A revanche

As certezas todas e meus arrimos
A um só tempo mostraram-se inúteis:
À ruptura dos tempos, calei, amargurado.

Ao derredor vi alegres niilistas,
Férteis e prósperos a vicejar,
E a negar minha expectativa
Dum inevitável e exemplar castigo.

Justiça divina? Justiça minha:
A duras penas descobri.
Mas não me arrependi. Fechei-me
Em sérias convicções a eles obsoletas,
quiçá risíveis, quando as expunha.

Depois, encasulei-me: tranquei da alma
As portas e janelas, cerrei as cortinas.
Pouco se me dava, fosse noite ou dia
Ou data festiva: queria de volta
O tempo aprazível, a beleza sã,
Seguro esteio que neguei ser ilusão.

Então o jogo contra mim virou-se
As chances todas me foram contrárias.
Decidi: faria eu mesmo um jogo, só meu:
Pregaria no deserto, a pedras, plantas
E a quem mais quisesse ouvir-me.

Vã operação? Talvez, havia a hipótese.
Se me cressem todavia, ah, se um par de almas ouvisse!
Lançaria miúdas sementes e, no entanto, perigosas.

Quanto àqueles, pagariam o menosprezo
De repisarem, destruírem tudo que eu amava.
Decerto, caro pagariam: oportunamente.

Pois era aquela a minha vez:
Naquele instante o vendaval se fez.

Falso
moralismo!

EXPERIMENTE apelar à moral numa certa situação: logo alguém se levantará e esbravejará “falso moralismo!” com o dedo em riste. Pergunto: onde está o verdadeiro moralismo? Quem indiscutivelmente é autoridade em matéria de moral? Sim, porque na expressão falso moralismo, de modo implícito se está a dizer que existe o verdadeiro moralismo. Para todo falso corresponde um verdadeiro e vice-versa, certo? Pois bem: se, via de regra, quem apela à moral é falso e hipócrita, quem será verdadeiro?

Na acusação “falso moralismo!” há um equívoco, um princípio cristão enlouquecido, para usar a expressão de Chesterton. O princípio é o seguinte: todos são pecadores, portanto ninguém deve atirar pedras no outro quando este falhar. Todavia, ao apelar-se à moral em abstrato, o princípio de que “todos são igualmente pecadores” não se aplica. E por quê?

Simples: porque a moral não é um tipo de santidade, de pureza celestial ou de perfeição comportamental. A moral não é propriedade exclusiva dos anjos ou dos santos. Na verdade, moral é um código tácito, um freio ético inerente à sociedade humana, à civilização. É uma barreira valorativa obtida por tentativa e erro ao longo do tempo, que delimita o que se pode ou não se pode fazer para preservar a harmonia entre as pessoas. Se não existisse a moral, a selvageria destruiria a civilidade e a lei do mais forte prevaleceria.

Quando as regras morais não são devidamente observadas, problemas aparecem, pessoas são prejudicadas em maior ou menor grau; e, neste instante, qualquer um pode apelar à moral, não importa quem seja, monge ou gigolô, mocinho ou bandido: o que está em jogo não é a conduta pessoal e íntima deste ou daquele em particular. Apelar à moralidade é defender os pesos e contrapesos sociais que mantém um saudável equilíbrio entre todos os cidadãos e garantir que a vida prossiga sem sobressaltos nem concessões danosas.

Agir moralmente significa não prejudicar deliberadamente o semelhante, não trapacear. E quando apela-se à moral, relembra-se um princípio óbvio: todos estamos debaixo das mesmas regras e estas valem por si, pouco importa o mensageiro.

Claro que se o moralista do momento for alguém cuja reputação é no mínimo questionável, sem dúvida será algo constrangedor. Vale refletir porque aqueles que deveriam ser os guardiões das regras morais não se manifestaram. Se ninguém clamar, as pedras clamarão.

