A vingança dos
barbudos gourmet

BARBUDOS, barbudos por todo lado. Para onde quer que se olhe, há um ser humano do (cambaleante) sexo masculino portando uma questionabilíssima barba. Está na moda. Diante disso, um amigo blasé me aconselharia a encarar o fenômeno como mero produto da moda, portanto algo passageiro. Sim, a moda é assim, eu sei. Essa onda passará também, cedo ou tarde.

Observo que há uma recente indústria em torno das barbas gourmet, como foi na década passada a onda das pet-shops. Ser barbudo não se trata mais de desleixo, de deixar os pêlos tomarem a cara e não fazer nada a respeito, muito pelo contrário. Proliferam-se os salões para barbudos com hidratantes para barbudos e apetrechos para barbudos. E visual apropriado para barbudos: muito couro curtido, ferragens em ouro velho, tecidos estonados de algodão cru, camisas flaneladas. Uma coisa meio lenhador urbano importada dos EUA. Rapazes saudosos de uma tradição nunca vivida mas aprendida na internet cultivam suas barbas por aí, e as tratam como se tivessem vida própria: levam-na para passear, é o novo pet. “E daí, há algo de errado nisso?” Não, nadinha. Mas não significa que esteja tudo muito certo.

A atual síndrome barbuda é uma espécie de vingança tácita do homem, este ser atualmente perdido na civilização. Provavelmente seja uma das últimas coisas que lhe restaram do ser macho pra valer, do algo que só homem pode fazer: porque sabemos o quanto no mundo atual é proibido haver alguma coisa só de homem, sem parecer viadagem ou machismo. Então, as barbas gourmet surgem como um ato de resistência. É uma resposta urgente à feminilização compulsória: para tornar o mundo mais amigável às mulheres (ué, não era?) todos devem ser um pouco mulher, deixar-se feminilizar, de alguma forma.

Esqueçam a propaganda ideológica: quem vive oprimido, de verdade, é o homem. Como aliás sempre foi. Quem morre mais? E a figura masculina apanha dia e noite porque ainda, repito, ainda não se tornou propriedade estatal, como a feminina. A mulher, concorde ou não, já é propriedade do consórcio Esquerdismo-ONU-ONGs-Universidades-Estado-Mídia (doravante chamado apenas de consórcio). Só que a pobrezinha não percebeu, a coisa toda foi muito sutil. Esse tal consórcio, mediante pressão exercida por instituições tentaculares e constante martelamento midiático, apoderou-se das mulheres e visa apartá-las dos homens, bani-las da presença masculina, isso de um lado; por outro lado, tenta desconstruir, desvirilizar o macho, pouco a pouco, a fim de apoderar-se dele também e instrumentalizá-lo algum dia.

O homem, porém, resiste como pode. Mas vive muito mal, nos dias que correm. É cachorro sem dono, pode chutar que ninguém liga. É um lutador escorraçado no ringue, com a cara repleta de hematomas, que se segura nas cordas recusando-se a cair. Agora que seria a hora ideal para finalmente desfrutar de tudo quanto seus antepassados deram sangue, músculos e cérebros para conquistar, ele vê as mulheres sorrateiramente pegarem tudo para elas. Ou melhor: vê o consórcio supracitado a desapropriá-los, desautorizá-los, e entregarem tudo às mulheres, ainda que elas nem peçam ou façam questão. É uma operação mefistofélica.

Elas no entanto não reclamam, entorpecidas pela lisonja fácil da ideologia — sempre de esquerda, declaradamente ou não — além de, por natureza, adorar ser cortejadas. Por séculos, as mulheres viram os homens matar e morrer nas guerras, inventar a civilização, descobrir a luz elétrica e seus confortos, desenvolver ciência e tecnologia, presenteá-las com a indústria da estética e da cosmética: depois que tudo ficou absolutamente simples, organizado, acessível, quando finalmente braços fortes deixaram de ser necessários — uma vez que para tudo basta apertar botões ou deslizar dedinhos numa tela — disseram que elas são as novas donas do mundo, elas gostaram da idéia e ai de quem der um pio contra.

