A metamorfoice
(parte 3)

A FIM DE não prolongar muito o relato e causar enfado, registre-se que Gregor Soros conseguiu driblar engenhosamente as dificuldades iniciais de adaptação ao seu novo aspecto repugnante. Mulher e filho, após o choque inicial e todas as reações correspondentes, por fim condoeram-se da situação. Passaram por fases alternadas de pavor, nojo, negação, raiva, desespero, mas enfim começavam a resignar-se. Gregor Soros construíra um núcleo familiar muito sólido, e este foi seu teste decisivo. Com ajuda do terapeuta de confiança da família — que tinha com eles há muito um contrato de absoluto sigilo e confidencialidade — ambos, esposa e filho, aos poucos aprendiam a lidar melhor com o problema e empenharam-se em buscar juntos a solução. O histórico familiar era favorável, o que os deixava esperançosos: inúmeros desafios foram superados até ali e certamente aquele não seria diferente.

Medidas de contingência foram tomadas a fim de preservar a privacidade familiar e evitar possíveis escândalos midiáticos: o departamento de relações públicas da holding, cuja diretoria fora orientada diretamente pela esposa de Gregor Soros, convenceu os acionistas e a imprensa, por meio das agências de notícia do grupo, de que ele despacharia de sua residência a partir de então. Comunicou que o investidor tivera um mau súbito, mas que estava tudo sob controle. Estava em ótimas mãos e cumpria apenas ordens médicas. O timing foi oportuno e preciso, pois até o momento nenhuma especulação ou suspeita fora levantada.

Os órgãos da grande mídia tocaram no assunto apenas por alto, especialmente porque, afinal de contas, o sr. Soros era ele mesmo um importante acionista daqueles impérios da comunicação. E as concorrentes, por sua vez, não queriam ficar mal com o bilionário e perder possíveis patrocínios. Todas as redações, portanto, estavam devidamente orientadas pela alta direção a não gerar qualquer sensacionalismo em torno do repentino “sumiço” — já que ele se ausentara de todos os compromissos naquela semana — e a não divulgar nada sem o consentimento prévio da família. Tudo foi acatado sem sobressaltos. Na pior das hipóteses, caso algum boato vazasse na internet, cumpria àqueles veículos valerem-se de sua credibilidade para desmenti-los um a um, tratando-os como meras teorias da conspiração. Ademais, o departamento jurídico estava atento e tomaria as medidas judiciais cabíveis, caso fosse necessário.

Parecia que as coisas andavam mesmo sob controle. Gregor Soros, entretanto, dividia-se entre o alívio que sentia por encontrar tais arranjos temporários e a inconformidade pelo seu infortúnio pessoal. Queria respostas. Como, perguntava-se, como diabos aquilo pôde acontecer? E porque justo a ele? Apesar do bom tratamento recebido pela família e pela obediente criadagem, e apesar de sua fortuna muito bem administrada não recuar um tostão sequer, ao contrário, aumentou e proporcionou alegria aos acionistas naquele trimestre, apesar disso tudo crescia em Gregor Soros uma revolta difusa, uma raiva amarga e uma angústia por entender que não merecia semelhante castigo.

Conversava com seu médico — e único confidente — a respeito de seu drama. Não era possível, inquiria, como não haveria nenhum caso parecido por aí? Decerto fosse alguma nova doença ou epidemia que desembarcara no país, como a AIDS nos anos 70. O dilema era que, para escarafunchar casos semelhantes mundo afora, cabia a ele dar o start. Seria o primeiro case, justo ele? Submeteria-se a testes científicos, uma ilustre cobaia, em laboratórios de que ele mesmo era um dos sócios? Impossível. Seria uma enorme temeridade. O segredo deveria manter-se a sete chaves, a qualquer preço.

