volta

desista, ele disse:
desista de poemas.

crédulo e dócil
à autoridade da mera voz grave
e unanimemente respeitada
acreditei
e parei.

.   .   .

esterilidade e silêncio.

.   .   .

tudo graças a ele,
autoridade da mera voz grave
cujo nome figurava no topo da hierarquia.

obedeci: não sei quê me deu.
fiz-me nulo.
calei.
contudo, não recebi agradecimento de nenhuma espécie
pela deferência à ordem estabelecida.

depois, eu vi.
não sei como, vi:
entendi que parar não devia:
retomei.

a mera voz grave, já sem autoridade, posto que ignorada
é despreocupadamente desobedecida,
a despeito do perigo iminente nunca concretizado,
e chutada prum canto qualquer, a hierarquia.

faço e farei poemas.
cala a voz má: não sei quê lhe deu.
já quanto a mim
constante e suave
renasce-me a força.

Literatura
é bobagem?

A MAIOR, a melhor e mais importante obra de literatura poderia ser considerada bobagem: qualquer um que vença as duas mil páginas de Guerra e Paz após o ponto final do último parágrafo poderia fazer cara de tédio, fechar o volume e suspirar:

— Quanta bobagem…

Mais: qualquer um conseguiria, sem dificuldade, ler um diálogo de Sócrates e bocejar:

— Quanta encheção de linguiça, quanta besteira…

Declare que algo é bobagem, e ela o será — ao menos para a pessoa em questão.

Se uma grande obra literária, um clássico, fosse considerada bobagem na época da publicação, a obra nem chegaria ao nosso conhecimento. Queimariam-na lá mesmo naquele século e nem sonharíamos que um dia ela existiu.

De que maneira uma obra adquire importância ao longo do tempo? Depende de aprovação instantânea no tempo da publicação? Como se constrói um consenso em torno da obra que a define inequivocamente como clássico?

Difícil responder algo além de vaguezas tipo “são clássicos pois tocam a humanidade de todas as épocas”. Porém, desconfio de duas coisas:

1. Se os chamados clássicos não chegassem ao nosso conhecimento com este mesmo rótulo, fama e recomendação, mas como coisa comum ou algo pior, a maioria encararia assim mesmo aquelas obras: descartáveis, desprezíveis, indignas de atenção.

2. Se obras da literatura comercial fossem propagandeadas como clássicos, certamente como clássicos seriam tratados.

Quem se daria ao trabalho de examinar o valor de um Tolstói, se fosse tachado de romancistazinho pretensioso? E se Dostoiévski fosse considerado um lunático de confissões banais, com aquele psicologismo amador? E se dissessem que o texto de Thomas Mann se perdia num ramerrão enrolatório, “porque não diz logo o que quer dizer?” E se acusassem Goethe de moralista, que aquelas suas maximazinhas bem poderiam aplicar-se a ele mesmo, “quem ele pensa que é?”

“E daí, aonde você quer chegar? Quer dizer que as obras clássicas da Grande Literatura Universal não possuem realmente o valor que lhe dão?” Claro, claro que possuem, quem sou eu para negar uma coisa dessas? No entanto, convenhamos, suas famas (merecidas e indiscutíveis) as precedem quando chegam ao nosso conhecimento; não fosse assim, ninguém lhes daria a menor bola. Este é o ponto.

É perfeitamente possível deduzir que:

a) Ao longo da história, obras que seriam consideradas clássicas se perderam. Seja por guerras ou cataclismos (a biblioteca de Alexandria ilustra bem isso), seja porque seus autores, talvez geniais, foram sumariamente desprezados ou ignorados em seus dias.

b) Obras incontestavelmente clássicas hoje em dia foram massacradas pela crítica de ilustres imbecis, que ditavam o válido e o não válido naquelas dias. Estas obras injustiçadas foram resgatadas tempos depois, por um verdadeiro milagre. Por outro lado, milagres assim não contemplaram a todos que o mereciam e muitos tesouros em potencial se perderam.

Diante disso, esboço um corolário: obras se tornam clássicas não só pelo seu valor intrínseco, mas também considerados pela montanha consensual que se ergue em torno delas.