De uma vez por todas: não existe falso nem verdadeiro moralismo. Existe moralismo — talvez enfadonho, sim; talvez incômodo. No entanto, qualquer moralismo é verdadeiro em si mesmo, porque a moral é verdadeira. Acontece que, do mesmo modo que a luz quando acesa “humilha” a escuridão, quem relembra regras elementares de conduta pública humilha aqueles que deles nunca deveriam ter se esquecido, e a vaidade ofendida lhes dói. Acusar de “falso moralismo”, então, é uma maneira diferente de gritarem “ai, minha consciência!”.

Sacrifício

Exigiram-me tanto, e por tantos anos…
Minha sina foi ser preterido, recusado

Encetei um esforço sobrehumano:
Alcei-me qual Ícaro à altura das demandas
E, de fato, voei
— a uma altitude julgada insuficiente, porém.

Equipei-me, treinei, lancei mão dos recursos
que a última tecnologia disporia:
Duro lance que levou nervos, tempo e energia:
— minha própria vida.

Não obstante, consegui! Superei e bem alto voei!
Aqueles, contudo, eram outros requisitantes
Cuja opinião compartilhada foi a de que voadores
Era coisa já obsoleta e ultrapassada.

Destarte, toda minha vaidade alada
Se esvaiu num átimo, ante a cíclica negação
De iníquos que se alternam, o tempo todo,
E detém nas mãos o poder de decidir.

Alma
gêmea

Quem dera os sentidos de meu corpo
Suplantassem a vil matéria
E adentrassem a malha etérea
De tua alma, além da forma:

Saber na fonte intuições
Inefáveis, tua própria metafísica
Que mesmo a razão pura inalcança.

Quisera eu deslizar, feito plasma,
Na compleição pulsante e viva
Onde o pensar não brotou, não nasceu:
Pré-verbal, embrionário, substancial.

Quem sabe se lá, eu penetrado,
Visse, com olho vão e limitado,
O amor nascente em teu espírito nuclear

E no lago onde repousam tuas vivas emoções
Nítido, contemplasse, refletido à superfície
A inequívoca presença do meu eu.

Reclamar
é humano

ALGO QUE não compreendo é o problema que certas pessoas têm com reclamações. “Odeio gente que reclama!” Ora, e por quê? Pois eu desprezo quem nunca reclama: não há nada mais falso do que reprimir-se e nunca reclamar. Por acaso quem não suporta queixas vive uma vida perfeita, numa permanente Disney World existencial?

Há quem advirta aos demais de que não se aproximem dela se for para reclamar. Há quem não suporte quando um outro lhe chama de canto e desabafe e lhe faça objeções.

Que fracas, que fraquinhas são essas pessoas anti-reclamação! O bom-humor e a leveza delas depende sempre de um entorno florido, repleto de sorrisos amarelos, pavimentado de gentilezasinhas protocolares e fúteis; caso contrário, o castelo de cartas que é seu estado de espírito desmorona!

“O caso é que tal sujeito só reclama, o tempo todo”. Duvido: o sujeito não reclama o tempo todo. Talvez tenha reclamado com mais frequência ultimamente porque nunca é ouvido, porque é ignorado. Quer livrar-se do queixoso? Experimente entrar no tema, no teor de suas queixas. Ouça, entenda e debata; faça-lhe perguntas — desenvolva com ele os tópicos em questão. Converse, em suma.

Talvez você não queira conversar com tal pessoa, claro. Bem, neste caso, o problema é outro: você não aprecia a companhia daquele indivíduo. Se for assim, seja honesto consigo mesmo: o problema não é a reclamação mas a companhia desagradável. Ora, esquive-se! É seu direito. Fingir atenção é um mau hábito, não se imponha tal coisa. Só não diga que o problema são os queixumes em si; não são.

No mais, honestamente, o que você prefere? Um ambiente de bom humor geral claramente falso? Um ambiente no qual evita-se qualquer assunto espinhoso, sob pena de adentrar questões mais profundas, opiniões mais íntimas?