Quando refletia com a fria racionalidade costumeira, Gregor Soros imaginava portar alguma anomalia rara em seu DNA, que alterara-lhe radicalmente o código genético. Em momentos de paranóia, porém, imaginava-se vítima de algum experimento científico secreto muito bem arquitetado por seus inimigos. Quem sabe envenenamento? Serviços secretos de certos países onde sua figura era indesejada eram peritos nisso. Puxava pela memória possíveis bebidas estranhas, almoços e jantares suspeitos, situações atípicas no passado recente. Buscava rostos e nomes, ciladas despercebidas e no entanto nada nem ninguém vinha-lhe à cabeça de que pudesse suspeitar. Como num quebra-cabeças incompleto, as peças do buraco em que se metera não se encaixavam de jeito nenhum.

*continua…

A metamorfoice
(parte 2)

GREGOR SOROS passou todo aquele dia enclausurado em seu aposento. Ele, que sempre tivera respostas rápidas para as situações mais complexas, não encontrava explicação para o acidente que lhe acometeu. À hora do desjejum, a criada chamou-o junto à porta, duas batidas leves: como não ouvisse resposta imediata, retirou-se, sabia que não devia importunar. Gregor S. não sentia fome naquele momento, sua aflição tirou-lhe todo o apetite.

Rastejava-se pelo quarto, de um lado para outro. Por sorte o ambiente era amplo, uma confortável suíte bem equipada que permitia a qualquer um passar muitas horas ali, aposento digno de um bilionário. Estava angustiado, com mil perguntas e preocupações atordoantes na cabeça: o que lhe sucedeu afinal de contas, como aquilo teria acontecido, como se adaptar à situação, se se tratava de um mal temporário, como driblar os executivos e sócios-investidores da holding se acaso perguntassem por ele, como dirimir os efeitos de um vexame absurdo; e em casa, como apresentar-se daquela maneira ao filho e à mulher quando voltassem da viagem à Grécia, o que dizer a ambos; claro, como ocultar o escândalo da imprensa e, principalmente, que medidas tomar rapidamente para reverter o quadro com o menor dano possível.

Após quatro horas remoendo e analisando alternativas, sentiu-se mais aliviado. Retornou-lhe o apetite. Felizmente, Gregor S. ainda conseguia falar, se bem que num fraco volume; a voz saía-lhe comprimida, vagamente metálica e distante, como se alguém lhe apertasse o pescoço quando em seu corpo humano original. Rastejou e equilibrou-se junto à porta, erguendo-se pelas patinhas que agarraram-se bem à parede. Conseguiu alcançar o interfone, e com muito custo empurrou o botão com sua cabecinha achatada e falou: deu ordem à criada que deixasse a comida na bandeja em frente à porta, que batesse três vezes, deixasse-a entreaberta e não perguntasse por ele. Bem treinada, a criada fez exatamente como ordenado, estranhando um pouco a princípio, mas deu de ombros instantes depois; afinal, aquela não foi a primeira vez que o patrão cometia extravagâncias inesperadas.

A operação saiu como calculado, o que deixou Gregor S. satisfeito. Talvez fosse um bom presságio. Talvez as coisas se reencaixassem aos poucos e tudo não passasse de uma crise momentânea. Então, usando a cabecinha, arrastou a bandeja para dentro do quarto e comeu, aos bocadinhos. A criada preparara o tradicional sanduíche de pastrami e o leite com mel de todas as tardes, de que ele tanto gostava. Mas a refeição não teve gosto absolutamente nenhum: tudo que lhe entrou pela boquinha ou seu equivalente teve uma consistência pastosa e insossa, semelhante a mastigar banha vegetal. Perdera o paladar. Pior, o bolo alimentar ingerido movia-se como algo vivo dentro de seu corpo, expandindo-o; ele sentia todo aquele movimento, como se a coisa adquirisse vida própria dentro de si. Não resistiu. Aos engulhos, expeliu o conteúdo ingerido junto ao canapé, e a expansão de sua estrutura corporal provocada pelo alimento causou-lhe dores e câimbras até tarde da noite.

*continua na parte 3

A metamorfoice
(parte 1)

NUMA MANHÃ, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Soros, também conhecido como George Samsa, encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado e marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual o negro edredon de seda chinesa deslizara ao chão, dada a falta de aderência de sua nova e asquerosa forma. Ante a visão surreal, ficou chocado; suas perninhas em vários pares mexiam-se incontrolavelmente, de uma forma bizarra e repugnante. “O que terá acontecido comigo?”, indagou-se, confuso. Ao mirar seu reflexo no enorme espelho veneziano da parede defronte, ficou estupefato com a aparência grotesca que assumira.