Claro, diriam, “elas sempre dominaram o mundo, tolinho: a mão que balança o berço é a mão que domina o mundo”. Sim, é verdade, mas havia um equilíbrio, uma mínima cooperação mútua, não? Meu ponto é que, atualmente, o consórcio entra na parada, sequestra as mulheres e usam-nas de porrete contra os homens. É como se, na cama do casal, entre o homem e a mulher deitasse um rinoceronte. O rinoceronte é o consórcio.

Mas voltemos aos barbudos. A barba então foi o que sobrou de exclusivamente masculino para os caras. Embora, em avançado estado de desvirilização, eles se meteram em certas feminices, como cozinhar, também. De avental e tudo. Vide a concomitante onda dos chefs: então, você vê lenhadores que preferem cozinhar ao invés de rachar lenha.

Contudo, meditando no assunto, eis que algo me ocorre: a barba, ainda que gourmet, pode ser um contra-ataque masculino para recuperar o território perdido. É possível. De maneira que o barbudo-gourmetizado moderno, mesmo frequentando salões de beleza “pra macho” e mesmo cozinhando de avental, entre outras feminices, ainda pode nos dar uma pontinha de esperança.

Por que esperança? Porque a continuar assim, quem sabe se elas, enciumadas, retornem aos salões de beleza, redescobrindo o prazer de uma boa fofoca. Ou, incomodadas com a concorrência masculina, voltem a cozinhar, felizes e cantarolando. Ou larguem a mão “dessa porcaria de futebol”, atirando na cara dos homens o que diziam outrora, “são vinte e dois bobos correndo atrás duma bola”.

Pois continuem, rapazes de barba gourmet hidratada, continuem. Eu, eterno imberbe, pobre vítima das maciças propagandas da Gillette nos anos 80 e 90, só posso desejar-lhes sorte: em breve, poderemos ter nossas mulheres de volta. Te cuida, infame consórcio! Te cuida, ideologia picareta!

Picante

PRECONCEITO eu tenho, tu tens, nós temos, eles têm. Quem não tem, que atire a primeira pedra. E os maiores preconceituosos, veja só, são os acusadores do preconceito alheio — ok, provavelmente não tenham preconceitos oficiais, reconhecidos em cartório. Mas têm vários outros, seguramente.

O preconceito faz parte da natureza humana, como o cerume e a remela; assim como estas, são sinal de boa saúde e tem uma função, não existem à toa. São indesejáveis apenas por uma questão de higiene e etiqueta social.

Preconceito é uma proteção — talvez excessiva, talvez descabida. Seria uma prudência doente, diria assim. No entanto, ela pode ser útil, claro que pode: evitar certas coisas, certas pessoas, um local de má fama. Qual é o problema? O direito à autopreservação vem em primeiro lugar. Cumpre, talvez, fazer as devidas distinções conforme as circunstâncias.

O preconceito na vida é como pimenta na comida: não alimenta, mas dá um gostinho. O segredo é não abusar.

Estupefato

Fico estupefato
com esse homem tão lógico, de frieza geométrica
que traça planos na mesa enquanto o mundo arde

Fico estupefato
com o tipo que ostenta vitória material
e conseguiu melhorar na pior maneira de viver

Fico estupefato
com a vida-máquina pronta, artificialmente programada
enquanto ninguém se prepara para envelhecer

Fico estupefato
com a mulher que devora o presente como se fosse tudo
como se mil contatos lhe fossem úteis à hora do perigo

Fico estupefato
com o sofrimento besta das gentes, que não era pra ser
enquanto noutra parte dançam e brindam à desfaçatez

Fico estupefato
com a injustiça que destampa na cara quando ouso comparar
as situações disparatadas do cotidiano

Besteira isso de ficar estupefato, eu sei. Mas eu fico.

Arrependimento?

— “SÓ me arrependo do que não fiz.”

Invejo-lhe, meu caro soberbo. Eu me arrependo de tudo que faço. Na vida, se tem uma coisa que faço, é me arrepender. Há coisas de que 1. gostaria de ter feito melhor, ou 2. gostaria de não ter feito jamais.

Sou um arrependido incurável, confesso. Ou talvez seja apenas normal.

Inferior, medíocre,
superior

A ALMA inferior é incapaz de perceber a grandeza. Para ela, grandeza de espírito não existe, simplesmente. Não porque a negue: é algo que lhe escapa, não lhe ocorre, dada sua capacidade de apreensão diminuta e precária. O inferior vive para as necessidades mais básicas da sua corporalidade, num nível lamentavelmente rasteiro, que requer mais compaixão que censura.