A nova mania

CHAME de implicância se quiser, mas acabo de detectar uma nova mania: o tom professoral. Muitos parecem dar aula ao falar com os outros, com didatismo e autoridade de especialista. Opiniões, impressões, o bom e velho achismo? Que nada: o negócio agora é ser peremptório. É ensinar. Sintoma disso é o uso disseminado da interjeição “entendeu?” no fim das frases. Ninguém mais pergunta “concorda?”, “não é?”, “o que acha?” Não: querem certificar-se de que você “entendeu”. Sim, professores, entendi.

Sinal dos tempos. Quanto mais desorientado anda o país, mais entendedores surgem do nada, do thin air. Outro dia mesmo, no supermercado (supermercados são excelentes locais de observação comportamental e sociológica), pois bem, estava no corredor de vinhos, escolhendo um exemplar baratinho mas não muito sem-vergonha, quando um cidadão com uma garrafa em mãos sentencia a outro que o acompanhava: “você não tem experiência” — plaf! imagino o golpe da palmatória — “você precisa sentir o sabor na língua: no começo parece gosto disso, no final vira sabor daquilo etc.” Caramba, um sommelier ali ao lado. E o distinto modulava o tom estrategicamente para que outros o ouvissem, ou para o único outro presente — no caso, eu mesmo. Saí antes que ele entrasse no quesito harmonizações.

Outra vez, no metrô (outro lugar excepcional para observar tipos humanos), sento-me ao lado de uma mulher. Fala alto ao celular (incrível, só meu celular não funciona no metrô. A inconveniência deve potencializar o sinal). “…sabe, é que ele não tem visão de negócio! É! Ele não tem visão de negócio. Sabe nada de estoque, de fornecedor, pagar funcionário… não é assim, não! Precisa visão de negócio!” Puxa, ela gosta dessa expressão. Seria uma megaempresária disfarçada? Digo, um tanto encabulado, que apesar de ter cursado administração e marketing, lido Drucker e Kotler, ainda não tive visão de negócio. Vergonha. Devia aprender com a mulher do metrô.

Pensa que acabou? Passava numa calçada desses espigões corporativos todo envidraçados (eu sempre imagino esse troço levantando vôo rumo ao espaço, deixando o solo com toneladas de barro e grama caindo aos blocos) e lá, numa rodinha, um garoto com jeito de estagiário, discorrendo sobre preferência política, presumo, crava: “sou capitalista liberal!” Uau! Estava ao lado de um jovem dono dos meios de produção. Quase volto e peço uma grana pra ele. Decerto não me negaria, pois apesar de capitalista, era liberal.

A última, prometo. Em frente a uma padaria chique, rapaz e moça (ambos muito elegantes) conversam. O rapaz fala à moça que não come pão “porque o carboidrato não é bem metabolizado pelo corpo”. Deus do céu, isso é grave. Em toda minha vida nunca vi maldade num pãozinho quente. Como o rapaz descobriu isso? Vai saber. Pessoalmente, acho uma calúnia ao carboidrato que nem estava ali pra se defender.

Bom, são amostras do “professorismo” atual. “Ah, mas e quanto a você?” — perguntaria um cricri. “Vai dizer que nunca falou nada em tom didático, professoral, também?”

Talvez sim, pode ser. No entanto, que eu perceba, em noventa e nove por cento do tempo fico quietinho da Silva, sabe? (literiariamente não conta, o meio é a mensagem e tal). Por outro lado, se alguém me “ensina” algo, logo concordo, pois é a melhor forma de não prolongar uma conversa chata.

O caso é que não sei lá muuuita coisa, só de algo aqui e ali. E, pasmem, por incrível que pareça nunca ninguém me pergunta nada, ninguém sequer beberica da minha parca sapiência! Claro que estão perdendo (sinta a modéstia), mas fico na minha. Fazer o quê? Enquanto isso, continuo lendo meus livrinhos, escrevendo umas bobagenzinhas por aí. Mas nada de sair dando aula, porque pelo jeito, professor no Brasil é o que não falta.

*Ilustração: Matt Cunningham

A Diversidade
e eu

ESTOU eu no metrô, quando de repente senta (despenca) ao meu lado a Diversidade. Distraído com um livro velhinho à mão, levo um susto, mas logo me recomponho. A Diversidade começa a remexer na bolsa, nervosamente. Abre zíper, fecha zíper, mexe, remexe. E minha concentração vai para o espaço. A leitura estava tão boa… pô, logo ao meu lado?