“É uma tragédia! Que horror!”, pensou. Estaria delirando? Seria um sonho dentro do sonho? Pois tivera pesadelos recorrentes nos últimos tempos, porém, com nada parecido. Permaneceu imobilizado na cama, sem saber em quê pensar, atônito, mudo. Dores agudas nunca sentidas percorriam-lhe o interior da carapaça rígida e oleosa, cuja estrutura mostrava-se lustrosa ao refletir a luz da janela.

“Mas… justo agora? Agora? I-isso é, é… horr-horrível”, gaguejou. Gregor S. tinha acessos de gagueira quando ficava tenso ou ansioso. Sua preocupação tinha motivo: caso aquilo fosse real e não um sonho trágico, podia tornar-se sua ruína, ele que acabara de sair na capa da última Forbes como o maior bilionário do mundo. Entrevistas coletivas estavam programadas. No dia seguinte seria entrevistado no mais prestigiado talk-show da televisão. Tornava-se a mais nova celebridade do mundo corporativo e não era por menos: naquela época haviam pouquíssimos bilionários no planeta, contavam-se todos nos dedos das mãos. E justamente ele tornava-se agora o maior de todos!

O que dizer? O que fazer? Seria uma desgraça, um escândalo monumental. As ações de suas companhias fatalmente desabariam se a notícia se espalhasse. Seus inimigos, que não eram poucos, teriam um trunfo espetacular nas mãos para levá-lo ao fracasso e eles não o poupariam de nenhuma maneira. Não era possível, só podia estar sonhando. Não podia, não podia ser real tudo aquilo!

*continua na parte 2

As celebridades
e a histeria coletiva

DE UNS TEMPOS PARA CÁ, iniciou-se um ciclo de histeria coletiva no chamado meio artístico, desde o show business americano, do noticiário ao cinema, e que vez ou outra respinga no Brasil — já que espirro americano logo vira pneumonia por aqui — por meio da Rede Globo e cia. limitada.

Este ciclo de histeria coletiva é efeito colateral do politicamente correto, o qual, se inicialmente policiava termos ofensivos substituindo-os por eufemismos polidos para não ofender minorias e grupos fragilizados, hoje tornou-se um festival de acusações malucas e denunciações paranóicas de males abstratos que, a julgar pelo que é denunciado ostensivamente, dá a impressão de que estamos imersos em malignidades tão claras e palpáveis que se poderia cortá-las em fatias, de tão concretas e materiais que são.

Não obstante, trata-se exatamente do contrário, muito pelo contrário. Os males que o subproduto histérico do politicamente correto pretende denunciar nem de longe correspondem à realidade. Enquanto se apontam males onde não os há, ao menos não epidemicamente, males verdadeiros são maliciosamente ocultados, dando a impressão aos desavisados que aqueles sequer existem. Vejam, por exemplo, as tais denúncias indignadíssimas contra os “assediadores sexuais” de Hollywood. Eles são tão poucos, mas tão poucos, que se pode apontar seus nomes. Fosse um mal epidêmico, seria inabarcável tentar apontar cada um deles, de tão numerosos.

No entanto, a suposta “guerra aos assediadores” — não a este fulano ou àquele beltrano, problema que seria facilmente resolvido na justiça, mas a assédios em abstrato — pretende criar, bem lá no fundo, um estado de superioridade tal nas denunciantes ou nas identificadas com elas que, ao inocular tais sentimentos na população feminina das novas gerações sob suas influências, as levará a uma confusão generalizada nas relações normais entre os sexos opostos.

Traduzindo, senhoras e senhores: enxerguem a coisa ainda em germe, por favor. A relação heterossexual, homem e mulher, começa a dar sinais de estar sob ataque. Peço que guardem seus risos por um minuto e admitam a hipótese.

Existe a abordagem normal e sadia entre os sexos opostos e o assédio sexual, que são coisas completamente diferentes. Sim, você e eu sabemos disso, algo óbvio. Contudo, ao apontar assédios masculinos onipresentes sem explicar o que vem a ser exatamente assédio e o que simplesmente é flerte, como diferenciar um de outro?