A alma medíocre percebe a grandeza; porém, de modo confuso, sempre negativamente. A grandeza é uma sombra da qual tenta fugir. Teme render-se a ela: para o medíocre, tudo que se eleva é uma ameaça. Diante da superioridade, o medíocre precisa achatar, simplificar e reduzir aquilo que paira acima da estatura mediana de sua compreensão. Não ser exposto à superioridade representa segurança e alívio para o medíocre.

A alma superior ama e busca a grandeza em si e fora de si; quando a vê, reconhece-a e submete-se a ela. Surpreende-se ao encontrá-la, como quem acha um tesouro. Só aos grandes espíritos é dada a apreensão profunda do que é elevado, belo e eterno. A alma superior, sensível a toda grandeza, é capaz de admirá-la e de imitar seu exemplo, sem nenhum peso ou amarra que a impeça.

O homem
de gênio
e o talentoso

INÚMERAS injustiças afligem o mundo. Ponho minha lupa numa delas: há pessoas geniais vivendo abaixo do que merecem e talentos medianos vivendo acima do que merecem.

É incrível. Há pessoas dotadas de enorme potencial, inteligentes, sábias e capazes, mas seus resultados – aquilo que efetivamente obtém com sua alta capacidade – são parcos, modestos, diante de suas enormes possibilidades. Não existam pessoas totalmente desprovidas de talento. Todos tem algum dom, obviamente. Um desperdício.

E o outro tipo de pessoa? É aquele com algum talento, não brilhante. Gente razoável, regular, dão conta do recado e só. Poderia-se chamá-las medíocres, embora o termo já esteja um tanto saturado e seja usado para rebaixar, o que não é o caso aqui.

Entre os muito e pouco capazes ocorre uma situação curiosa. Normalmente, o muito talentoso não é compreendido pela maioria. É visto como excêntrico, diferente, estranho. Até reconhecem que há “algo ali” que não conseguem explicar ou entender profundamente e, por isso, tendem a isolá-lo. Esperam sua adesão a eles, sua “normalização”. No fundo, parecem temê-lo ou invejá-lo inconfessadamente e por precaução, não lhe abrem espaço: evita-se, assim, que o espaço concedido seja inteiramente tomado por ele e não sobre nada para mais ninguém “normal”.

O pouco talentoso não surpreende, não inova, não fede e não cheira. Considera um insulto ser superior. Ele se basta. Todavia, ele possui uma vantagem ao excelente: seu magnetismo pessoal. Ele atrai os semelhantes. É fácil constatar: observe os artistas e músicos da moda, os opinadores profissionais do momento, os líderes diversos: dão-lhes crédito, porque ouvi-los nunca é um perigo.

Mas evito generalizações. De fato, há pessoas altamente dotadas e igualmente admiradas. Se hoje Dom Quixote da Mancha é considerada uma obra brilhante e admirável, Cervantes também foi um escritor brilhante e admirável, sem dúvida: só não sei se ele foi considerado assim em seus dias. Temo que não.

O talentoso é combatido por muitos. É odiado pelo inimigo e desprezado pelo medíocre; é amado ou desperta paixões em alguns, arrebatando-os. É amor ou ódio, sem meio-termo. E quanto ao apenas razoável? Suas contradições, erros e idiossincrasias passam despercebidas ou são poupadas da crítica, como se os amigos, solidariamente, evitassem entristecê-lo apontando suas falhas. É querido ou ignorado sempre comedidamente.

Quanto ao número, os pouco talentosos são maioria. Obtém favores e até alcançam realizações, em muito facilitadas por outras pessoas que lhe servem gentilmente e sempre acima do que seu mérito pessoal reclama.

Do outro lado da balança está a minoria, os excelentes. Obtém alguns resultados também, mas abaixo do que lhes caberia e seria justo. Embora tenham o algo a mais, a chama misteriosa, as massas somente lhe notam tempos depois, talvez séculos. Afinal, eles sempre estão anos à frente de seu próprio tempo.