Tal ambiente teatral é opressivo, no fim das contas. Se fôssemos moralmente saudáveis, fugiríamos dessa profilaxia opinativa, que nada mais é que censura social auto-imposta.

Reclamões ocasionais pelo menos são verdadeiros em sua atitude. Desconfie, isto sim, de gente boazinha que só sabe distribuir sorrisos simpaticamente e jamais reclama: tem coisa errada aí.

O garoto
e a loja hostil

QUANDO GAROTO, gostava de passear pelo centro de São Paulo e explorar sozinho lugares que antes só frequentava com meu pai. Digo sozinho porque acabava de conquistar o direito de andar pela cidade desacompanhado, de modo que aqueles passeios tinham um significado todo especial para mim. Foi uma conquista.

Um dos lugares nos quais passeava era pelas lojas de instrumentos musicais. O ano era 1994, e naquela época eu estudava teclado. Sonhava adquirir um daqueles instrumentos para mim: via as vitrines, vários deles expostos. As lojas permitiam que se experimentassem, que se tocassem os teclados; ao menos, foi o que vi quando passei por lá: vendedores ligavam os instrumentos e os clientes em potencial tocavam — ou pretendiam tocar — teclados e demais instrumentos musicais da loja.

Ao ver aquela cena, pensava algo como: “entendi… qualquer dia vou pedir ao vendedor que me deixe ligar um teclado destes para experimentar, ter a sensação de como é”. Caramba, eram instrumentos profissionais aqueles, bem diferentes do Casio velhinho e surrado que eu tocava na escolinha de música.

Havia uma loja em especial de que eu gostava bastante: uma revendedora oficial da Roland, marca de teclados profissionais os quais eu sonhava adquirir um dia, “quando crescesse”. No entanto, garoto, sabia que naquele momento comprar um Roland era algo fora do meu alcance. Meu pai também não tinha condições para tal, eu estava ciente disto, portanto nem tentava pedir.

Restava tomar coragem e falar ao vendedor que me deixasse experimentar um pouco: tarefa nada fácil para um garoto de 14 anos. Mas um dia, finalmente entrei na loja, tomei coragem e pedi ao vendedor: decerto ele não negaria, já que outros fregueses estavam ali, tocando e “degustando” os instrumentos e quase nenhum realmente comprava…

Então, respirei fundo e perguntei se poderia tocar um pouco o teclado objeto do meu desejo. Ele atendeu, sim; porém, muito a contragosto. Soltou um tedioso “tá, só um pouco, vai”, com muita má vontade, era visível. Eu, tímido, mal pude “sentir” o que era tocar aquele teclado. Queria tocar, misturar os sons, ver o que ele tinha de especial. Nada disso foi possível, porém; o vendedor logo me enxotou com um “chega, outro cliente quer ver”. Mentira, ninguém queria ver. Ou seja, para ele, eu não era cliente. Era um fedelho curioso, talvez, nada mais. Não entendi isto na hora: só depois, no ônibus de volta para casa, matutando, é que percebi que não era bem desejado ali.

No final de semana seguinte, voltei à loja. Outro vendedor, que provavelmente me observara na semana anterior, viu que eu observava a vitrine e perguntou de forma ríspida se compraria alguma coisa. Minha resposta foi “não”, obviamente; então, ele postou-se como uma sombra ao meu lado, meio que tacitamente afastando-me dali. Foi a gota d’água. Em minha resolução de menino, prometi a mim mesmo que, se algum dia juntasse um bom dinheiro compraria um teclado em qualquer loja, menos naquela.

Passaram-se algumas semanas. Visitei outras lojas depois disso, mas aquela específica, nunca mais. Naquela altura eu já trabalhava, estava no segundo ano de um emprego pelo qual recebia a exata importância de 208,68 URVs (lembre-se, era 1994). Na época, o salário representava até um dinheirinho bom para mim, embora não o suficiente para comprar um teclado mediano, quem diria profissional. Mas tinha um plano em mente: guardaria meu décimo-terceiro salário mais o salário do mês, depois mais um pouco do mês seguinte, e assim teria o suficiente para comprar um tecladinho, simples mesmo, só para praticar.

