Do tempo

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Talvez não devamos aproveitar, mas saber perder tempo com tudo de bom e útil. O tempo é nosso ativo particular, avaliado em bilhões.

Tempo, atenção e dedicação são o novo petróleo do mundo: sondado, explorado e capitalizado.

Embora intangível, a atenção tem alto preço e a gente nem se dá conta.

Se o tempo se esgota, esgota-se a vida. E quem ganha com isso?

Que sejamos nós: tenhamos tempo para nós mesmos.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Amar demais

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Durante algum tempo, tive um carrinho de que gostava muito. Sei lá, me apeguei. Foi meu primeiro carro e fiquei mais de década com ele. Tinha motivos para me afeiçoar: foi com ele que levei meu filhinho recém-nascido, asmático à época, a passar noites em hospitais; foi com ele — o carrinho, digo — que peguei a estrada com minha recente e linda familinha, em muitos feriadões prolongados.

Achava que ninguém cuidaria melhor daquele carro do que eu. A primeira dona, ao contrário do que o povo diz (carro de mulher, etc.), foi relapsa e negligente com ele. Descobri depois, após muitos check-ups no mecânico. Pouco nele restava de original. Até a lataria havia sido vítima de várias colisões: com um simples ímã o mecânico desfez minhas ilusões. Em várias partes não grudava. Pura massa.

Desanimei por causa disso? Não. Pelo contrário: assumi o papel de nobre cavaleiro e dispus-me a resgatar minha amada. Verdade, não tinha muitos cobres para despender na empreitada, mas não importava. O amor vence as barreiras. E fui, intrépido e corajoso.

Como num romance farofa, quanto mais atenção eu despendia ao carrinho, mais problema ele dava. Era um tal de “queimou a bomba d’água” aqui; “quebrou o cubo de roda”, acolá. Então, quebrei meu porquinho e dei uma primeira geral no bichinho: cabeçote, suspensão completa, pneus zerados. Foi como se ouvisse o carrinho me agradecer. Fiz questão de pegar a estrada, a Rodovia dos Bandeirantes de preferência, um tapete, para ouvir os pneus deslizarem no asfalto liso. Quando o carrinho esticava, realmente era um prazer dirigir.

Sem me dar conta, o que foi um namoro inocente virou triângulo amoroso: o carrinho começa a dar tanto problema mês sim mês não, que ele passava boa parte do tempo encostado no mecânico — o qual, veja só, virou meu amigo. E meu sócio: se eu amava aquele carrinho, ele ainda mais; porém, só ele era remunerado por isso.

Enfim, tive muita experiência boa com aquele carrinho e muita experiência ruim, também. Só que chegou um certo momento que ele cansou de mim. Enjoou de uma vez e pronto. Começou a dar defeito de propósito, parece, como se me atirasse na cara “você não entende que eu não te quero mais?” Mas eu não aceitava. Não queria ouvir.

Desesperado, recorri de novo ao amante, digo, ao mecânico: expliquei que ele fora reprovado duas vezes na inspeção ambiental (lembram, paulistanos?). Uma injustiça, pois o carrinho era bom, não fazia mal a ninguém! O mecânico então olhou, testou e pisou fundo, fazendo o coitado até engasgar e liberar um fumacê dos diabos na oficina. Desenganou-me:

“Precisa fazer o motor. Agora, só retífica resolve.”

Meu coração apertou. Meu bolso, nem se fala. Menos mal que era final de ano e eu receberia o décimo-terceiro salário dali a alguns dias. Faria o esforço, fazer o quê? Poder mesmo a gente nunca pode, mas dá-se um jeito. Topei fazer a retífica do motor e deixei os rins na oficina mecânica: metade à vista mais um cheque pré-datado.

A essa altura, eu já me sentia mesmo um bobo com aquele carro, mas não assumia. Meu pai dizia “troca isso aí, meu filho!”; conhecidos perguntavam “casou com o carro? vai vender não?”, etc. Todo mundo sabia que eu era traído, menos eu. Um clássico.

Quietinho, meio envergonhado em assumir que afinal minha história com o dito-cujo tinha chegado ao fim, resolvi analisar as coisas. Talvez tivesse mesmo que me desfazer dele. Pra você ver, eu tinha uma pasta onde guardava cada notinha de troca de óleo, cada lavagem de radiador… entretanto, tomei a decisão. Ainda meio tíbio, confesso.