É uma situação curiosa. A sociedade humana parece empurrar os medíocres para a frente, dando-lhes espaço, atenção e privilégio e nos seus dias, eles se dão muito bem. Em contrapartida, o eterno e o perene está reservado somente aos gênios, aos excelentes. É deles o amanhã e as obras que as gerações vindouras considerarão de alto valor. Serão reverenciados e conhecer-lhes o nome será obrigação. Quanto aos medíocres, seus nomes serão simplesmente apagados e esquecidos.

Talvez esta seja uma lei do universo. Nunca saberemos.

Pós-modernidade
on the rocks

QUINTA-FEIRA, final de tarde. Faz frio. Entro no bar que acaba de abrir. Salão vazio, escuro: dia de pouco movimento, somente funcionários arrumando toalhas nas mesas. Sento-me ao fundo, num cantinho próximo à vidraça. Ouço o arrastar das cadeiras, aqui e ali. Barulho irritante.

Chamo o garçom. Ele vem de-va-gar em minha direção e me atende sem olhar nos olhos. Pela expressão, pareço incomodá-lo com minha presença, como se fosse um intruso ali. Vai ver cheguei na hora errada. Pode ser. Peço uma garrafa de pós-modernidade, com gelo no copo.

O rapaz traz a bebida. Não, não vou comer nada. Primeira dose. Sorvo a pós-modernidade, sinto a textura na língua, lentamente: não por qualquer ritual, nem porque a bebida custe muita coisa. É que gosto de apreciá-la sem pressa.

Esse bar é famoso por vender muita pós-modernidade para clientes notívagos, insones que aparecem tarde da noite. Quem os vê, não sabe se o que os desinibe é a bebida ou a própria conversa — frequentemente frenética, com frases entrecortadas — ou o cigarro, tabaco ou cannabis, que lhes desperta o frenesi. Foram alguns deles que me apresentaram a pós-modernidade, exatamente aqui, há exatos dois anos. Experimentei, gostei, e não parei mais.

Mas voltando ao presente. Eu, nesse bar que mal acaba de abrir, não sou o tipo costumeiro de freguês. Venho aqui de vez em quando, sou praticamente um estranho na casa, daí que os garçons não me dêem muita atenção. Passam esbarrando entre as mesas, como se eu nem estivesse aqui. Feito esses dois aqui ao lado, rapaz e moça, reclamando do patrão que ainda não chegou. Riem alto, atrapalham meu pensamento. Agora, falam de um certo cliente meio viado. Estão nem aí. Será que também falam de mim pelas costas?

Tudo bem. Penso no barato que a pós-modernidade me dá ao bebê-la. Olho pro copo, remexo o líquido… detalhe curioso, a pós-modernidade líquida. Sei lá, lembro daquele velhinho comuna dos livros, como é mesmo? Bauman. Alguma coisa Bauman. Os livros dele não têm sempre qualquer coisa líquida, líquida como adjetivo? Tsc, besteira. Que viagem… tá subindo isso aqui. Rapaz…

Uau. A pós-modernidade invade meus sentidos, aos poucos, ainda não o suficiente para me embriagar. Tô consciente. Mas já sinto o efeito. Meus membros relaxam um pouco. Minha mente embaralha e volta, as luzes giram lá fora, caleidoscópicas; as buzinas dos carros soam como notas musicais sem harmonia; cores contrastam, intensificam-se, misturam-se, gradativamente: me invade uma sensação de liberdade. Viro mais um copo. Ah…

Dá vontade de gritar. Qualquer coisa. Porra, de repente dá uma raiva súbita desse salão, desses garçons tudo arrumadinho, essa organização geométrica, acho tudo de um mau gosto aqui (menos aquela gostosa ali, caramba…). Sei lá, e se rolasse um caos aqui, uma baguncinha que seja? E se eu chutasse as cadeiras agora, puxasse as toalhas, quebrasse uns copos? Ia ser uma farra, puta história depois. Ih, olha lá o dono chegando, aquele careca alemão… pela cara, com certeza montou este lugar com aquela logiquinha burguesa típica de quem quer ficar rico. Agora, esse asseio profilático todo, porra, num bar! Deve ser pra agradar aquele bando de mauricinhos playboys e aquelas menininhas “de família” que gostam mesmo é de, eu sei bem do que elas gostam, aquele bando de…

Chegaram uns caras num SUV gordo, gigante. É o quê, aquilo? Range Rover. Cara, olha só… esses cabelinhos, puta merda. Vidinhas pequeno-burguesas, patéticas. Escravos do capital, seus otários, é isso que vocês são: trabalham igual uma mula prum ricaço e depois vêm aqui, com esses terninhos pra… tsc, foda-se. Não adianta, não sabem, sabem de porra nenhuma, não podem saber. Consumo, a vida é consumir, eles vivem pra isso. Babacas alienados. É tudo errado, tudo errado, sei lá. Merda. É… mas nem é culpa deles, é que… a questão é o sistema… isso… é o sistema que… é foda…

. . .