Ao deixar as definições “em aberto”, ao mesmo tempo em que se inflam egos femininos — feministas? — e, quando por outro lado se abafa qualquer iniciativa masculina, ou quando a própria masculinidade saudável é sistematicamente desestimulada desde a infância; ao mesmo tempo em que todo masculino é desconstruído e ressignificado nos garotos, e que o melhor homem de acordo com os ditames da mídia e da academia é aquele que renuncia ao próprio sexo em que nasceu, pergunto: o que acham que está acontecendo?

Não se pense apenas nas nossas relações imediatas de cada dia: quando se olha para a vida comezinha diária, tudo ainda nos parece tediosamente normal. Todavia, chegará até nós tais maluquices, mais cedo ou mais tarde, não se enganem. Ao menos, a intenção é esta. Porém, tudo começa pelas chamadas elites, tanto a endinheirada, onipresente e invisível que financia este movimento todo, quanto a elite midiática que penetra nos lares, além da intelectualidade que determina toda a pedagogia formadora dos cidadãos do futuro — as crianças, meninos e meninas.

Para se ter uma idéia, já há relatos de garotos de 17, 18 anos que temem se aproximar e conversar com uma menina de mesma idade. E as meninas, por sua vez, não conseguem mais travar um diálogo fluente e normal com eles, sem se fazerem desnecessariamente de superiores, e julgarem cada termo do diálogo classificando-o de acordo com os ditames do feminismo ou do politicamente correto que aprenderam, intencionalmente ou não. Haverá alguma possível relação amorosa que resista a tal policiamento?

Entendem? Por mais ridículo que pareça (pense em quantas coisas nos pareciam ridículas em, digamos, 1987, e hoje são normais), a relação heterossexual, aquela que nos gera a todos, héteros ou homos, está sob ataque — ainda sutil, sim, ainda em germe — mas está. Claro, tudo sob pretextos belos e iluminados, tais como combate a machismos ou a assédios sexuais por parte dos malignos homens, todos eles, justamente quando a taxa de testosterona é a menor da história (o rosto de Justin Bieber não me deixa mentir).

Os pontas de lança deste movimento histérico são a mídia americana televisiva e de Hollywood, ambas financiadas pelas elites bilionárias e suas respectivas fundações. Há três décadas, os males da esquerda internacional concentravam-se em Moscou. Hoje, concentram-se nos Estados Unidos, mais precisamente no Partido Democrata e seus militantes midiáticos perfeitamente obedientes a seus senhores.

A continuar assim, tempos sombrios avizinham-se, preparemo-nos todos. De minha parte, espero sinceramente estar errado em minha previsão.

Marte
e Vênus

O MUNDO foi de Marte, hoje é de Vênus. Quando e se a era venusiana declinar, o mundo voltará novamente ao estado marcial, por força da contingência.

Eis como tal coisa sucede.

Marte e Vênus alternam-se ao longo das eras, em períodos cíclicos. Marte, por meio das guerras e da força bruta — à custa de muito sangue, músculos, cérebros e vidas inteiras — cria e estabelece a “normalidade” na sociedade humana. O deus vence o mundo hostil e o conquista. Funda (ou refunda) civilizações, nações desenvolvem-se; e, paulatinamente, aquela brutalidade inicial torna-se desnecessária, cedendo lugar à paz, à beleza e à graça. A existência como um todo suaviza-se: inicia a era de Vênus.

Então, a feliz estabilidade das sociedades perpassa os séculos, e as gerações que se sucedem, uma após outra, esquecem-se do árduo trabalho empreendido por Marte para se alcançar este estado de felicidade, o qual, ao contrário do que aparenta, não é perene. A dominante Vênus, acomodada e ingrata, menospreza a origem de sua força e de sua vitalidade e, desdenhosa, entrega tudo ao inimigo, sem o saber.