Por acaso, nessa época eu arranjara um emprego melhorzinho. Com a indenização do anterior pude dar entrada num novo carro (seminovo, na verdade). Agora, já não era mais um carrinho, mas um carro. Talvez um carrão pra alguns (ao menos na época). Enfim, troquei. E quanto ao outro? Ainda estava comigo, o patife. Sim! Quis só dar um sustinho nele e deixá-lo lá para sair no fim de semana. O carro maior ficaria para a família.

E você acha que o infeliz tomou jeito? Que nada. A mecânica estava zerada, motor novinho; mas agora ele resolve bagunçar com a parte elétrica. Deixou a alcova do mecânico e deu de se engraçar com o eletricista de autos. Eu, bobo, cedi. Só que agora não era mais o bobo de sempre, registre-se. Já conhecia outra realidade automotiva no novo carro, mais robusto, mais motorizado. Ao dirigi-lo, sentia sua construção mais firme, mais durável. Foi então que decidi: tchau, carrinho ingrato.

E aconteceu. Vendi o malandro para uma parente, por um preço simbólico. Ela ficou feliz da vida, pois sabia do meu zelo para com o carrinho. O preço módico, calculei eu, seria mais para compensar todo o gasto que ela teria com aquele sem-vergonha dali pra frente. Se reclamasse, eu logo diria: “desculpe, mas saiu quase de graça pra você”. Bingo! Quando entreguei a chave a ela, fiquei com medo que o pilantra quebrasse na próxima esquina e voltasse a me atormentar. Felizmente, não aconteceu.

E na verdade nunca aconteceu. Até hoje o carrinho está lá com ela e nunca deu um probleminha sequer, apenas manutenção periódica normal. O negócio era comigo, então! Filho duma égua!

Isso já faz anos. Sublimei a experiência, mas olhando em retrospecto, concluo, não sem alguma dor no coração: meu crime foi amar demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Natal?

Fui assaltado no Natal. Na antevéspera de Natal.
De modo que, minha resposta chata à pergunta chata da tia chata,
“Sabes o sentido do Natal?”
Pelo menos o desse ano posso dizer:
“Sei. Assalto.”

Não, não gosto de Natal, desse período. Jamais gostei.
Natal é coisa pra americano brincar de neve na tevê.
Aqui, nem neve a gente tem:
faz um calor dos diabos no hemisfério.

Natal é uma coisa que o Brasil aprende na tevê,
pra comprar e gastar com Coca-Cola.
Isso: Natal é invenção da Coca-Cola.

Natal é dar e ganhar presente errado;
ter gratidão por ganhar aquilo que detesta,
de quem te presenteia como quem zomba de ti.

Todos comem no Natal: bebem, incham, vomitam no Natal.
Peru com Aji-no-moto, glutamato monossódico que mata.
Frango peitudo-gigante, puro hormônio-antibiótico vendido bem caro.
(Depois a sobra vira salsicha baratinha.)

Mas fui assaltado no Natal.
Cadê o espírito do Natal?
Esse é o espírito do Natal.

Tu, que tens a fé popular da vovó boazinha
Tu, que pensa em renas no país das antas
Tens-me agora por blasfemo, bem sei.
Seu tolo. Seu tolinho:
Pois nem Jesus, nem o menino Jesus do presépio jamais gostou do Natal.
“Nada tenho com isso”, diria São Nicolau.

Sabes quem gosta do Natal?
O ladrão que me assaltou.
Ele, como tu, comeu peru com glutamato,
ganhou presente detestável,
viu rena e neve na tevê,
bebeu Coca-Cola com o fruto do roubo
e me acharia blasfemo (ladrão odeia blasfêmia)
se lesse — se entendesse — o que escrevo aqui.

Sim, o ladrão pensa igual a ti e a todo mundo.
O ladrão só queria um Natal bom:
Por isso mesmo assaltou.

O totalitarismo digital

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O universo digital ainda acabará com a cultura humana. Em poucos anos não haverá mais registro histórico, memória. Não saberemos a estética de uma certa época, quais sabores tinham, que cores gostavam. Diários, hoje, são as redes sociais. Filmes? Dados, códigos binários. Música? Apps, streamings. Leitura? E-books (mas estes nem tanto, o papel ainda resiste; resta uma esperança). Mas é alarmante: em tudo hoje impera o todo-poderoso algoritmo. O que será das coisas, daquilo que se pode pegar com as mãos, coisas que abrem e fecham, que tocamos e guardamos conosco? O que será dos cinco sentidos corporais com esse totalitarismo digital?