Última dose. Zerei a garrafa de pós-modernidade. Sobe rápido isso aqui, vou te falar. O barato passa rápido, também. Ah, mas foi bom, eu achei. Levanto me equilibrando, zonzo ainda. Pago a conta, já meio sem graça. Preciso mijar… começa uma dor de cabeça, latejante. O estômago embrulhando. Merda… pra quê vim beber aquele troço? Puta coisa sem sentido… quanta estupidez…

Considere o
caso consigo

QUANDO o garoto José contou a seus irmãos um sonho que tivera, eles, enciumados e revoltados com o que ouviram, logo conspiraram para vendê-lo como escravo no Egito. Está na Bíblia, em Gênesis.

Antes disso, quando o pai de José, Jacó, ouviu o filho relatar o sonho — de que toda sua família, pai, mãe e irmãos se ajoelhariam perante a ele algum dia, no futuro — ele estranhou a princípio, ficou contrariado; mas, diz a Bíblia, considerou o caso consigo.

Considerou o caso consigo. Chamo a atenção para essa expressão. Desde a primeira vez que a li, aí pelos meus onze ou doze anos, ela cravou em minha memória. Aos poucos, passei a nunca mais discordar nem concordar com nada de imediato, mesmo que soasse improvável ou absurdo à primeira vista (exceção, evidentemente, a tudo que causasse dano real comprovado pela experiência).

Não sei como, aquilo se internalizou, integrou-se à minha personalidade. A partir de então, passei sempre a considerar o caso comigo. Se ouvisse agora mesmo um mendigo da rua dizer “serei presidente do Brasil”, batata: consideraria o caso comigo. Claro, acharia improvável, mas não impossível. É isso.

Sem querer, Jacó antecipou, de certa forma, o método socrático de busca da verdade. O ponto é: quando ouvir algo inusual e estranho, por mais inverossímil que pareça a princípio, não custa considerar o caso consigo. É uma hipótese, apenas, não dói nada. Deixar a realidade falar e o tempo comprovar, eis a chave.

Voltando à história bíblica: no final das contas, o sonho de José se realizou.

Antes de varrer rápido da mente uma informação não habitual, ainda que cause choque ou desconforto mental no começo, considere o caso consigo. Se acontecerá ou não, dependerá de outros fatores.

Esta disposição especial é mais sábia do que disparar a esmo contras e a favor, gosto e não gosto. É esperar, examinar as coisas, pesar as possibilidades. E se preparar, se for necessário. O contrário disto é ignorância idiota, e só idiotas nunca mudam de opinião.

Considere o caso consigo. Sempre.

Pensando bem…
(vol. III)

ATEU: quem crê cegamente na inexistência de Deus.

*

Não tem bom gosto quem não sabe contemplar.

*

Não existe bom gosto sem gosto pela arte.

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À inteligência corresponde sempre certa elegância.

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Praga invencível e devastadora: a mídia.

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A propaganda destrói a modéstia.

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A primeira coisa de que um jovem deveria conscientizar-se é de como se veste mal.

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Jornalismo: 50% picuinha, 40% fofoca, 10% relevância.

*

Houvesse jornalismo desde o início dos tempos, não conheceríamos amor nem ódio, somente cinismo.

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É velho reclamar do moralismo; reclamemos agora do safadismo.

*

Não confie em quem defeca em qualquer banheiro.

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25 anos de idade: quem burro os rompe, burro será.

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Toda nudez será… banal.

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Honesto no Brasil é quem faz literatura: a motivação não pode ser o dinheiro.

*

Quem se ofende com facilidade, não lê com frequência.

Eu, o suspeito

SENDO homem e não sentindo nenhum incômodo por sê-lo, frequentemente sou vítima de olhares estranhos quando vou a certas lojas nos shopping centers. Não, os olhares não vêm de colegiais de blusas Gap com milkshakes em punho, exalando olor de cereja dos cabelos. O olhar, na verdade, vem de simpaticíssimos seguranças.