Não teve jeito: tive de reparar na Diversidade. Disfarçando, evidentemente. Era jovem, franzino (franzina? franzinx?), tinha uma mecha azul no alto da cabeleira e espinhas secadas recentemente, vejo de reflexo. Após os trabalhos na bolsa, retira o smartphone, cruza, descruza e cruza novamente as pernas, balançando molengamente a perna apoiada. Parece agitada.

Bem, e daí? — penso. Volto ao livro. Não quero que a Diversidade perceba algum incômodo da minha parte, se exaspere e exploda. Diversidades são muito irritáveis. Só que a leitura não fluía. Daí, olhando as páginas sem lê-las, pus-me a matutar, tenho essa mania. Recordei-me de algo.

Quando eu era garoto, num bairrinho longe e desconhecido de São Paulo, era bem difícil ver alguma Diversidade. Havia meninas gordinhas, magrinhas, bonitinhas, feinhas. Havia meninos altos, baixos, gordos, magros, todos feios. Havia brancos, rosas, pretos, cafés-com-leite, amarelos, um vermelho. Todos mais ou menos parecidos no geral, e nenhuma Diversidade. Ou melhor, quase. Lembro-me de uma.

Foi na escola, na sétima série. A gente fazia educação física: meninos tinham aula num dia, meninas no outro. E este era nosso dia de aula.

O professor, que vinha para a escola numa Vespa vermelha e parecia o Chuck Norris, apesar de gente boa, não era de muita conversa. Fazia a chamada e mandava a gente correr: dez voltas em torno da quadra, para o aquecimento. Depois, polichinelo e dez flexões. E depois lançava a bola de capotão, formava dois times e organizava uma partida de futebol. E a gente jogava bola.

No meio da molecada havia uma Diversidade. Naquele tempo não a conhecíamos por esse termo, porque essa palavra não se aplicava a pessoas, mas a itens num supermercado ou numa loja. A Diversidade da sala fazia aula com os meninos, com a gente, mas detestava jogar bola. Ia pro gol, que é o lugar natural de quem detesta porém é obrigado a jogar, conforme a lei da molecada. Eu ficava de zagueiro, posição ingrata e oficial dos pernas de pau, de quem marca umas faltas, impede jogadas do adversário, faz uns lançamentos, mas não sabe driblar nem fazer gol. Era meu caso.

Então, num dia daqueles, vi a Diversidade da sala choramingando, enquanto o time atacava lá no lado adversário. Fungava baixinho. O que havia? Parecia uma tortura, sei lá. Não queria ficar na aula, era nítido. Reparei naquilo e me solidarizei intimamente com a Diversidade, embora não tivéssemos papo. Mas entendia um pouco, acho, porque eu também nunca fui muito fã de futebol, nem era nenhum craque. Eu sonhava em ser o Zico, mas sempre era o penúltimo a ser escolhido para o time. A Diversidade ficava por último (“tá bom, vem você, vai…”).

Da minha parte, eu abstraía, me aguentava e jogava. Fazia o que tinha de fazer. Era esse o código dos meninos. Meninos seguem os códigos, fazem o que têm de fazer e se aguentam firmes. Mas para a Diversidade era difícil.

Um dia, no final do bimestre, o professor realizou um campeonato interclasses, misturando meninos e meninas. Os garotos adoraram o evento: meninas de shortinho, saiazinhas drapeadas etc. A Diversidade lá da sala também gostou, mas entrou no time de vôlei das meninas. Elas, que nos olhavam com desprezo como se fôssemos mendigos leprosos, nem ligavam de jogar perto da Diversidade, de shortinhos e tudo. Ao contrário, riam, davam-se muito bem.

Nunca nenhum professor nos mandou respeitar a Diversidade. Também, nem precisava: ela tinha lá a turminha dela, nós a nossa, e a vida seguia. Faz tempo que deixei a escola, mas ouço dizer que professores hoje passam oitenta por cento do tempo em sala mandando respeitar a Diversidade e vinte por cento ensinando (mal) o bê-a-bá. Acho que é verdade, porque a garotada hoje em dia sabe bem o que é Diversidade, mas não imagina o que seja um advérbio.

Enfim, eram outros tempos. Além daquela, na turma da escola, só se via Diversidade na televisão: no Bolinha, no Silvio Santos, no Viva o Gordo, no Chacrinha. Quando as assistia na TV, eu criança, pensava em quê? Em nada. Achava estranho, às vezes um pouco engraçado, e só.