Minha geração, a terceira de trás para frente (nasci em 1979), passou por várias transições tecnológicas. Pulamos do puro material físico e analógico para a convergência digital e vimos suas derivações ao longo do tempo, em como estes dois — o físico e o digital — foram se imiscuindo aos poucos, desde o advento da computação e da internet. Como não lembrar do disco de vinil, sucedido pelo CD, depois pelo mp3, agora o streaming…

No início da internet, eu acreditava que o meio digital fosse um complemento, uma extensão do produto físico, mas que este jamais tornaria-se superado — e aliás não foi superado. As companhias globais da internet estão nos apartando do físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos, cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso. Confesso: sinto uma certo vacuidade hoje em dia, talvez uma orfandade na alma, não sei; um desalento interior quando noto que tudo converge a galope para as malditas “nuvens”, para clouds da vida, que ninguém sabe onde fica, embora nelas confiem cegamente, sem questionar. São pura abstração, ilusão; até mesmo as nuvens reais, aquelas do céu, ao menos pode-se ainda vê-las e apontar para elas. As nuvens digitais, porém, nem isso se pode fazer.

E antes tínhamos coisas de verdade, que existiam nalgum lugar. Dizíamos meu disco, meu livro. Num dia, olhávamos para elas, guardávamos, depois pegávamos de volta tempos depois. Ou nos livrávamos delas. Mas, hoje? Gastamos dinheiro virtual com códigos binários, luzinhas numa tela enquanto códigos de programação rodam em segundo plano desde servidores nalgum ponto do planeta. Aposto: todo mundo saberia listar pelo menos três discos que ouviu na infância, talvez os dois CDs preferidos na adolescência. Agora, digam-me lá: qual filme você viu em streaming no início de 2016? De qual série mais gostou em 2015? Um milhão de dólares para quem acertar de cabeça, sem esforço de memória nem consulta ao Google.


As companhias globais da internet nos apartam do mundo físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso


Entendem meu ponto? Nossa memória cultural se esvai e se esvai. Sem contar o mais grave: fornecemos a robôs invisíveis nossas intimidades, nosso endereço, nossos hábitos pessoais. Eles sabem a que hora vamos dormir, quando acordamos, o que fazemos, o que deixamos de fazer. Acompanham nossos passos, por onde andamos durante o dia.

Falava algo disso com um conhecido no trabalho. Comentávamos a respeito da Netflix, por exemplo. O que é a Netflix, exatamente? À primeira vista, uma plataforma digital de exibição de vídeos: filmes, séries, documentários. Certo? Mais ou menos. Esta é a parte boa. A parte ruim e não contada é que a Netflix não passa de um ladrão voraz e ditatorial de tempo. Do meu e do seu tempo. A companhia Netflix trabalha, e muito, para comer (não encontro verbo mais apropriado), para devorar todo nosso tempo, nossa atenção. Nem o pior dos ditadores do passado jamais pensara em algo assim.

E pensar que nossos avós nos alertavam a respeito da televisão… agora, a tevê é meio dos mais inocentes: não possui algoritmos, mapas faciais, controles de acesso, “stats” plotadas num gráfico.

Tenho pensado muito nisso nos últimos dias. E aos poucos, decidi voltar-me cada vez mais ao bom e velho analógico, ao material físico. Discos, filmes, livros, revistas, jornal… de maneira que deixo essa proposta: voltemos às coisas palpáveis, tridimensionais, materiais. Coisas com cheiro, com cor e textura. Coisas feitas por e para seres humanos. Resistamos, docemente. Geraremos mais empregos, ajudaremos mais gente assim. A transformação da matéria em produto final requer toda uma cadeia produtiva, algo que quase não acontece no meio digital.

Parece bobagem? Talvez, mas pense melhor, com mais calma. As coisas físicas sempre nos serviram. Qual o problema com elas? Nós as usamos quando quisermos, sem assinatura mensal, sem conexão, sem wi-fi. Dispomos delas sempre. Quanto a essas companhias do mundo digital e seus produtos ilusórios numa tela de smartphone, a mercadoria é você, sua própria existência. Pelo menos, é isso o que elas pretendem fazer.

