Como encontrei
Júlio Verne

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês

Tempo de leitura: 4 minutos

Levei exatas quatro décadas para ler Júlio Verne, no seu A Volta ao Mundo em 80 Dias. Leve, divertido e de ótima prosa, o livro transportou-me aos tempos de Sessão da Tarde, na infância, quando passavam na tevê aqueles filmes de aventura divertidíssimos como os de Indiana Jones e Allan Quatermain.

Não falarei do livro, que aliás recomendo. Falarei de seu autor, sr. Júlio Verne, o próprio.

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês. Um dia, passando pelo pátio exterior do metrô Barra Funda, em São Paulo, vejo uma banquinha com diversos livros de encalhe a preços simbólicos. (Notinha: adoro essas feirinhas. Fuço, reviro tudo, garimpo mesmo. Foi numa delas que encontrei verdadeiras preciosidades: Stendhal, Henry Miller, Joseph Conrad, Oscar Wilde, Stevenson; do Brasil, Marques Rebelo, Lucio Cardoso, entre outros.)

Bem, a banquinha ficou lá por certo período e toda segunda-feira tinha novidade, conforme averiguei com um atendente. Pois um dia deparo-me com uma biografia de Júlio Verne, escrita por J. J. Benítez, escritor espanhol famoso por sua série de ficção científica Operação Cavalo de Troia. Achei inusitado um escritor best-seller interessar-se por outro escritor a ponto de dedicar-lhe uma biografia, sem ser biógrafo. Ele conta o motivo na introdução, aliás comprida e um tanto maluca, com uns lances de esoterismo, coisa e tal. Vale a pena. O fato é que me interessei, fiquei dois reais mais pobre (sim, dois reais) e levei o livro pra casa.

Folheio o livro no metrô como quem não quer nada e logo sou tragado. Jamais lera Benítez. Achei seu texto bem bom, envolvente, interessante. Parei o que vinha lendo para entrar naquela obra e conhecer a vida do sr. Verne pelos olhos do espanhol.

Mas não contarei tudo que li. Destacarei alguns pontos.

Ao contrário do bom humor e da sagacidade de Phileas Fogg, o protagonista de ‘…80 Dias’, Verne era um sujeito um tanto bisonho, triste. No início de uma carreira que custava a decolar, enfrentava os queixumes constantes da mulher que era pura cobrança (com alguma razão; mas ela exagerava). O fato é que a esposa só fazia reclamar, a ponto de cozinhar os neurônios do pobre Verne, infernizá-lo; além de impingir-lhe certa pecha de fracassado, “por que não arruma um trabalho decente?”, coisas assim. (Notinha, de novo: incrível como a realidade de Verne neste particular coincide com a do personagem Campos Lara, de O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa. O brasileiro soubera, de alguma forma? Impossível este ter lido a biografia de Verne, publicada quase cinquenta anos depois. Coincidência incrível que a ficção proporciona…)

A bater de porta em porta de editores, Verne finalmente encontra um sujeito disposto a dar-lhe uma chance. Publica, e o livro vende feito pipoca em porta de circo. Então, sua sorte muda não por enriquecer, pelo contrário; recebia pouquíssimo pelos direitos do que produzia (familiar, não?). Mas o tal editor ouvia o tilintar constante da caixa registradora na cabeça e passa a encomendar livros e mais livros ao escritor. Chegava quase a espremê-lo para ver se pulavam uns originaizinhos de seu paletó. Verne entregava um novo volume a cada três meses em média e entrava agora num modo frenético de produção literária, quase em escala industrial. De onde tirava tanta imaginação?

Bem, quanto à sra. Verne, essa gostou: viu que o marido finalmente pagava as contas com aquele ofício esquisito que abraçara. Se fazia a comida chegar à mesa, tudo bem.

Para fazer o dia render e ter absoluto silêncio durante o trabalho, Verne começava a escrever às quatro da manhã. Fazia-o inclusive para evitar o choro ensurdecedor do filho recém-nascido, que lhe quebrava toda a concentração. Nessa toada, o francês escreveu mais de uma centena de obras. Estima-se que ele tenha escrito até mais.

Quando a carreira amadurece, seu nome finalmente conhece a fama, e ele, a prosperidade. Não acumula nada exuberante que se possa chamar de fortuna, mas torna-se um escritor bem-sucedido, estabelecido, embora não tanto quanto gostaria e merecia.

Enfim, haverá outros fatos importantes de sua vida pessoal na biografia que deixo para quem quiser procurar pelo livro, facilmente encontrável em sebos. Para mim, o que fica é a perseverança do escritor profissional, de alguém que acredita na vocação e devota-se a ela com afinco, como se não pudesse fazer outra coisa na vida (e até poderia: formado em Direito, vinha de uma família de advogados).