Contei meu projeto a meu pai. Apesar de não estarmos numa situação muito confortável, ele me disse que bastaria usar meu décimo-terceiro salário que o resto ele completaria. Eu mal podia acreditar. Naquele final de ano, teria finalmente meu teclado novinho.

Então, veio o grande dia: dei a minha parte do dinheiro a meu pai e ele completou o restante. Já tinha tudo em mente: o modelo do teclado, a loja, o preço. Era só pagar e levar, e foi o que aconteceu. O vendedor da loja atendeu meu pai super bem, naturalmente, apesar daqueles agrados forçados do tipo “e aí, garotão” dirigidos a mim. Tudo bem. Finalmente tive o que sempre quis. Para ser específico: naquele dia adquiri um Panasonic KZ250 com case original. A aquisição superou minhas expectativas, pois não era qualquer tecladinho, mas um lançamento direto do Japão.

Detalhe: a loja em que comprei não era aquela dos vendedores hostis. Era outra, ligeiramente mais amigável. E ela vendeu um teclado, para mim. Para o garoto pentelho.

De posse de meu Panasonic KZ250, deixei de frequentar lojas de instrumentos musicais por um bom tempo. Esqueci aquela loja hostil e nem passei mais em frente à ela, por meses.

Num dia, porém, eis que passo por aquela rua e me dá um estalo: vou lá naquela loja, de propósito, para ver se aqueles vendedores tinham tomado jeito ou continuavam enxotando clientes em potencial.

Só que daquela vez não foi possível fazer o teste: assim que bati os olhos na fachada, reparei que a loja havia fechado as portas. Talvez não devesse, mas não nego: ao ver aquela cena, sorri de satisfação.

Do preconceito

ACUSAR alguém de ser preconceituoso confere ao acusador, no mesmo instante em que acusa, a condição de juiz da moral alheia. Ao acusar isto é preconceito!, o acusador autoriza-se no mesmo instante a praticar o seu próprio preconceito contra o acusado, enquanto fica isento de receber a mesma acusação de volta.

Quando aponta preconceitos alheios, o acusador estabelece instantaneamente uma hierarquia moral na qual ele está acima e o outro, submetido a seu julgamento, está abaixo. Tal hierarquia moral dá ao acusador uma primazia desde a qual ninguém poderá julgá-lo: afinal de contas, réus julgarem juízes como forma de retaliação ao julgamento que recebem não tem nenhum cabimento.

Ao acusar, o acusador entende por preconceito aquilo que seu senso comum, sua “lei” moral particular determina. Esta “lei” do senso comum — obscura e amorfa, definida por valores verbais e não-verbais recebidos desde fora e internalizado no próprio acusador — variará de acordo com o humor, o sentimento ou a conveniência que ele carregue em si: ao ser acusado, o “réu” tachado de preconceituoso é julgado num tribunal de exceção — o tribunal do discurso moralizante do acusador de preconceitos.

Se existem preconceitos e preconceituosos — e de fato os há, sem dúvida — ninguém deveria possuir a prerrogativa de apontá-los, se fosse honesto com sua própria consciência; pois no mesmo ato de acusar um preconceito alheio, o acusador pratica ele mesmo preconceito contra o acusado. Logo, preconceituoso será antes de tudo aquele que denuncia o preconceito alheio, necessariamente.

Até aqui, refiro-me à esfera particular da sociedade, na qual vigem códigos não-escritos de adequação social, convenções transmitidas de pessoa a pessoa. Entretanto, se transpormos estas regras sociais para as esferas legislativa e jurídica, todo um corpo de leis e códigos podem ser estabelecidos a fim de se definir o que seja ou não preconceito, tipificando crimes e determinando punições. E é precisamente o que se pretende hoje em dia nos parlamentos mundo afora, não por iniciativa da sociedade civil, de pessoas comuns, mas por pressão de grupos e ativistas representantes de ninguém exceto de si próprios, e das entidades que representam.