Vale a pena dedicar nossa vida e intimidade a esse totalitarismo digital? Não creio. Acho que ainda podemos dar meia-volta e repensar os caminhos que estamos trilhando. A escolha é toda nossa, por enquanto. Por enquanto: talvez amanhã seja tarde demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O drama da
alma inteligente

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O sonho de toda alma inteligente é encontrar outras almas inteligentes. Escrevo alma, e uso inteligente para adjetivá-la; poderia simplesmente dizer inteligente, o substantivo; mas a distinção é intencional e necessária.

Nem todo inteligente, convencionalmente falando, possui uma alma inteligente. Existem indivíduos notavelmente cultos que no entanto são precários em matéria de sensibilidade, de discernimento. Também não me refiro àquela tal inteligência emocional tão propalada nos anos 1990.

Como defino a alma inteligente: aquela aberta à percepção sutil, que pode sim se valer da cultura, não na epiderme ou protocolarmente, mas na substância, para assim enxergar o mundo que a rodeia como se tudo estivesse translúcido (embora não totalmente transparente, que seria a invisibilidade pura e simples). Almas inteligentes percebem o que há por debaixo das coisas, captam o mistério, observam um entre nas diferentes proposições, um between, sempre, mesmo nas questões mais antagônicas.

Tais almas podem incorrer em erros, claro, pois são humanas. Tem um fraco por conjecturar demais e viciar-se em si mesmas, nos próprios pensamentos. Correm o risco do solipsismo. Serão almas saudáveis somente se não confiarem demais nas formulações imediatas e se souberem guardar suas percepções pré-verbais para o futuro. Soa metafísico, mas nem tanto.

O caso é que almas inteligentes sentem algo a mais no ar, detectam causas e antecipam consequências; isto faz com que sejam previsíveis na rotina, embora muitas vezes surpreendentes nas opiniões. Frequentemente, mudam de parecer de modo inesperado, quando a massa ainda mal assimilou um novo senso comum. Costumam entrar primeiro e sair antes de todos, ou nem mesmo entram: enxergam quando o bem lentamente torna-se mal, lêem os sinais ainda em germe. Não agem como ovelhas ingênuas rumo ao matadouro, mas observam com serena perspicácia o movimento da realidade, e se resguardam.

Almas inteligentes não são compreendidas pelo vulgo. Almas inteligentes buscam seus pares, seus iguais, mas raramente os encontram porque elas não se dão às amizades. Desconfiam demais, reservam-se demais. A presença constante dos outros as entedia ou as atemoriza de alguma maneira, como se o contato com a parte alheia lhes retirasse algo de sua seiva, e assim abandonam ou desprezam, sem motivo, aquilo que justamente as poderia fortalecer: as amizades. Talvez esteja aqui sua maior contradição.

Almas inteligentes não são compreendidas pelo vulgo. Almas inteligentes buscam seus pares, seus iguais, mas raramente os encontram porque elas não se dão às amizades.

Enquanto isso, lá fora grassa uma velha maioria: as alminhas medíocres, a massa, sempre a satisfazer-se cada vez mais e com mais motivos para fazê-lo; saboreiam o mundo como uma deliciosa sobremesa. Nunca não lhes falta motivo para permanecer exatamente no estado em que estão, tampouco lhes falta companhia, para o bem ou para o mal. Medíocres são maioria, e o são por um único motivo: é facílimo ser medíocre.

Almas inteligentes, por outro lado, não importa o tamanho de suas angústias ou o peso de suas dificuldades, recusam terminantemente a mediocridade. São auto-disciplinadas e carregam algo da Eternidade em si. Elas possuem asas invisíveis que, por alguma razão misteriosa, não lhes permitem levantar vôo. Não nesta vida, ao menos.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A metamorfoice,
o blog, a vida…

ANTES do último suspiro deste esquisitíssimo 2018 brasileiro, uma palavrinha aos meus dois ou três leitores eventuais.

Primeiro, algo sobre A Metamorfoice. Desculpem a inconclusão do conto, aliás aguardadíssima (pfff…). Desistiram dele? Com razão, admito. Eu faria o mesmo. Eis o que ocorreu: o conto foi dividido em seis partes, sei como termina e não desisti do final previsto. Já escrevi a parte faltante faz tempo, mas não gostei do resultado, do desenrolar da coisa toda. Pretendo terminar o conto até o fim de janeiro próximo, palavra. Tchekhov estava certo, afinal de contas: deve-se escrever o conto em três dias ou nada feito. Burro, eu. Quem mandou não obedecer?