Que eu saiba, seus escritos não figuram nos cânones, não constam como fundamentais na literatura universal. Entretanto, sua vasta obra permanece pela força criativa, pela diversão que proporciona (e não é disso que se trata a ficção, afinal?) e para escritores sua vida serve de inspiração, sobretudo por seu empenho incansável e por sua entrega de corpo e alma ao ofício literário. Um baita exemplo.

Que privilégio o nosso, leitores de todas as idades e origens, poder ler Júlio Verne ainda hoje. Com efeito, o homem sacrificou-se por isso. Leiamos, pois.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O outro
Crime e Castigo

Assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Mais sérias que o mero factual

Tempo de leitura: 3 minutos

A respeito de Dostoiévski e sua obra-prima Crime e Castigo, leitores ilustres e críticos em geral são unânimes em apontar um ingrediente que admiram na obra: a redenção de Raskólnikov, depois de desferir suas machadadas na pobre velha usurária e em sua azarada irmã.

Entretanto, Raskólnikov não me desperta qualquer simpatia, malgrado sua suposta redenção no final (ai, spoiler! já foi). O sujeito permanece cínico e indiferente ao crime cometido por toda a trama— exceto pela irritação causada pelo noivado da irmã, reação que no fundo sugere algo de fundo incestuoso a meu ver, e pelo cerco psicológico a que o submete o inspetor de polícia Rostinikov, quando o enquadra a fim de obter sua confissão. Raskólnikov não se arrepende do crime, contudo. Queria tão somente ser deixado em paz na sua loucura eremita, a despeito dos assassinatos praticados.

Como todo clássico, há que ler e reler Crime e Castigo. Contudo, acho estranho como ninguém — até onde eu saiba — destaque uma passagem singela do livro a qual tocou-me profundamente: quando a família do beberrão Marmeladov passa por apuros após a morte idiota deste, depois de cair de bêbado no chão e ser pisoteado por um cavalo. Desamparada, a família se vê obrigada a esmolar para descolar uns cobres e não morrer de fome.

A viúva de Marmeladov, coitada, imagina que conseguirá uma audiência salvadora com o príncipe, já que teria ela um remoto título de nobreza ancestral. Talvez delirasse. Mas caso fosse verdade, teria tal título alguma validade, alguma relevância? Seu apelo urgente à distinção era fruto do desespero. O caso é que tal audiência jamais acontece; e a mulher, sem alternativa, bota o filho pequeno para dançar e fazer macaquices na rua, enquanto a filha mais velha, Sonia — mocinha que afinal será a responsável por redimir Raskólnikov — termina por prostituir-se para ajudar a família.

Uma tragédia familiar desnecessária, lamentável, estúpida. Como todas as tragédias familiares, quem sabe? Até oonde sei, o evento passa batido pela crítica, centrada no protagonista e na tal redenção. Um desperdício.

Pois aquela passagem me marcou pessoalmente. Imagino como algo do tipo poderia ocorrer a qualquer família. Fico a pensar na responsabilidade que pesa sobre mim: jamais brincar com a negligência, como fez Marmeladov, sob pena de minha própria família terminar feito a dele, humilhada nas ruas por gente mil vezes mais indigna que ele próprio.

Bem, de tantas camadas de significado possíveis, especialmente esta depreendi de Crime e Castigo na primeira leitura. Certamente a obra tem a revelar muito mais numa próxima visita, pois assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Não raro, mais sérias que o mero cotidiano factual.

Viva os 200 anos de Dostoiévski. Viva Crime e Castigo. Viva a grande ficção literária, que é coisa muito séria. No bom sentido.




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(Selo criado por Beth Spencer)

O inútil
do escrever

Tempo de leitura: 4 minutos

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

– João Cabral de Melo Neto, O artista inconfessável

Se uns sábios, ilustres e entendidos em geral me colocassem no centro de uma roda e, com veemência e gravidade peculiares, me apontassem seus dedos respeitáveis, dizendo: “você não tem razão, garoto; você está errado!”, eu, malgrado o susto que a assertiva coletiva me causasse no momento, me conformaria no instante seguinte. Não sofreria mal algum. Zero trauma.