Quando Vênus domina ostensivamente a existência sem a contraparte que a equilibra, ela tece e molda os pensamentos humanos de maneira oblíqua e temerária. Princípios e valores até então intocáveis invertem-se, insurgem-se contra Marte, hostilizando-o. Dádivas penosamente adquiridas, não por ela, são descartadas como se procedessem de infinitas fontes; dádivas às quais a deusa não fora capaz de criar, tampouco de garantir, apenas de usufruir. Se Vênus reinar só e, inconseqüente, não retroagir de nenhuma maneira, o Bem finalmente se perderá.

Marte será convocado à ação novamente. Ou age depressa ou todos perecem: os homens, as mulheres, toda a civilização humana. O ciclo épico recomeça, e a humanidade torna-se novamente a argamassa que reconstrói o mundo: o mundo marcial é bruto, indômito, implacável. Sem Vênus, retorna a barbárie, os cadáveres empilhados, o sangue que tingirá as bandeiras e as flâmulas dos povos, até que os mais fortes prevaleçam.

Do equilíbrio de forças entre Marte e Vênus advém o equilíbrio da vida humana na Terra. Deuses sucedem-se por eras, e podem fazê-lo, imortais que são; nós, porém, sem a harmonia das forças divinais, pereceremos todos.

Portanto, que Vênus e Marte estejam permanentemente em paz. Para o Bem de todos, mulheres e homens, mortais que somos.

A arte do
romance

ROMANCISTAS não são apenas narradores ou contadores de histórias. São também artistas da língua que penetram por entre as “malhas” da vida e da realidade, com sensibilidade e argúcia, e internalizam em si a verdade das coisas, sem sentenciar, pontificar ou julgar. Sutilmente.

Ser romancista é a plenitude da literatura. Afinal, onde mais, a não ser no romance, se pode descrever múltiplas faces da existência, faces por vezes caleidoscópicas reunidas numa mesma personalidade, a não ser neste gênero literário? A filosofia e a poesia não são capazes de tal, nem se propõem a tal.

Romances dão “material” à filosofia. São nobre arte, e os romancistas, artífices habilidosos e capazes.

Não vejo com bons olhos quem leia de tudo, exceto romances. Ou mesmo faça leituras protocolares do gênero somente para fins de “repertório”. Parece-me sinal de imaturidade intelectual, não apenas questão de gosto.

Consumir livros de “afirmação” com teses rígidas e prontas ou textos “digeridos” do cotidiano tal como crônicas e ensaios, podem e têm lá seu valor. Mas somente o romance constrói e amplia a visão das coisas. Não vende certezas, pelo contrário; por vezes as destrói e as confunde, despertando mil perspectivas ao longo do tempo. (Claro que me refiro ao melhor produto do gênero).

Romances são as leituras primordiais de quem sabe que nada sabe. E são justamente estes os que mais sabem, paradoxalmente.

A “morte” do
amor romântico

O ROMANTISMO morreu no Ocidente. Mataram o romantismo no Ocidente. A hipervalorização do sexo e da sexualidade em si mesma, o culto deliberado do prazer corporal e de orgasmos como direito político-ideológico sufocaram o romantismo, estrangularam-no pouco a pouco, a ponto de hoje este transformar-se numa caricatura distante, cuja expressão é sistematicamente sonegada nas representações artísticas, nos filmes, na música (especialmente nesta), nos programas televisivos e nas propagandas em geral.

Ao mesmo tempo, a cada dia que passa erige-se uma espécie de culto pagão, não ao amor romântico, mas ao resultado final abstraído deste mesmo amor: a relação sexual. Funciona mais ou menos como raspar a cobertura do bolo, comer a cereja que o confeita e jogar o resto fora. O bolo, o conjunto inteiro, não é mais importante. O gesto e o símbolo que ele celebra, tampouco: raspa-se a cobertura, come-se a cereja, descarta-se a massa, e basta.

Este culto ao sexo não se refere apenas às relações sexuais propriamente ditas, mas a um sexo “ideologizado”, reivindicado nas ruas por manifestantes revoltosos, com cartazes erguidos e punhos cerrados em riste; um sexo sem “seiva”, feio, grosseiro, propositalmente vulgar e desejado por ninguém, produzido em massa nas cátedras universitárias e defendido em sisudas teses acadêmicas; um sexo exigido como “direito político” ou, na mais concreta das hipóteses, como mera promoção dum ato biomecânico entre dois ou mais (!) seres humanos, nos quais as respectivas funções genitais são empregadas com a finalidade de se obter prazer físico e sensorial, verter e trocar fluidos corporais, e só.