*   *   *

ESTE BLOG como um todo carece de revisão. De certos textos gosto um bocado, mas a maioria necessita atenção no estilo e na sintaxe. Sobram vírgulas, faltam vírgulas. Na maioria, abundam vírgulas ridiculamente fora do lugar ou mesmo descartáveis. Perdoem o aparente descuido. Confesso minha incompetência na revisão. Sofro mais como gramático que como escritor, embora não use isso como desculpa. Escrever sem manejar razoavelmente o idioma insulta ao bom leitor (mostrem ao Paulo Coelho essa assertiva) e a mim, também.

Seja como for, não desisti completamente deste Desmodernismo aqui. Pretendo revolver de novo a lama no fundo deste lago pouco frequentado, sempre que possível. Falta tempo, falta vontade, mas falta sobretudo motivação. Feedback ajudaria bastante. Acredite, conhecer opiniões sobre o trabalho é importante (não o puxassaquismo: prefiro o enxovalho sincero a sabujice, sempre falsa). Sinto-me motivado quando presto um serviço a alguém, de alguma forma. Seria o caso, aqui? Não sei. E esse silêncio atrapalha e desanima.

Outro erro no blog, este bem visível: caí na besteira ilusória de aceitar propagandas do Google. Sei lá que me deu. Vai ver os milhões do Gregor Soros de meu conto me influenciaram. Mas logo desisti, cancelei os anúncios, mas o Google não os tira de jeito nenhum. Incomodou-me essa poluição visual toda, além de não ganhar nem um vintém com esta gananciazinha de mierda, embora o proprietário desta plataforma, o ubíquo sr. Google, fizesse mais um otário. Bem-feito pra mim.

*   *   *

A VIDA. Brasileiro de classe-média-média, metropolitano sem querer, tudo segue razoável, obrigado. Podia estar melhor, podia estar pior – o que indica mediocridade. Ok: estou acima da inferioridade, portanto. Mas à gente inferior não se pode humilhar, que é coisa muito feia, certo? Quanto aos poucos superiores, não se pode desdenhar deles, pois indicaria inveja e despeito. Então, como diria Lênin, o que fazer? O certo é que medíocres tem lá suas dificuldades, também. Estar enfiado ali, no sanduíche da existência, espremido entre a camada alta e a baixa, qual o charme disso? Zero. Sorte ter a internet para fingir alguma importância, alguma estatura.

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PS 1: Entre uma literatice amadora e outra, entre solecismos acidentais e propositais, este blog tornar-se-á aos poucos aquilo para o qual, afinal de contas, inventou-se os blogs: para registrar anotações à guisa de diário. Daí que pretendo importuná-los com meu cotidiano banal e pequeno-burguês: aguente-se filosofices estúpidas, conclusões imprecisas, preconceitos mal-disfarçados, de tudo um pouco. Preparem-se, pois, moços e moças.

PS 2: Um belo dois mil e dezenove a você e aos seus. Que corra tudo bem, que sejamos bons e confiemos em Deus (ih! rima involuntária).

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A falência da Abril
e as redes sociais

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Sei que é contraditório e irônico postar isto justamente aqui, numa mídia digital, mas a falência da Abril ligou um alerta em minha mente. Na verdade, já vinha pensando nisso há algum tempo: a morte da comunicação impressa, especialmente revistas e jornais.

Constato que a comunicação em papel escapa do horizonte de toda uma geração emergente, quem dirá das próximas. Por exemplo, muitos jovens na casa dos vinte anos (arrisco dizer a maioria) nunca compraram uma revista na vida, exceto sob influência dos pais, na infância.

Mesmo onde trabalho (e trabalho numa mídia impressa!), numa conversa alheia, um “garoto” de 22 anos que ali trabalha disse nunca ter ouvido falar de “um tal de jornal Lance”. Eu, ouvindo à distância, fiz um facepalm mental: o garoto nunca, nunquinha na vida dele pisou numa banca e, se pisou, nunca comprou um jornal, ainda que não necessariamente o Lance.

Eu já comprei o Lance. Não muitos. Mas lembro de um, na derrota do Brasil para a França em 98, por exemplo.

Na verdade, eu vi o Lance nascer, em 1995, com um formato de tablóide europeu e com um projeto gráfico colorido que foi absolutamente revolucionário para a época, quando ainda os jornais eram todos em preto e branco. Para se ter uma idéia, a Folha de S. Paulo tornou-se colorida só no ano seguinte, em 1996.

