácil detectar truques e afetações. Ouvimos a música das frases. Gostamos da verdade, mas esta bem apresentada e não com a violência de carros colidindo em postes. A realidade é ao mesmo tempo trágica e bela — bela mesmo na tragédia, às vezes, inclusive.

No início da jornada ao mundo da literatura, bebemos dos grandes dramas da humanidade e desprezamos os sorrisos singelos. A imaturidade sempre busca a gravidade. Por isso, entendo quando velhos pensam mais progressivamente, modernamente, que moços em formação. Vai ver, aqueles aprenderam que nem tudo possui motivações muito racionais nem explicações tão fundamentadas e sedimentares. A lógica formal, quando muita, enlouquece. Acontecer faz parte do ser.

Viver é um fluir contínuo e incontrolável, imprevisível. A ordem racional, pura invenção. Feito o pássaro a gorjear de manhã: surge sem licença e faz o que lhe é natural. Canta, voa, vem e vai.

Assim é a vida, o real. Assim, a boa literatura.

No mais, diz o pregador, tudo é vaidade e correr atrás do vento.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

desequívoco

não tenho lado, apenas percebo
não porto bandeiras, trabalho a intuição:
não vão atar-me a interesses sujos inconfessos
nem a perversas sensatezes cínicas
de mil e uma seriedades calhordas.

desistam de mim, senhores. desistam.
se me puxarem, não irei
se me desprezarem, os desprezei antes:
assim, empatamos;
mas eu triunfei.

o que quero? bem benigno e vero, em tudo e a todos
não só a conveniência vil e cega dos demônios.

eu vi: quis-se dinheiro de início, e isso foi tudo
hoje querem mais: prestígio, pétrea razão,
lavar cérebros suscetíveis.
ah, não o meu; o meu não terão.

se tenho agora lado? errado: apenas percebo
e se me puxam, não vou. desistam.

o que farei? cá estarei, só, se necessário for,
sem levar-me pelas ventanias da tolice (não tidas como tal):
eis meu singelo e atual heroísmo.

bem benigno quero: a mim, ao outro, em tudo.
de uma coisa sei: rejeito ao bem que no fundo é mal, porém.

A Eterna Fluidez

Tempo de leitura: 3 minutos

Diário Inconstante, 19.10.2020

Há tempos não vinha à Barra Funda, por motivos vários. O que tem de especial na Barra Funda? Nada em particular. Para mim, porém, aquelas ruas guardam memórias de quando trabalhava aqui, por anos, em duas fases importantes da minha vida. Mas a pandemia me afastou desse enclave que hoje serve apenas como passagem apressada entre um ponto A e um ponto B da cidade, para a maior parte dos paulistanos.

Penso que o bairro guarda um misto de aristocracia perdida no tempo, substituída por uma decadência pacata. A Barra Funda é um bairro com variados cheiros, não necessariamente agradáveis, embora marcantes. Agora, o vazio de gente forçado pelo novo coronavírus dá certo ar de terra de ninguém ao lugar. Tudo parece um enorme canteiro de obras abandonado, cercado de tapumes sujos e pichados. Vê-se um operário ali, outro ambulante acolá. Nem as figuras sofridas e miseráveis de costume vêem-se mais por aqui.

No caminho, no vagão de um vazio metrô, noto a simples presença de uma única moça em meio a marmanjos aleatórios a disparar olhares, despindo-a sob mil pensamentos frívolos. “O melhor a fazer é não tentar adivinhá-los”, diria a ela, se pudesse. Empunho um Coração das Trevas de Conrad e sinto o constrangimento da moça como se fosse comigo. O incômodo dela era notório e justificado. Com efeito, é difícil ser mulher, nas mínimas coisas. Quanto à moça do vagão, devo dizer, reunia mesmo atributos dos quais a audiência circundante, conquanto os admirasse, certamente não era mui digna deles.

Bem, chega a estação e a moça desembarca; marmanjos, idem. E eu mal sabia que o melhor a fazer era me abster de atirar a primeira pedra e não lançar-me a julgamentos apressados.

Vou ao Banco do Brasil na Marquês de São Vicente, eis o meu destino no bairro. Preciso retirar um novo cartão que se encontra na agência. Antes, no trajeto, uma mulher entrega-me um santinho. É época de eleição para prefeito. Algo curioso ocorre comigo: os detalhes são despiciendos, mas a visão daquela mulher, depois de tempos de quarentena, desperta-me certa excitação bem conhecida, porém ausente há tempos em espaços abertos. Estranho. Chego a uma conclusão: a de que ser casado implica em possuir a própria mulher como se ela fosse todas as outras. Todas as fêmeas desejáveis do mundo, numa só. Daí que — estranha dialética — para atrair-se pela sua, é preciso antes atrair-se por outras mulheres. Depois, vingar-se à noite das visões e sensações acumuladas do dia; expulsar e expurgar — e tombar, redimido.