Chega de matutar, afinal. Minha estação se aproxima. Volto a atenção para a Diversidade aqui ao lado. Já perdi a concentração da leitura mesmo, então deixa pra lá.

Caramba, a Diversidade aqui se agita miudinho, meio serpenteando no próprio eixo. Me irrita um pouco. Digita qualquer coisa no celular, põe a mão à boca e dá um risinho mudo. Deve estar boa a conversa. Como deve viver? Será feliz?

Imagino-me puxando assunto com a Diversidade. Porém nem tento, sou ruim de papo. E outra, vai que eu fale alguma coisa que ofenda, vai que a Diversidade arme um escândalo aqui e eu vá parar na home do UOL? Deus me livre de confusão.

Se fosse antigamente, na escola, no tempo daquela outra Diversidade que não jogava bola, talvez pudesse falar alguma coisa, qualquer coisa. Era mais fácil. Mas com essas Diversidades de hoje em dia, melhor falar nada. Só calar, fingir normalidade, não olhar muito… anular-se, em suma. Não é esse o código vigente? Meninos seguem os códigos, fazem o que têm de fazer e se aguentam firmes.

*Ilustração: Matt Cunningham

pauliceia gris

— dezesseis graus lá fora:

céu nublado em São Paulo;
adoro nublado em São Paulo.

cinza-morte do asfalto, rejeito;
desprezo o bege-tédio das casas.

mas, pauliceia, teu celeste gris,
mescla pastel, carvão e giz, amo:

teu fundo neutro perfeito acentua
       as cores das moças
       o verdor das árvores
       multicor dos jardins.

noto monumentos!
por breve momento,
há beleza em São Paulo.

esqueço de te odiar,
se observo, atento
teu céu cinzento, São Paulo
e o bonito que ele faz mostrar.

O cínico

É CONFORTÁVEL ser cínico, à primeira vista. O cínico olha para uma pessoa, situação ou idéia, e lança sobre elas sua suspicácia corrosiva, sempre pronto a enxergar malignidades ocultas no objeto de seu cinismo, malignidades as quais, imagina, os demais não notaram.

O cínico sente prazer na insinuação maliciosa. Atribui dolo a qualquer um, exceto a si mesmo: se houver qualquer hipótese de erro alheio, ainda que remota ou não comprovada, o cínico não titubeia: delirante, aponta mil maldades, na máxima extensão possível, envolvendo seu acusado num poço de sujeira imaginária. Para o cínico, erro não é acidente, não pode ser; é sempre algo deliberado e proposital.

Antes de emitir suas sentenças, o cínico não dá-se o trabalho de examinar caso a caso, conhecer as circunstâncias e as particularidades, fazer distinções entre coisa e coisa, pesar atenuantes, considerar contradições e aceitar que, para compor a narrativa que formula, podem faltar dados fundamentais. Caso dados faltantes apareçam, é possível que a tese do cínico evapore-se, se esfarele completamente, como sopro num punhado de farinha. Por isso, o mais rápido possível o cínico constrói uma montanha de calúnias, associações comprometedoras, insinuações levianas e irresponsáveis, de modo que o acusado, mesmo se comprovar sua inocência depois, não possa recuperar a reputação prejudicada.

Se, à luz dos fatos, a narrativa falhar por completo, o recurso do cínico será pinçar do ocorrido aquilo que ele pretensamente alertara. Além de apelar ao sarcasmo — a vingança dos impotentes e ressentidos. Usará o sarcasmo, nunca a ironia: esta é fina arte, recurso superior utilizado por quem, sereno, domina as impressões sutis e brinca com elas; o sarcasmo, ao contrário, oculta um sentimento mordaz de raiva ou amargura por baixo do tom satírico.

Cinismo é o efeito colateral das expectativas frustradas, do desapontamento com pessoas e situações. Quando algo que se esperava, ingenuamente e de boa vontade, não se concretiza ou se transforma para pior, cria um ranço no indivíduo que o leva à malícia ostensiva. É um mecanismo de defesa. Dá à pessoa a sensação de agora estar no controle de suas emoções: basta despejar hipotéticas maldades aqui e acolá, e pronto. Constrói-se uma fortaleza nas muralhas do coração, como nos castelos medievais, e um largo fosso pantanoso ao redor do castelo. O fosso pantanoso é o cinismo.