Mas eis que surge um problema: se preconceito é no fundo uma opinião, cometerá este preconceituoso um crime de opinião? Opiniões — sem comprovado prejuízo moral de outrem, o que caraterizaria prejuízo efetivo e verificável já preconizado em lei — poderiam ser considerados crimes? Meras opiniões, crimes? E quanto à liberdade de expressão, um dos pilares da democracia?

O enquadramento de determinadas opiniões ou posturas na categoria de preconceito torna o hipotético ente definidor de preconceitos — digamos assim, seja pessoa ou instituição, pouco importa — um ser divino e incontestável, quando arroga ser o definidor máximo de certos e errados dos cidadãos. Mas como tal ente definidor de preconceitos se faria obedecer e respeitar?

Para tanto seria necessário implantar todo um novo imperativo categórico na mentalidade coletiva, um código moral imperceptível arraigado na alma. E como implantar tal imperativo categórico? Quanto tempo leva tal operação e em quê implica sua efetividade? Lobotomia? Uma nova religião civilizatória? Mas como produzir isto? Para fazer sua lei moral ser totalmente internalizada, será necessário que o ente definidor de preconceitos não admita divergências de nenhuma ordem durante a implantação, sob as penas de perder a eficácia, esvaziar a autoridade e assim não conseguir mais submeter ninguém àquela “verdade” que detém e pretende tornar funcional.

Levando em conta que para um imperativo categórico social tornar-se senso comum demora séculos, a tarefa de implementação urgente deverá ser necessariamente artificial. Tal imperativo categórico não existirá se não for imposto verticalmente, psicologicamente, na formação dos cidadãos desde a tenra infância; contudo, não imagino maior violência moral. Se isto não for a própria definição de tirania e totalitarismo, não sei mais o que é.

Entretanto, esta implementação induzida e forçada de códigos morais artificiais — que não penetram o senso comum como imperativo categórico, mas aparecem desde fora por entes não identificados, algo como um chefe invisível a quem todos devem obedecer — nos é familiar. Sim, tudo isto acontece neste exato instante, em que supostamente vivemos numa democracia e acreditamos ser cidadãos livres. Novos imperativos categóricos são criados todos os dias a fim de aprisionar-nos a mente, tolher nossos comportamentos: somos uma pessoa dentro das nossas mentes e em nossos círculos mais íntimos, talvez nem mesmo neles; porém, na convivência social, somos pressionados por todo um código moral externo, “alienígena” que não habita nosso coração. Somos vigiados por um enorme olho invisível, e o policiamento íntimo ou público aos supostos preconceitos talvez seja a maior evidência desta vigilância, cujos controladores desconhecemos completamente.

O rebanho
cultural

NÃO EXISTE moda que brote espontaneamente: toda e qualquer moda é sempre criada por alguém, visando um determinado fim. Este, aliás, é o objetivo de todo modismo: abolir ou transformar certos valores vigentes e substitui-los por outros, conforme os interesses daqueles que conduzem — ou pretendem conduzir — a sociedade. Ao mencionar moda ou modismo, não refiro-me apenas à vestimenta, mas a toda cultura de massas, algo abrangente, que vai da estética corporal ao estilo arquitetônico das cidades, da música popular aos valores morais em geral.

Ao seguir modismos, as pessoas não o fazem apenas por gosto ou prazer, mas antes de tudo por uma espécie de disciplina imitativa do subconsciente: miméticas, elas “forçam” seu hábito aos ditames da moda que lhes chega ao conhecimento, e esta adoção lhes parece boa e adequada; afinal, “todos fazem o mesmo”.

O ser humano, parece, tem necessidade de inserção, de sentir-se encaixado no presente, daí porque faz-lhe sentido embarcar na última onda: essa atitude confere pertencimento, segurança mental e bem-estar aparente. Nada mais óbvio, é confortável nadar a favor da correnteza.