Pobres mulheres, a agraciar-nos e perturbar-nos com seu Eterno Feminino! E miseráveis de nós, homens, por não saber lidar com isso. Culpa de quem? Não sei. Culpemos a natureza: há desvios de ordens biológica e instintiva que ideologia alguma, por mais bem-intencionada que seja, consegue dirimir. Freud explica; Darwin também. Apenas a religião que não: somente condena e cerceia, cerceia e condena, usando o medo da danação para conter a fúria do pecado.

A religião ensina que o homem é uma tríade: corpo, alma e espírito. Grande coisa. A mulher é bem mais que isso. Multidimensional, plasmática, polivalente, inefável. Ela não necessita racionalizações, intelecções de sábio nenhum. A mulher é substância que a explicação não alcança. O mesmo Freud morreu sem decifrá-las. São puro mistério, elas: mandam sujeitando-se, dominam adaptando-se, renovam-se ao sangrar. A mulher é um ser inteiramente esotérico.

Mas divago. E o banco?

Sim, o banco. Na agência, em obras e absolutamente vazia para uma segunda-feira, sou atendido com dedicação por Alberto. Conversa comigo, sem pressa. Lá pelas tantas, oferece-me uns “produtos bancários”, visivelmente embaraçado. Funcionário público com metas a bater, que coisa estranha. Não combina. Ele não sabe que eu sei bem o que ocorre. Talvez a constante ameaça de privatização Guedes-Bolsonariana paire no ar e o gerente já tenha alertado ao pessoal que Brasília ameaça a estabilidade empregatícia, aquela mesma que o senhor grisalho de meia-idade tanto batalhou para conquistar após diversos concursos. A ausência total de clientes por causa da pandemia deu ao servidor uma rara oportunidade de servir bem ao público. Então, fui bem atendido. Até os vigias me foram gentis.

Burocracia resolvida, volto para casa-escritório — outra modalidade que a pandemia 2020 impõe. Na estação, passa outra mulher. E de novo, o exame anatômico involuntário do macho (desculpem, desculpem): geometria, montanha-russa, sinuosidades; reentrâncias movimentam-se; virabrequim hipnótico. Ocorre-me a palavra: languidez. Excitação novamente. E de novo, a conclusão obtida na visão da mulher anterior: que ser casado implica em… e coisa e tal.

Pois eis a mulher, senhores: cíclica, simbólica, permanente e mágica. Eterno Feminino que as palavras não alcançam, filosofias não definem, psicologias não analisam. A mulher é esfinge, tenha ou não segredos, ó Oscar Wilde; pouco importa. A mulher, ela simplesmente vive e flui, flui e flui. Eis todo o segredo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Superstição

Tempo de leitura: 3 minutos

Tenho uma superstição. Quem não as têm? Eis a minha: se acho dinheiro no chão, não guardo comigo nem levo para casa. Procuro algum necessitado na rua e entrego o fruto de minha sorte inesperada. Exibicionismo de virtude a uma hora dessas? — dirá você. Nem tanto. Posso explicar.

Certa vez, achei dez reais. Sabe, aquela cédula do Cabral comemorativa dos 500 anos do Brasil, lançada em 2000? Como esquecê-la? A cédula foi produzida em papel celofane e seu material se desintegrava mais rápido que seu valor sob a inflação do período.

Enfim, achei aquela bendita cédula na calçada e, óbvio, guardei-a para gastá-la em hora oportuna. E assim sucedeu: rapidamente repassei a dita-cuja, sabe-se lá no quê; nem lembro. Só lembro de algo ocorrido no dia seguinte: tomei o metrô com uma elegante bermuda cargo, sob um calor dos diabos. Por sorte, a composição tinha ar condicionado. Bem, fui aonde tinha de ir, fiz o que tinha de fazer e voltei para casa. Foi num final de semana.

Chego em casa e desocupo os bolsos. Remexo e… espera, cadê o celular? Revolvo novamente. Nada. Fico naquele imediato instante de perplexidade bocó quando se perde algo: “não é possível, não é possível…”. Sim, foi possível. Perdi meu celular! Um exemplar de que gostava muito. Digo-lhes qual era: um Gradiente com flip abre-e-fecha. (Nota: sabei, jovens, que no Brasil os celulares Nokia eram fabricados pela nacionalíssima Gradiente. Sabei antes que houve certa fabricante brasileira de eletroeletrônicos chamada Gradiente, por sinal uma ótima marca; se não de celulares, ao menos consagrada na manufatura de excelentes aparelhos de som).