Por que raios se preocupariam comigo? Vejamos: não creio ter “cara de suspeito” — é escusado dizer o que vem a ser cara de suspeito; fiapos brancos me aparecem nas têmporas; ruguinhas surgem aqui e ali… embora não me vista como um fidalgo, não ando aos trapos, nem sou dado às sportswears típicas de suspeitos; meu pouco cabelo anda em relativa ordem, e para arrematar, uso óculos de grau.

Pois bem, preencho assim o quesito suspeito, à primeira vista? No entanto, basta entrar numa loja e lá está o guardinha a me vigiar, de longe, observando meus gestos, como se eu fosse um larápio em potencial. Não sei quais critérios usa para detectar gatunos. Como foi orientado? Disfarço, mas noto, não há como não notar: tem um nariz apontado em minha direção, desfocado pela visão periférica.

Evito encarar o sujeito de volta e trombar com sua cara desconfiada. Temo confirmar-lhe uma possível tese: a de que, se um sujeito volta-lhe os olhos quando é vigiado, é porque realmente intentava o furto e ele, vigilante atento, impediu o ato. Ironicamente, se roubasse mesmo, não deixaria de fazer minha boa ação do dia: tornaria o infeliz útil uma vez na vida e ele teria alguma história para contar no botequim. Mas não lhe faço a caridade. De maneira que fico lá, olhando a prateleira, incomodado com minha liberdade de consumidor cerceada. Dividido entre não me importar com a observação excessiva ou sair sem comprar nada, opto pela segunda opção. Par délicatesse J’ai perdu ma vie.

Quando estou acompanhado por minha mulher, eles nem me olham assim. Viro um sujeito de família, vai ver. Talvez agrave o problema o fato de eu preferir ir às minhas (raras) compras sozinho, e antes de escolher um produto, examinar bem as opções: gasto tempo mesmo, sou um comprador indeciso a princípio. O esforço compensa. Após a escolha, costumo gostar muito de minhas aquisições, bem pensadas que são. Mas meu ritual particular deve perturbar os carinhas. “O cara demora muito, olha daqui, escolhe dali… quem demora, quer roubar”. Será? Imagino o oposto: ladrões costumam agir rapidamente. Ou não?

Às vezes, encaro os sujeitos de volta. Geralmente desviam a cara, para despistar. Tarde demais, eu percebi. E quando os vejo, constato: eles, sim, têm cara de suspeito. Se os visse na rua, sem paletó amarrotado com embleminha, certamente esconderia a carteira. Então, por que tanta desconfiança? Pensariam algo como “essezinho aí, de óculos. Hmmm, sei. Essa carinha de quem passou vinte anos estudando, nerdezinho do carai. Não me engana não, nesse suéter.”

Perguntaria você: que raio de lojas são essas, repletas de seguranças tão desconfiados que você freqüenta? Uma livraria, veja só. Não bem uma livraria; aquelas megastores, que nos anos 90 chamavam-se shoppings culturais, que vendem de gibis a eletrônicos. E eu, o suspeito injustificado, ignorando games e apetrechos apple, vou direto aos livros.

Vou à estante de literatura, olho as contracapas, pulo à de filosofia… vejo ali um Marco Túlio Cícero: edição cara que namoro há tempos, capa dura bacana, tradução portuguesa direta do latim. Coisa fina. Folheio um pouco. Ergo as sobrancelhas num trecho, rio discretamente em outro… o livro está meio empoeiradinho, ninguém se importa com ele: os clientes estão concentrados ali no stand do novo Samsung de cinco mil reais. Mas o vigia me estuda: “por que esse cara pegou o livro? Por que esse livro? Por que ri?”

Pensando bem, o problema não deve ser meu look timberland + calça de sarja + óculos. Não. Deve ser estranheza, pura e simplesmente. O sujeito me estranha: “não tem caras assim na quebrada, tem coisa errada aí. Olho nele.” Copia, central?

Pobre segurança. Elevado pelos bons conselhos de Cícero, perdôo-lhe o constrangimento a que me faz passar, estoicamente. Afinal, jamais foi treinado para lidar com um estranhíssimo, suspeitíssimo, perigosíssimo… leitor.