Tal se dá com o rebanho cultural: jovens na maioria, adolescentes ou adultos recentes, gente que busca marcar posição e afirmar-se na vida. Em geral, jovens acreditam que é preciso estar adaptado aos costumes em voga e eles se agarram a esta idéia sem nada filtrar, voluntariamente. Certos adultos também agem assim, em especial adultescentes, um recente fenômeno urbano.

Cientes da inclinação juvenil por “beber novidades”, a indústria cultural forja seus produtos culturais estrategicamente, de modo a introduzir na mentalidade coletiva toda uma série de novos costumes e modos de ser, a fim de induzir novos comportamentos, valores, pensamentos e opiniões na sociedade. Todo um imaginário substituto é moldado aos poucos nas novas gerações, por vezes rompendo o que não deveria romper e acarretando consequências desastrosas ao próprio indivíduo e à sociedade. Eis o trabalho do progressismo, ideologia a qual oculta, por trás da nomenclatura presunçosa, o projeto maléfico que tenciona realizar.

Todavia, tudo é recoberto por camadas de positividade e bons sentimentos, por estéticas atraentes, por high technology; e quem porventura se opõe a este novíssimo e estranho padrão de bom, belo e justo da modernidade, será considerado um sujeito louco, intolerante, reacionário, mau, entre outros adjetivos. Afinal, se o progressismo monopoliza para si o bem, qualquer vento contrário representará necessariamente o atraso e o obscurantismo, não é mesmo?

A palavra de ordem dos “inventores de modismos” é romper padrões. Por outro lado, eles não discutem a sério suas propostas, não permitem quaisquer exames à luz da realidade, nem aceitam comparar os efeitos dos novos comportamentos que impõem aos dos hábitos tradicionais, jamais; a tática é criar rupturas, divulgá-las maciçamente na mídia que lhes é subserviente e, assim, raptar as vontades, corações e mentes suscetíveis, a fim de plantar e espalhar as sementes do projeto. O resto corre por si.

Dá-se então o encontro da fome com a vontade de comer: as (nocivas) novidades criadas chegam ao rebanho cultural, que por sua vez está ávido por consumir novidades. Eis o modus operandi da engenharia social aplicado à cultura. A eficácia da operação se dá exatamente pela predisposição juvenil — incauta, cheia de si, resistente a admoestações — pronta a tratar acriticamente toda novidade como coisa boa e desejável.

A moldagem artificial da sociedade — fenômeno surgido no século XX, proporcionada pelo estudo da psicologia das massas — sempre teve nos jovens as suas cobaias e, não por acaso, as suas principais vítimas. O natural orgulho juvenil embota a percepção, a impetuosidade rebelde gira as rodas do moinho, e as mudanças projetadas acontecem. É um mecanismo formidável, e quem controlar as engrenagens do processo controlará o imaginário das nações; na menor das hipóteses, lhes farão um belo estrago, coisa de que os vigaristas intelectuais sempre souberam (imagino frankfurtianos dando risinhos entre os dentes neste momento, em meio às labaredas).

Entretanto, e quanto ao rebanho cultural? Ouvirá tais advertências? Pensará algo a respeito? Mudará a postura de algum modo? Infelizmente não, pois rebanhos não mudam por si mesmos. Se existir uma solução possível, há de ser esta: mudar os pastores que conduzem esses rebanhos.

Corra,
Elisabeth, corra

ELISABETH era uma mulher que corria na esteira da academia, mas sua vida não se resumia a isso. Elisabeth fazia muito mais. Era jovem, independente e solteira. E bonita, não exatamente deslumbrante, mas atraente. Elisabeth era esforçada, dedicada e — para usar seu adjetivo preferido — “focada”. Sonhava ter uma sólida carreira, tornar-se profissional de respeito, referência em sua área, talvez executiva. Trabalhava e estudava e malhava para isso. Pertencia a uma nova geração de mulher, cosmopolita e empoderada, que sabe o que quer da vida, bem ao contrário da mãe, das tias, da avó.