E isso não porque, no fundo, eu os desprezasse com moralidade superior e quisesse, do alto de minha irrelevância semianônima, colocar-me como um profeta não reconhecido (como sói acontecer a profetas), alguém cujo fracasso lhe subiu à cabeça. Não. O caso é que não apenas concordaria com eles — vai ver não tenho razão alguma, mesmo — como não faria absolutamente nenhuma questão de desmenti-los. Não lutaria para estar certo e não estenderia os punhos em riste para soar convincente, aos perdigotos. Debates e embates me dão preguiça, Deus me livre. Toma, olha: é sua, fica com a razão todinha pra você. Faria assim.

Assumo, sou mais um dos muitos levados pela onda da liberdade de expressão digital. Esta fez e faz do mundo ocidental um lugar tagarela como nunca antes e amplia o “alcance” dos zés-manés formidavelmente. Daí que, entre as tantas vozes que se estapeiam para sobressair-se de algum modo da multidão e — glória das glórias — ainda faturam uns cobres por isso (bem-aventurado quem paga o leite e a gasolina com o que recebe por sua escrita hoje em dia), pois bem, em meio a tudo isso este serviçal esboça apenas alguma brincadeira literária enquanto armazena um romance não revisado na gaveta e planeja outros três faz um tempinho, já. A esperança é a última que morre.

De minha parte, respeito quem venda suas lindas razões da mesma forma que respeito quem venda churros ou pneus. Tudo é necessário de algum modo. Não sou exatamente contra o capitalismo. Mas, parece, quem vive de vender teses não aprecia muito que vez ou outra surjam engraçadinhos como este aqui, que se atrevam a escrever coisinhas algo curiosas e, como um camelô que monta a barraquinha na calçada e atrapalha o movimento da loja em frente, desviem parte da freguesia dela sem querer querendo: então, se aparece um gaiato, lá vai cascudo: “você está errado; você atrapalha!” Desista e vá embora, parecem dizer. Se conseguem espantar o pentelho, respiram aliviados. Menos um.

Mas este teimoso aqui escreve. Não sei bem porquê. Preciso, apenas. Clarice Lispector disse uma vez que escrevia para expulsar de si as histórias que lhe ocorriam. Expulsar, Clarice: perfeita colocação. Também expulso as caraminholas que me flutuam na cuca enquanto observo a vida passar. Há algo de terapêutico nisso de escrever. Ajuda a aliviar a carga. Pensamentos insistentes brotam, pesam; frases se formam e pedem a rua como o vira-lata deseja passear um pouco ao ver outros vira-latas com plena liberdade indo e vindo lá fora. Late, grunhe, se atira contra o portão — por também querer aquilo. Escrevo mais ou menos por isso: praticar a liberdade.

De modo que não preciso ser levado a sério, ó sábios e entendidos: descansai, pois. Porém, notem: até poderei. Não preciso ter razão, ó notáveis, mas vede: ocasionalmente a terei. E poderei também estar errado e dizer bobagens imensas as quais, uma vez reveladas, serão assumidas como tal. Passarei as vergonhas todas. Assumo: ao compartilhar nesta plataforma gratuita algumas linhas, quero obviamente ser lido por alguém além de mim mesmo. Não sou imune a vaidades, saibam — como tampouco os senhores o são, diz o pregador.

Por isso, nas pouquíssimas vezes em que sou confrontado pelo que escrevo, depois da surpresa e algum choque, acho graça. Porque falo do quê? Do que sinto, penso, observo, formulo. Escritores são assim, não? Expressam impressões autênticas (Benedetto Croce) e não há mesmo impressões erradas enquanto tal. No máximo, equivocadas. Ademais, não falo por apuds — “isto é aquilo conforme o teórico X cuja obra completa estudei, etc”. Respeito, mas de novo: não provo teses nem as elaboro a sério, não vendo certezas, não exponho fundamentos suculentos no varejão das ideias. Se querem saber, no fundo me acho um escritor vagabundo (não vagabundo escritor): desvinculado das rodas importantes, jamais cogitado para um chopp no bar dos bacanas do intelecto (porém, se um dia chamarem, aceito o convite.)

De modo que sou feliz assim, acho eu. Sigo levando — e o que vier é lucro. Eu disse lucro? Aí está, pode até ser… quem sabe um dia? Como disse, não sou exatamente contra o capitalismo. Ora essa. E algum camelô seria?




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(Selo criado por Beth Spencer)

Gorjeios literários

Tempo de leitura: 2 minutos

Antonio Abujamra costumava perguntar ao entrevistado, em seu extinto Provocações, ao saber que este lia com frequência: “qual é o autor que você já encontrou? E qual ainda não encontrou?”