Mas não falo isso por saudosismo ou nostalgia, embora haja algo disso sim. Meu ponto é este, sem rodeios: as redes sociais estão matando a inteligência, o senso temporal, o registro histórico, etc. etc. etc. Esse negócio de confiar seu registro e de tudo que acontece à sua volta a uma empresa como a do sr. Zuckerberg me parece loucura.

O garoto acima citado falou aquilo com certa naturalidade orgulhosa, como se não saber da existência de um jornal, mesmo trabalhando em outro, o colocasse na roda dos descolados, dos up-to-date de sua geração.

Esquisito esse orgulho da ignorância. Da minha parte, eu já amava publicações impressas mesmo no tempo da tevê, geração da qual faço parte. Sempre gostei de ler, e não apenas coisas muito relevantes, mas as corriqueiras também (aliás, quem diz só ler coisas relevantes não lê nada — como saber o que é relevante sem conhecer o irrelevante? — mas este é outro tópico).


As redes sociais estão matando a inteligência, o senso temporal, o registro histórico, etc.


Bem, por acaso, topei ontem com esse livro que pretendo ler nos próximos dias. Vi uma entrevista do autor em que ele fala coisas interessantes sobre as redes sociais, contra elas. ( https://amzn.to/2LDPVq9 ).

Mas há outra coisa de grave quanto às redes sociais. Sabe o que acontecerá nos próximos dias? Centenas de parlamentares que tomarão posse e mandarão em mim e em você, e farão leis para mim e para você e eles não são nada, absolutamente nada além de populares de rede social. Campeão dos likes e dos hearts. Gente de quem você não compraria um boné pessoalmente, mas que pela persona que construíram habilmente nas redes, ganharam mais que curtidas, ganharam um mandato parlamentar. Cara, isso é sério demais, sinta o peso disso. É muito grave, se pensar a longo prazo. O argumento de que “os que estavam lá já não valiam nada, mesmo” não é válido: cocô de rato e cocô de camelo são ambos cocô, ainda, desculpe. Mesmo que os eleitos provem que são capazes, a forma como eles construíram sua imagem foi falsa, via redes sociais apenas, e este é o ponto aqui. O quê realizaram de concreto que fizesse jus aos votos que obtiveram?

Voltando ao caso da Abril, eu não quero um país em que uma editora — a despeito de todos os seus pecados, que eu bem sei que os têm — feche as portas e ponha milhares de trabalhadores no olho da rua (e atenção: falo de pais de família das gráficas, motoristas, faxineiras, cozinheiras, etc. e não apenas jornalistas chiques & famosos), enquanto gente obscura embora performática de redes sociais ganhem 50 mil por mês, no mínimo, pago do seu e meu bolso, e ainda por cima detenha nas mãos o poder político concreto e efetivo sobre a sociedade. Tudo isso graças a… likes(!!). Pelo amor de Deus, isso é grave.


A gente precisa parar com esse vício de redes sociais, de alguma forma, antes que seja tarde e elas moldem nossa maneira de viver.


Claro que prego no deserto. A indústria de smartphones vai muito bem, obrigado e, na disputa entre material impresso e fotinhas em telinhas OLED ultracoloridas, essa última ganhará de lavada. O sr. Zuckerberg tem muito pouco com que se preocupar.

Contudo, pergunto o seguinte: quem fez mais pela cultura do Brasil, a Abril ou o Facebook? Fácil responder, não? E, sim, uma coisa exclui a outra, aliás já excluiu. A dicotomia é verdadeira.

A gente precisa parar com esse vício de redes sociais, de alguma forma, antes que seja tarde e elas moldem nossa maneira de viver. Estamos pondo grilhões na nossa mente, elegendo feitores sobre nós, sem percebermos.

Talvez continue o assunto. Obrigado pelo seu tempo, eu não mereço tanto. Obrigado, de novo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Mentirosos

— MENTIROSOS não gostam de mentir. Mentem por vício, por doença. O sonho de todo mentiroso é contar a mentira uma única vez e não precisar tocar mais no assunto.

O problema é que a mentira volta: ela sempre retorna à superfície, reaparece sabe-se lá como, e o mentiroso tem de encará-la, de novo e de novo.