A angústia do cínico é que ele teme perder o sentimento ferido, a coisa que mais valoriza. Vive num estado permanente de desconfiança. Não esquece esperanças não atendidas, nem fatos negativos que desencadearam o problema. O cínico não perdoa a si próprio por ter sido ludibriado. Tem raiva de si por ter sido ingênuo, feito de bobo ou passado para trás. Ou, ainda, fere-o a humilhação de ter sofrido um vexame — como se só ele no mundo passasse por vexames. Se abandonasse a lembrança dolorida e simplesmente transformasse a experiência em aprendizado, poderia fortalecer-se.

Por trás do cinismo, há uma personalidade perfeccionista — quem sabe demasiadamente cobrada na infância — e que aprendeu a cobrar-se muito, também. O cínico imagina que todos os outros devem se portar da mesma maneira que ele: se renega um prazer a si próprio, detesta que outro se dê este mesmo prazer; se faz sacrifícios para alcançar um objetivo, não admite que outro possa alcançar esse objetivo sem aquele mesmo sacrifício; se participa de um doloroso ou concorrido ritual de iniciação para fazer parte de um grupo, requer o mesmo ritual a outros, e assim por diante.

A acidez e a mordacidade do cínico, se constantes, fará mal aos demais. Se bem que o cínico nunca se entende por tal; imagina-se alguém sábio, perspicaz, com discernimento agudo das personalidades e intenções. As injustiças do cotidiano parecem confirmar suas suspeições insistentes. Ele não é capaz de perceber bondade ao redor, exceto em idéias remotas, ou em fatos e figuras idealizadas do passado. Para ele, nada no presente jamais será verdadeiro, sincero e desinteressado. E esta sensação, a da inexistência da bondade, faz do cínico alguém egocêntrico, amargo e infeliz. Contudo, ele pode disfarçar a tristeza com tiradas de humor ferino que eventualmente divirtam as pessoas em torno, que o perceberão como um sujeito irreverente ou falastrão.

Entretanto, o cínico não é incurável. Está num estado intermediário entre a frustração passada e a realização futura. O cinismo é superado quando a experiência negativa, inerente à existência, é absorvida: quando conscientiza-se de que entre os extremos mal, de um lado, e o bem, de outro, há percalços inevitáveis na vida. Um pouco de cautela e ceticismo sempre é útil, obviamente. Mas no caso do cínico, baixar as defesas e as prevenções exageradas, rejeitar a malícia e notar a bondade, a beleza e a singeleza dos pequenos gestos pode ser reparador. Ingenuidade consciente é o remédio: faz brotar na alma a semente da magnanimidade, que é o extremo oposto do cinismo.

*Ilustração: Matt Cunningham

quase

corro, taco roupa, paro à margem:
fico, não pulo.

o lago imóvel me caçoa.
cato as peças, retroajo:
enxabido, humilhado.

faltou pouco, sempre falta:
casmurro, logo empaco.

vida besta, a vida-semi!
nunca tudo, nunca lá!
sempre prestes:
inconcluso, só empate.

e o lago riu de mim.
“ia pular, ah, devia!”
colo aqui, não reajo.

eu, covarde?
meio a meio.
tudo em parte:
sou um quase.

A integração
da personalidade

A META: alcançar, um pouco de cada vez, a integração da personalidade. Da roupa que uso ao trabalho que exerço, do alimento do corpo ao alimento do espírito: desejo alcançar uma unidade tal na vida que irradie bem-estar a mim mesmo e a quem conviver comigo.

Integração da personalidade. Ela ultrapassa o mero “saber o que quer”: fulano “sabe o que quer”. Não, não se trata disso, somente. É um centro existencial, uma segurança interior. É olhar o próprio rosto no espelho, no fundo dos olhos, e perceber no semblante, na voz, nos gestos, no porte, no expressar e em tudo o mais, por menor que seja, que tudo é gerado por um dínamo na alma chamado “eu”.

Saber distinguir cada importância, cada peso, cada proporção e lugar correspondente das coisas na vida. Ter consciência de quem já fui, clareza de quem sou e projetar quem pretendo ser. Posso ser influenciado — é inevitável. Posso me enganar — estou sujeito. Contudo, que eu possa voltar atrás caso o pé se desvie do melhor por alguma razão; que eu possa convergir novamente a meu núcleo puro e indivisível.