O entrevistado nunca saía-se bem nessa questão. Natural. Quando lemos literatura com alguma frequência, nossos autores preferidos vão se afunilando, diminuindo, diminuindo… não raro, desgostamos de muitos clássicos que, sim, são obrigatórios, e nos afeiçoamos a outros nem tão clássicos assim, por vezes longe disso. Pessoalmente, dá-me uma pontinha de vaidade saber de autores muito bons e quase desconhecidos da maioria. Bobagem? Talvez. Como toda vaidade, ora essa.

Parece-me que leitores maduros prefiram a delicadeza à veemência. Bem, não generalizo; falo por mim. Busco na arte literária o captar do sutil no banal, do verdadeiro no corriqueiro. Me espanta a frase precisa sem a intencionalidade forçada de sê-lo e identifico o lirismo poético na prosa mais despretensiosa. Beletrismos, porém, logo saltam aos olhos e denunciam-se, enjoam, cansam. Na vida e na arte, veemências dão bocejos.

Depois de alguma vivência na leitura, fica fácil detectar truques e afetações. Ouvimos a música das frases. Gostamos da verdade, mas esta bem apresentada e não com a violência de carros colidindo em postes. A realidade é ao mesmo tempo trágica e bela — bela mesmo na tragédia, às vezes, inclusive.

No início da jornada ao mundo da literatura, bebemos dos grandes dramas da humanidade e desprezamos os sorrisos singelos. A imaturidade sempre busca a gravidade. Por isso, entendo quando velhos pensam mais progressivamente, modernamente, que moços em formação. Vai ver, aqueles aprenderam que nem tudo possui motivações muito racionais nem explicações tão fundamentadas e sedimentares. A lógica formal, quando muita, enlouquece. Acontecer faz parte do ser.

Viver é um fluir contínuo e incontrolável, imprevisível. A ordem racional, pura invenção. Feito o pássaro a gorjear de manhã: surge sem licença e faz o que lhe é natural. Canta, voa, vem e vai.

Assim é a vida, o real. Assim, a boa literatura.

No mais, diz o pregador, tudo é vaidade e correr atrás do vento.




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(Selo criado por Beth Spencer)

A Eterna Fluidez

Tempo de leitura: 3 minutos

Diário Inconstante, 19.10.2020

Há tempos não vinha à Barra Funda, por motivos vários. O que tem de especial na Barra Funda? Nada em particular. Para mim, porém, aquelas ruas guardam memórias de quando trabalhava aqui, por anos, em duas fases importantes da minha vida. Mas a pandemia me afastou desse enclave que hoje serve apenas como passagem apressada entre um ponto A e um ponto B da cidade, para a maior parte dos paulistanos.

Penso que o bairro guarda um misto de aristocracia perdida no tempo, substituída por uma decadência pacata. A Barra Funda é um bairro com variados cheiros, não necessariamente agradáveis, embora marcantes. Agora, o vazio de gente forçado pelo novo coronavírus dá certo ar de terra de ninguém ao lugar. Tudo parece um enorme canteiro de obras abandonado, cercado de tapumes sujos e pichados. Vê-se um operário ali, outro ambulante acolá. Nem as figuras sofridas e miseráveis de costume vêem-se mais por aqui.

No caminho, no vagão de um vazio metrô, noto a simples presença de uma única moça em meio a marmanjos aleatórios a disparar olhares, despindo-a sob mil pensamentos frívolos. “O melhor a fazer é não tentar adivinhá-los”, diria a ela, se pudesse. Empunho um Coração das Trevas de Conrad e sinto o constrangimento da moça como se fosse comigo. O incômodo dela era notório e justificado. Com efeito, é difícil ser mulher, nas mínimas coisas. Quanto à moça do vagão, devo dizer, reunia mesmo atributos dos quais a audiência circundante, conquanto os admirasse, certamente não era mui digna deles.

Bem, chega a estação e a moça desembarca; marmanjos, idem. E eu mal sabia que o melhor a fazer era me abster de atirar a primeira pedra e não lançar-me a julgamentos apressados.

Vou ao Banco do Brasil na Marquês de São Vicente, eis o meu destino no bairro. Preciso retirar um novo cartão que se encontra na agência. Antes, no trajeto, uma mulher entrega-me um santinho. É época de eleição para prefeito. Algo curioso ocorre comigo: os detalhes são despiciendos, mas a visão daquela mulher, depois de tempos de quarentena, desperta-me certa excitação bem conhecida, porém ausente há tempos em espaços abertos. Estranho. Chego a uma conclusão: a de que ser casado implica em possuir a própria mulher como se ela fosse todas as outras. Todas as fêmeas desejáveis do mundo, numa só. Daí que — estranha dialética — para atrair-se pela sua, é preciso antes atrair-se por outras mulheres. Depois, vingar-se à noite das visões e sensações acumuladas do dia; expulsar e expurgar — e tombar, redimido.