A mentira perfeita é aquela dita uma só vez, todos acreditam nela, e procuram outra coisa para fazer: e o mentiroso, assim, suspira aliviado…

A metamorfoice
(parte 4)

DIA APÓS DIA, Gregor Soros adaptava-se à vida de inseto humano. Numa segunda-feira pela manhã, a exemplo dos encontros com seus executivos, reuniu a mulher e o médico oficial para incumbir-lhes a tarefa de convocarem os melhores pesquisadores de Harvard e Stanford e outros geneticistas com autoridade reconhecida na área, a fim de investigarem mutações no DNA e possíveis modos de reversão ao estado original.

Cuidadoso para não contrariar o bilionário de modo ríspido, o doutor advertiu-lhe que pesquisas científicas deste calibre costumam ser lentas e dispendiosas, poderiam arrastar-se por anos, com resultados incertos; e que seu caso requeria tratamento médico imediato. Gregor S. aceitou a orientação, deixando claro que prazo não seria obstáculo para ele, se houvesse esperança de bons resultados. Ficou decidido que se submeteria às terapias enquanto as pesquisas avançassem em paralelo e que para todos os efeitos apostaria as fichas que tivesse à mão.

Toda a operação foi encaminhada oficialmente pelo conglomerado farmacêutico que pertencia a seu fundo de investimentos. Ninguém além da família sabia do problema, com exceção de seu médico de confiança, que lhe atualizava em linguagem acessível e não técnica o andamento e os resultados preliminares das pesquisas. Aos demais, tudo permanecia em absoluto sigilo.

A condição anômala já durava dois meses. Por mais que fosse ainda respeitado e obedecido, e por mais que seu caso recebesse o melhor encaminhamento possível e fizesse sua parte, Gregor S. não estava muito confiante, no fundo. Não apenas revoltava-se intimamente contra seu infortúnio pessoal, por razões óbvias, mas amargurava-se com tudo o mais ao redor, com tudo alheio a si. Pela televisão, notava o quanto o mundo continuava em relativa ordem, perturbando-se apenas com banalidades corriqueiras nas localidades de sempre — principalmente no Terceiro Mundo — enquanto aquele mal inexplicável o castigava.

Inconformava-se com a rotina das demais pessoas, rotina da qual fora privado. Trivialidades nas quais antes sequer pensava, hoje faziam-lhe grande falta: banhar-se na sua hidromassagem após um dia extenuante, por exemplo. Desejava de volta até privilégios simples e acessíveis a todos, ricos e pobres, como caminhar ao ar livre ou molhar-se na chuva; e pensava nas pessoas normais que em geral eram mal-agradecidas e desprezavam a boa sorte que tinham, não sabiam viver.

Em certos momentos, indignava-o até sua pobre criada quando postava-se à entrada do aposento, sem entrar. Notava-a emagrecer ou engordar míseros gramas — seu sentido de inseto detectava alterações corporais facilmente, inclusive odores e sons imperceptíveis às pessoas comuns — e raciocinava como o metabolismo dela andava em perfeito funcionamento. Depois, zapeava no controle remoto da televisão e via o tempo todo gente a se lamuriar ou a agradecer por bobagens, sempre a mencionar “Deus”: curioso, era “Deus” o tempo todo, aqui, acolá; esse tal “Deus” que para si não passava de fantasia de religiosos e fanáticos. Desprezava tais superstições. Para ele, tudo não passava de crendice tola.

Se existisse de fato, talvez Deus fosse um titã que jogasse com a humanidade arbitrariamente, a seu bel-prazer; um enxadrista cósmico o qual, sabe-se lá por qual razão, decidira aplicar-lhe particularmente um xeque-mate. Detestou a religião dali em diante, a cristã em especial, a que mais aparecia na televisão. Era uma religião vulgar, sem mistérios, sem ritos secretos; sempre com suas culpas manipuladoras, suas penitências sem sentido e sua moral piegas para dominar crentes simplórios: a maior farsa da existência.

Caso seu estado metamórfico não revertesse a contento, Gregor Soros não teria mais nada a perder. Estaria disposto a tudo para vingar-se do destino que lhe aplicara, sem motivo aparente, um golpe cruel e covarde. Diferente de antes, porém, sua revolta difusa agora ganhava forma, conteúdo, e alvos bem definidos. Foi quando sentiu uma estranha satisfação percorrer-lhe a carapaça ao identificar seus novos grandes inimigos: a fé em Deus e a normalidade da vida.

*continua…