As condições do projeto são as mais desfavoráveis. Nosso país está programado para fragmentar a personalidade. É uma sociedade da microloucura não-diagnosticada. A infelicidade, por estas bandas, é quase uma lei da Física (quase). É uma sociedade na qual a malícia passa por bom-humor, a suspicácia passa por vigilância, o cinismo passa por inteligência. É a sociedade do quase, do semi-, do parece-mas-não-é, que esteriliza o viver e sufoca os sonhos. É a sociedade em que boa vontade é confundida com vaidade.

Aqui, é comum não se dar conta da adequada relação entre idade cronológica x idade mental x idade cultural. Aqui, é comum desconhecer a realidade imediata em que se vive, e porquê se vive daquela maneira e não de outra. Aqui, entope-se a cabeça com um turbilhão de informações que pouco ou nada nos diz respeito e despreza-se o conhecimento que é bom, útil e proveitoso. Aqui, nutre-se desejos equivocados por pura osmose, inverte-se prioridades confusamente, combate-se o inimigo errado, despreza-se a quem se devia valorizar e vice-versa, etc. etc.

A herança familiar nos marca, desde um passado remoto. O longínquo passado de todo brasileiro é marcado pela injustiça, pela brutalidade, pelo barbarismo, pelo erro. O triste destino de nossos antepassados nos atrai, com força, feito um buraco negro, a fim de terminarmos naqueles mesmos infortúnios (não por culpa deles, evidentemente; é algo espiritual). Todavia, não se trata de uma situação inexorável, um destino fatal. Vencer é possível.

A integração da personalidade abrange, além de nós mesmos, nossa família e nossos semelhantes. Lutar por ela vale a pena, dia após dia. Estar consciente é metade do caminho. Aos poucos, as coisas desarranjadas da vida podem se ajustar, calmamente, sem quimeras: decisões são tomadas com mais clareza, a força interior brota, a coragem retorna e a inteligência revigora.

A integração da personalidade conquista-se lentamente, sem artificialismos nem truques. Haverá percalços de toda sorte para atrapalhar, certamente. Pois que haja em nós o mais importante: fé em Deus: o combustível que move toda a engrenagem da vida.

*Ilustração: William-Adolphe Bouguereau – Monsieur M. (1850)

A literatura no
Brasil estomacal

ÀS VEZES me pergunto por que raios alguém ainda se aventuraria com literatura no Brasil. Sim, é uma pergunta clichê: tão clichê que talvez seja a terceira mais freqüente nas FLIPs da vida (as duas outras discorrem sobre política e sexo, imagino). Mas meu ponto é outro.

Literatura é item de primeira necessidade para alguém? Sim e não: para quem consome ou produz literatura, sim, sem dúvida; porém, para o Brasilzão big picture, para a massa, decididamente, não. É algo que nem lhe passa pela cabeça. E por quê?

Porque o Brasil é um país eminentemente estomacal, isto é, tem um povo cujas demandas são sempre básicas e urgentes, por exemplo, comida e moradia. Sempre haverá coisa mais importante do que literatura e, se ampliarmos o leque, do que cultura em geral — embora evite propositalmente o termo cultura, por ser facilmente confundido com diversões populares, com exposições inócuas ou performances nonsense de tipo Sesc (das quais ninguém gosta realmente, exceto quem as faz ou lucra com elas, mormente com subsídios estatais), entre outras banalidades.

Quando afirmo que o Brasil é estomacal, não significa exatamente que o povo esteja faminto, como o termo sugere. Se escrevesse em 1970, talvez. Felizmente, há anos o país não está assim, o que é uma boa notícia. Atualmente, quando favelas reivindicam wi-fi grátis ao invés de cestas básicas, o termo estomacal remete a outra coisa: significa que passamos por tantos períodos de escassez e carência, que nunca conseguimos nos sentir plenamente atendidos nas necessidades primárias, mesmo quando elas já foram razoavelmente supridas. Basta notar que o brasileiro pobre de hoje em dia é cada vez mais obeso e não um “palito” de tanto passar fome. Então, como se aplica o termo estomacal aos brasileiros?