Durante a faculdade, estagiara num importante escritório de advocacia e após a graduação foi efetivada, ali mesmo, pelo que recebia uma razoável quantia mensal. Ambiciosa, Elisabeth torrava (“investia”, dizia) uma grana preta em cursos de reciclagem e especialização. Igualmente, gastava muito em roupas e apetrechos elegantes, pois o escritório era chique, tinha rígido dress code e a concorrência das colegas, embora tácita, era intensa.

Elisabeth gastava (“investia”, de novo) no cabelo e nas unhas, aos fins de semana, para chegar impecável na segunda-feira. Não frequentava salão chinfrim, mas os bacanas. Depois do pit stop de beleza, ia ao shopping center renovar o guarda-roupas. Incomodava-a muito repetir o look no escritório.

Fazia tudo isso em nome da carreira. O mercado de trabalho é exigente e ela não podia se acomodar. Entendia que todo aquele custo teria afinal uma compensação. Seu esforço não se limitava ao visual, porém. Malhava três vezes por semana, para manter a cinturinha na medida, as pernas torneadas, o bumbum ok, e para adequar-se fisicamente à indumentária: horrorizava-lhe a possibilidade de engordar e aumentar o número do manequim. Aumento, talvez, somente no número do sutiã, via silicone — estudava a hipótese, mas não estava bem certa se faria a cirurgia. Por onde andava, Elisabeth transmitia uma elegante sensualidade endereçada ao éter, coisa que lhe conferia sensação de poder e “agregava valor”, conforme imaginava.

A sonhada promoção exigia sacrifícios: proficiência em idiomas, oratória em público, postura, aparência, linguagem corporal. Cada reunião demandava estudadas performances. Contudo, algo ainda lhe faltava: um carro. Perdia tempo e paciência com táxis, metrô, Uber, sem contar eventuais caronas — coisa chata, desagradável. Adquiriu então o lançamento que passava no comercial da novela, financiado, na versão intermediária confort line com pintura perolizada. O carro não servia apenas para trabalhar: cumpria o papel de não fazer feio no estacionamento da empresa.

Claro que a vida de Elisabeth não se resumia a trabalhar. Viajava nas férias, para fugir da rotina. Mochileira, abrigava-se em hostels pelos EUA e Europa e postava o diário de viagem no Instagram, no modo público, com legendas em inglês e muitas hashtags. Recebia curtidas e comentários do pessoal do escritório e depois, na volta, incluía as experiências no currículo e no perfil do LinkedIn, no item experiências e interesses — ser viajada era quesito que também “agregava valor” à carreira, afinal de contas.

No alto de seus trinta e dois anos, Elisabeth buscava evoluir. Se bem que a desejada promoção, mesmo, não vinha, o que às vezes lhe desanimava. Mas superava, esperançosa: acreditava na meritocracia, lembrava-se de que ainda era jovem e estava apenas no começo, havia muito pela frente. O desejado namoro firme viria algum dia, decerto, e ter filho estava no horizonte. Às vezes, temia a janela biológica dos trinta: preocupava-se, naturalmente. No entanto, a medicina moderna estava aí, então nada de pensar muito nisso: o lema era “focar na carreira”, e era o que ela fazia.

Fracassar, para Elisabeth, seria viver como a mãe: ser do lar, dona de casa. A vida da mãe foi só cuidar dos filhos e praticar o arcaico tripé lavar, passar e cozinhar. O pouco lazer da mãe resumia-se em ir à chácara da família nos feriados e finais de ano, para descansar um pouco. “Vidinha estúpida”, que Elisabeth repelia de si: ela não seria daquele jeito, ah, não seria mesmo.

Estava determinada a ser diferente. Verdade, não tinha ainda família, casa própria, chácara e tal e coisa: faltavam-lhe realizações. Por outro lado, tinha um currículo invejável, intercâmbios e diplomas, ótimo networking, roupas e bolsas e sapatos espetaculares, recentíssimos e bem decididos 300ml em cada mama, um bonito carro zero e muito potencial.