Como o entorpecente ao viciado, este sexo que substituiu o amor romântico funciona como um estimulante qualquer, cujo único objetivo é a busca da mera “sensação” instantânea: de preferência, devidamente carimbada, oficializada pelos órgãos do Estado e garantida por lei.

Então, tem-se de um lado este “sexo político” de ensandecidas intelligentsias e militâncias, charmoso como um paquiderme; e paralelo a este, oferece-se às massas um sexo “mecânico”, mero “estimulante sensorial”, desumanizado e cínico que as mídias em geral retratam. E lá fora, bem à margem, vagueia o amor romântico, existente apenas como nostalgia de quem viveu noutros tempos e que, para reencontrá-lo, precisa-se garimpá-lo em filmes antigos ou em antigas canções disponíveis no YouTube, por exemplo.

Mas, e quanto às novas gerações, que já nasceram alijadas deste amor romântico sem eco no mundo à sua volta? Para cultivarem o romantismo naturalmente percebido em si e sufocado por mil barreiras, elas dependem também de uma espécie de “paraeducação clandestina”, clandestina posto que ausente dos meios oficiais e escamoteada propositalmente dos entretenimentos de massa.

As novas gerações, para dar vida ao romantismo presente em si, dependem de um necessário cultivo pessoal e oculto obtido por esforço, já que não existe mais nada que expresse e alimente o amor romântico na cultura vigente, tal como outrora. Eis aqui uma opressão que nenhum grupo organizado se dispõe a denunciar. Nada mais sintomático.

Jeitinho brasileiro
é para poucos

— O TAL “jeitinho brasileiro” só persiste porque brasileiros em geral não percebem que burlar regras para levar vantagem é luxo disponível apenas para ricos e influentes. Pobres e classe média pouco remediada, quando aplicam o jeitinho brasileiro inadvertidamente, levam de volta um trabuco muito pior. Ao pobre, o melhor é seguir as regras e aproveitar as oportunidades que obtém dentro dos meios oficiais, galgando pequenas (e sólidas) vitórias. Mas muitos não se dão conta disso, iludem-se com uma sorte de malandro que não possuem, e se estrepam.

Coisa irritante

HÁ MUITAS coisas irritantes e cada um tem sua lista pessoal de coisas irritantes. Da minha, destaco um item: não restringir a si próprio. Este, asseguro, é um dos vícios prediletos nestas paragens. Sinal de nossa falta de civilidade, categoria abortada no solo pátrio desde a precisa data de 15 de novembro de 1889.

Não restringir a si próprio, o que é? O termo vai além da expressão não se tocar ou não se mancar. Para entender melhor, imagine que você, eu ou qualquer pessoa tenha certo espaço delimitado em torno de si, algo como um círculo. Melhor: imagine cada pessoa envolta por uma bolha invisível (bolha ilustra bem). Imaginou? Pois bem: restringir-se consiste em respeitar a exata distância que vai de um corpo à parede da própria bolha, e da parede da bolha subseqüente ao corpo que ela contém; desse modo, nunca invade-se o espaço alheio: as bolhas ficam perfiladas ou justapostas. Se em ambientes com pouco espaço disponível a pressão entre as bolhas for inevitável, mesmo assim os corpos estarão protegidos de indesejáveis apupos, ruídos perturbadores e outras inconveniências.

Por que tanta gente não sabe restringir-se? O problema é que brasileiros são muito carentes. Ok, não sou nenhum finlandês: nós somos muito carentes (melhor colocado). Insisto, por que raios somos assim? Carentes mesmo, observe. Daí que muitos adotem o vício de precisar aparecer, fazer-se violenta e indiscretamente presente, chamar atenção a todo custo, pisar no dedão do universo. Quem nunca viu gente assim? Aquele tipo que chega aos berros no recinto, a fazer graça com o vácuo como se falasse com “a geral”. Ou ainda aquela menina, no transporte coletivo, discutindo constrangedores problemas familiares com a mãe em seu Samsung: “então, mãe, não adiantaaa, entendeeeu? Esqueeece, esqueeece…” Os exemplos são inúmeros.