Estomacal não mais designa uma mazela social, mas certo vício: a avidez popular para “devorar” itens de consumo que até num passado recente não lhe era acessível, fez com que seu gosto estacionasse na aquisição de itens de subsistência aliado a certo conforto. Compra-se cada vez mais comida, cada vez mais roupa e incrementa-se esse mesmo consumo, ciclicamente, em quantidades cada vez maiores, por vezes irracionais. Uma vez tendo a pança razoavelmente cheia, o brasileiro médio então parte para a segunda etapa: abrigar o sinal da Rede Globo numa tevê full hd postada à sala, soberanamente, como um troféu. Depois, vem o celular com internet, o tênis colorido com amortecimento e, finalmente, um carro e um canto qualquer onde se possa enfiá-lo. E a literatura…

Note que esses itens de consumo — tevê led, smartphone, carro — são caros, dependem de renda e crédito para se adquirir, mas estão vinculados à “pobreza” brasileira atual — especialmente nas grandes cidades — o que demonstra o quanto o pobre se sofisticou nos últimos anos. Em termos, ao menos. Por outro lado, é curioso (e lamentável) que, uma vez neste novo patamar socioeconômico, praticamente ninguém busque hábitos mais saudáveis e escandalosamente mais baratos, tal como a leitura. Sinal claro disso é o declínio das bancas de jornais e revistas, que entraram em decadência no país, justamente quando a base da pirâmide social mais prosperou, no período 2005-2012. Era de se esperar o extremo oposto: em qualquer país, o índice de leitura cresce conforme a prosperidade da população. Aqui, não. Situação ilógica, esquizofrênica.

Então, deparamo-nos com o problema cultural. Cantei essa bola para mim mesmo por volta de 2007, 2008, no auge do governo Lula. Puxando pela memória: naquele período, falava-se em nova classe média (a tal classe C). A figura emblemática na imprensa de esquerda era “pobres em aeroportos”, “pobres na faculdade” que o governo, nem um pouco demagogo, utilizava como case de sucesso. As concessionárias ofereciam carros financiados em 80 mensalidades, bastando acenar com um contracheque de mil reais para qualquer um tornar-se o feliz proprietário de um zero quilômetro.

Assistia a essa farra que o petismo vendia como revolução social, e observava que os brasileiros compravam, consumiam e engordavam, porém não estudavam, não se aprimoravam, não liam. Não melhoravam por dentro, como pessoa. Lula simbolizava essa “volta por cima dos iletrados”, sendo ele mesmo a antítese do presidente-doutor do mandato anterior, representando o “operário que chegou lá”, orgulhoso de jamais ter lido coisa alguma e símbolo maior do triunfo da ignorância.

Aquilo foi uma festa, um rega-bofe sem hora pra acabar. No meu canto, eu tinha a clara impressão de que aquilo era uma ilusão, só não sabia quando terminaria. Via a felicidade idiota, sem melhoria na mentalidade nacional. Lojas lotadas e livrarias vazias. Sebos e bibliotecas às traças, como sempre. Algo não acabaria bem.

Em 2010, quando Lula conseguiu enfiar a poste Dilma na presidência, foi o começo do fim. Foi desolador. Dilma era um signo, o significado de que íamos sem freio ladeira abaixo. Passados poucos anos, o petismo de Dilma tirou dos pobres com uma mão o que deu com a outra, feito o diabo. E enfim, a festa acabou.

O resto é conhecido: Copa em estádios superfaturados, lava-jato, petrolão, impeachment, crise político-econômica generalizada. Hoje, o Brasil, atônito, olha-se no espelho e vê como é feio. Cai em si. Volta à normal precariedade cotidiana.

Entretanto, este não é um manifesto à desesperança. Fato, o Brasilzão estomacal continua aí, devorando o quanto pode e se aguentando o quanto pode, em meio à crise. Continua inchando, engordando, mais pobre, mais violento, mais burro. As pessoas interessadas em ler ou fazer literatura mal lotam uma Kombi, como aliás sempre foi.

Mas eu insisto, por pura teimosia. Não sei quantos, dos duzentos e poucos milhões de habitantes do território, possam vir a se interessar pela arte literária — nova, antiga, contemporânea ou clássica, não importa. No entanto, sempre haverá aquela fiel meia dúzia.

Tempo houve no qual nem eu mesmo era um deles, e hoje estou aqui. Portanto, quem sabe? Para transformar um país, meia dúzia de pessoas com cabeça e coração aberto para a alta cultura basta. De uma única espiga pode nascer todo um milharal.