No entanto, sem perceber, Elisabeth esquecia de si, do futuro, do legado e do significado. Vez ou outra lhe surgia o assunto casamento. Marido, vê se pode, quem precisa deles? Obedecer e servir, feito a mãe? Nem morta. Elisabeth tinha um patrão, no entanto, a quem ela fazia tudo aquilo docilmente, sem se dar conta.

E daí? Nada de mais. Elisabeth era uma mulher decidida e independente que corria na esteira da academia: corria e corria, percorria milhares de quilômetros sem sair do lugar. Na esteira da vida ela também corria, rumo ao sonhado futuro, à sonhada carreira, ou quem sabe a lugar nenhum.

O missionário
e a tribo

UM MISSIONÁRIO chegou a uma tribo distante, quase isolada e que não constava no mapa. Instalou sua cabana perto dali e passou a observar os nativos, aprendendo sua língua e costumes, para enfim catequizá-los de uma maneira que eles pudessem entender, de acordo com sua cultura.

Todos os dias o missionário, com a bênção do pajé (ou o seu equivalente), observava os costumes da tribo: como era sua rotina, como caçavam, como pescavam, o quê comiam.

E nessas observações o missionário, a cada coisa que aprendia, tomava notas a fim de registrar o modo de viver dos nativos. Anotava minuciosamente, registrava cada detalhe para assim poder entendê-los e quem sabe ajudá-los numa dificuldade.

Assim permaneceu por aproximadamente seis meses. Após esse período, o missionário já se comunicava razoavelmente com a tribo, particularmente com o chefe, que lhe explicava as tradições do seu povo quando o missionário lhe perguntava.

Um hábito tribal que o missionário observou e que lhe deu uma baita dor de cabeça foi o costume que os nativos tinham de comer certa raiz com a qual preparavam um ensopado, e que, diziam, dava-lhes força e os revigorava para as tarefas. A tal raiz desconhecida compunha a dieta deles desde sempre, porém, o missionário notou que esta causava um terrível efeito colateral: mulheres grávidas que dela experimentavam sofriam aborto espontâneo. Da mesma forma, quando o ensopado daquela raiz era servida a crianças pequenas, muitas morriam após febres terríveis.

A raiz só podia ser venenosa, concluiu o missionário. Ele enviou amostras para laboratórios no seu país de origem, e depois de longos dois meses o laudo trazia em detalhes todos os componentes da planta. De fato continha substâncias altamente tóxicas, que se por um lado revigorava aos adultos, por outro lado podia ser mortal a bebês em gestação e a crianças pequenas que não tivessem resistência física para consumir a planta.

Ciente dos dados, o missionário procurou o pajé para informar-lhe os perigos que a sua tribo corria. Fez-lhe muitas advertências, explicou da forma mais didática possível o mal que acometia a tribo ao consumir o ensopado. O pajé a princípio fez pouco caso, disse que as crianças morriam por vontade dos deuses e que não havia com que se preocupar.

Após a insistência incansável do missionário, que tratava a situação uma questão de vida ou morte, o pajé contrariado e prestes a proibir a entrada do missionário na tribo, lhe disse o que havia, na sua língua:

— Homem branco dizer que raiz é raiz má. Homem branco cansar pajé dia e noite com reclamação da planta. Pajé irritado com homem branco, tribo irritada também, reclama com pajé.

— O senhor não entende — respondeu o missionário — já lhe expliquei que a raiz tem veneno mortal. Pode acabar com o futuro da tribo porque mata muitas crianças. O senhor não se preocupa?

— Pajé não ser mau, pajé não ser burro. Pajé entender homem branco. Homem branco dizer “raiz ruim, raiz venenosa” mas não mostra raiz boa pra tribo de pajé. Então tribo ainda comer raiz venenosa mas homem branco não mostra raiz boa pra comer.

Moral da história: não adianta somente apontar o ruim, é preciso oferecer opção melhor.