Enfim, voltando. Perdi meu celularzinho! Ele tinha um despertador ótimo com som de galo e uma luz led multicolorida que emitia raios fortíssimos no ambiente, na hora de despertar. E tinha o jogo da cobrinha que eu adorava. Mas perdi! Perdi meu celular! Como aquilo foi acontecer? Como fui me descuidar? Onde deixei-o cair, escorregar do bolso? Até hoje me pergunto.

Uma tragédia.

Situação 2. Encontro 5 pilas por aí e – por que não? – guardo, oras. Não faço idéia do destino dado àquela nossa nota gay (segundo Os Simpsons). Só sei que naquele mesmo dia, dou pela falta do meu Bilhete Único: o cartão magnético do transporte coletivo em São Paulo. Ó amigos, sabei: perder tal cartão implica em mergulhar a alma nos sete infernos da burocracia estatal, nas trevas abismais do Leviatã municipal; são jornadas insólitas, a demandar o bloqueio dos créditos, a solicitação do novo plástico, a comunicação ao RH da empresa, aguardar as baixas todas no sistema… e talvez nada disso dê certo e o processo se repita umas três vezes. Uma via crucis mundana, enfim: tudo que eu não podia ter feito era perder aquele bendito Bilhete Único. Mas aconteceu.

Ambas as situações ocorreram num curto espaço de tempo. A conclusão era óbvia: maldito dinheiro gratuito! Maldito “achado não é roubado”! Decido: se encontrasse mais algum dinheiro dali pra frente, entregaria ao primeiro famélico, ao primeiro pedinte que topasse na minha frente. Não ficaria com aquele butim, jamais! Nunca! Sai de mim, zica!

Tempos depois — em 2015, mais especificamente — , acho a importância de R$ 2 na Avenida Pacaembu, na Barra Funda. Já sabia a resolução a tomar. Subo a rua Mário de Andrade com a notinha em mãos e topo com um senhor morador de rua, descansando sob a sombra de seu carrinho de sucata. Perturbo o cochilo e entrego-lhe a nota. Renderia dois almoços no restaurante Bom Prato, calculei; fiquei feliz com minha boa ação. Puxa vida. E o melhor: não perdi nenhum pertence meu depois. Bingo! Era isso, claro!

De lá pra cá, nunca mais achei dinheiro algum pela rua. E olha que cultivo o hábito de caminhar, adoro fazer isso, faço com frequência. Bem, vai ver, há muito menos cédulas em circulação hoje em dia. A pergunta que mais o brasileiro ouve pelas freguesias país afora é: “crédito ou débito?” Nem precisa mais ensinar as crianças como conferir o troco, feito antigamente. Sinal dos tempos. Por outro lado, já perdi alguns pertences importantes desde então. Até para ladrão. Ah, quer saber? Pouco importa. Se achar algum trocado, entrego a quem precisa. Eu, dar sopa pro azar? Sai pra lá, zica!




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Alma de explorador

Tempo de leitura: 2 minutos

Sou um grande explorador. Grande não, minto: um pequeno explorador. Do tipo que vai e vê, capta a substância e volta. Mas vou, pois necessito. Preservo a lucidez, contudo. E Deus como porto seguro.

Como se diz, “confiar desconfiando”. Discreto, entro e capto os sons, atento-me aos movimentos: de modo que não sou um homem do subsolo mas outro, que pára ao meio da escada que leva ao porão e dali estuda o ambiente. Se a escuridão é muita lá embaixo e o cheiro de mofo arde-me as narinas, volto, antes que me fechem a porta e não haja retorno possível.

(Dostoiévski chamaria a isso covardia? Não sei. Eu chamo de prudência.)

O caso é que me atrai o diferente que a manada rejeita, por isso mesmo: manadas adoram consensos e o consenso me aborrece. Quando todos repetem mantras em coro, tatuam as mentes, volto-me e parto em busca do Verdadeiro dentro da suposta mentira rejeitada; por vezes, encontro ali outra verdade, sutil e profunda, ocultada qual um tesouro sob montanhas de mistificações, sofismas e preconceitos burros (passe a redundância).

Não raro, a mentira é só uma verdade mal explicada e a verdade, uma mentira bem contada.

Pois lá vou eu rumo ao diferente. Todavia, não me entrego às cegas nem me lanço de corpo e alma. Não: quieto, apenas aproximo-me, paro e observo à média distância. Deixo que ele se mostre e fale enquanto calo, durante o tempo necessário.

Assim minha alma aprende o bem e o mal, se vale ou não vale a pena. De todo modo ela aprende, ela evolui. Sem escapar de mim, porém.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)