As vítimas dos não-restringidos: comedidos e discretos. Eles são as vítimas preferenciais dos, digamos, mais expansivos. Às vezes, está você tranquilamente n’algum local público, seja a biblioteca municipal ou o banheiro do shopping center, por exemplo, fazendo o que se faz nesses lugares, oras. Ali, na sua. E eis que dos ralos e tomadas surgem os carentes performáticos, sozinhos ou em bando, a bradar alegrias incontidas num tom de voz calculado para chacoalhar seus neurônios. Nesta hora todos devem escutá-lo; é muito, mas muito importante que eles sejam ouvidos pelo maior número possível de pessoas. Não há escapatória, não há misericórdia. Quanto mais silencioso o recinto, azar: eles possuem um radar especial para detectar tais ambientes. Daí chegam, inflam os pulmões, ativam as cordas vocais no volume máximo, expandem-se: não restringem a si próprios.

Mas voltando ao exemplo das bolhas isolantes. Qualquer leitora de memes fofos em redes sociais condenará esta minha sugestão de viver em bolhas. Terá calafrios. “Oh, não! Não podemos viver isolados! Não somos uma ilha”, etc. Olha, de fato não somos mesmo, e aí está o problema. Temos companhia demais.

Compare a densidade populacional de uma São Paulo com uma Zurique e veja do que estou falando. Falta isolamento, acredite. Falta por aqui uma frieza sutil entre os indivíduos, certo distanciamento entre as pessoas. Ademais, sabe, é interessante transmitir um ar misterioso e reservado, algum charme enigmático feito uma caixa de bombons por abrir. É próprio da boa convivência um mostra-esconde, um leve chiaroscuro nas personalidades, dos quais brotem a curiosidade e o desejo. Pessoas abertíssimas feito pernas em camas ginecológicas causam choque inicial, porém, logo revelam-se tão estupidamente banais que não têm graça nenhuma afinal de contas. São tolerados, na melhor das hipóteses.

Sim, sem qualquer reverência blasfemo aqui o deus calor humano e cuspo no altar da deusa mais amor, por favor. Não me importo. Talvez tais divindades estejam em falta na Islândia. Já por aqui, na terra da micareta, do carnaval e da Ivete Sangalo, elas estão sobrando: tanto assim que dá até para mandá-las à Islândia num contêiner. Junto com a Ivete Sangalo.

Portanto, quem deseja ser feliz sem encher o saco alheio deve aprender a restringir a si próprio. Discrição é a regra número um das pessoas especiais. Não apenas, obviamente: recomenda-se adquirir algum conteúdo para um contato eventual. Ler uns livrinhos aqui e acolá não dói nada. Requer apenas um leve esforço.

Enquanto praticar a nobre disciplina da auto-restrição viva aí, quietinho e especial, elegante feito um gentleman ou graciosa feito uma lady. Cada qual quietinho na sua bolha. Ah, mas essa bolha é frágil, te contei? A qualquer momento ela estoura, e os encontros acontecem.

Mal-humorados x bem-humorados

— MAL-HUMORADOS não são realmente muito sexies e agradáveis; não são desejados à primeira vista. Ninguém os convida para festas, por exemplo, a menos que se tenha um bom motivo para isto.

No entanto, eles tendem a ser mais competentes e a cumprir à risca a expectativa que lhes é depositada. Uma vez pouco procurados, cada pequena missão que recebem será feita da melhor forma que puderem, pois precisam provar que são bons no que fazem.

Simpáticos e carismáticos, por outro lado, tendem à mediocridade. O esmero que lhes falta é compensado por sorrisos e humor leve, e a massa confunde simpatia com eficácia: não por outra razão são tão requisitados.

Bem-humorados seduzem no início e desapontam no final; mal-humorados repelem no início mas cativam no final.

Difícil é ter sensibilidade e perceber tal sutileza.