Pobres mulheres, a agraciar-nos e perturbar-nos com seu Eterno Feminino! E miseráveis de nós, homens, por não saber lidar com isso. Culpa de quem? Não sei. Culpemos a natureza: há desvios de ordens biológica e instintiva que ideologia alguma, por mais bem-intencionada que seja, consegue dirimir. Freud explica; Darwin também. Apenas a religião que não: somente condena e cerceia, cerceia e condena, usando o medo da danação para conter a fúria do pecado.

A religião ensina que o homem é uma tríade: corpo, alma e espírito. Grande coisa. A mulher é bem mais que isso. Multidimensional, plasmática, polivalente, inefável. Ela não necessita racionalizações, intelecções de sábio nenhum. A mulher é substância que a explicação não alcança. O mesmo Freud morreu sem decifrá-las. São puro mistério, elas: mandam sujeitando-se, dominam adaptando-se, renovam-se ao sangrar. A mulher é um ser inteiramente esotérico.

Mas divago. E o banco?

Sim, o banco. Na agência, em obras e absolutamente vazia para uma segunda-feira, sou atendido com dedicação por Alberto. Conversa comigo, sem pressa. Lá pelas tantas, oferece-me uns “produtos bancários”, visivelmente embaraçado. Funcionário público com metas a bater, que coisa estranha. Não combina. Ele não sabe que eu sei bem o que ocorre. Talvez a constante ameaça de privatização Guedes-Bolsonariana paire no ar e o gerente já tenha alertado ao pessoal que Brasília ameaça a estabilidade empregatícia, aquela mesma que o senhor grisalho de meia-idade tanto batalhou para conquistar após diversos concursos. A ausência total de clientes por causa da pandemia deu ao servidor uma rara oportunidade de servir bem ao público. Então, fui bem atendido. Até os vigias me foram gentis.

Burocracia resolvida, volto para casa-escritório — outra modalidade que a pandemia 2020 impõe. Na estação, passa outra mulher. E de novo, o exame anatômico involuntário do macho (desculpem, desculpem): geometria, montanha-russa, sinuosidades; reentrâncias movimentam-se; virabrequim hipnótico. Ocorre-me a palavra: languidez. Excitação novamente. E de novo, a conclusão obtida na visão da mulher anterior: que ser casado implica em… e coisa e tal.

Pois eis a mulher, senhores: cíclica, simbólica, permanente e mágica. Eterno Feminino que as palavras não alcançam, filosofias não definem, psicologias não analisam. A mulher é esfinge, tenha ou não segredos, ó Oscar Wilde; pouco importa. A mulher, ela simplesmente vive e flui, flui e flui. Eis todo o segredo.




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(Selo criado por Beth Spencer)

Superstição

Tempo de leitura: 3 minutos

Tenho uma superstição. Quem não as têm? Eis a minha: se acho dinheiro no chão, não guardo comigo nem levo para casa. Procuro algum necessitado na rua e entrego o fruto de minha sorte inesperada. Exibicionismo de virtude a uma hora dessas? — dirá você. Nem tanto. Posso explicar.

Certa vez, achei dez reais. Sabe, aquela cédula do Cabral comemorativa dos 500 anos do Brasil, lançada em 2000? Como esquecê-la? A cédula foi produzida em papel celofane e seu material se desintegrava mais rápido que seu valor sob a inflação do período.

Enfim, achei aquela bendita cédula na calçada e, óbvio, guardei-a para gastá-la em hora oportuna. E assim sucedeu: rapidamente repassei a dita-cuja, sabe-se lá no quê; nem lembro. Só lembro de algo ocorrido no dia seguinte: tomei o metrô com uma elegante bermuda cargo, sob um calor dos diabos. Por sorte, a composição tinha ar condicionado. Bem, fui aonde tinha de ir, fiz o que tinha de fazer e voltei para casa. Foi num final de semana.

Chego em casa e desocupo os bolsos. Remexo e… espera, cadê o celular? Revolvo novamente. Nada. Fico naquele imediato instante de perplexidade bocó quando se perde algo: “não é possível, não é possível…”. Sim, foi possível. Perdi meu celular! Um exemplar de que gostava muito. Digo-lhes qual era: um Gradiente com flip abre-e-fecha. (Nota: sabei, jovens, que no Brasil os celulares Nokia eram fabricados pela nacionalíssima Gradiente. Sabei antes que houve certa fabricante brasileira de eletroeletrônicos chamada Gradiente, por sinal uma ótima marca; se não de celulares, ao menos consagrada na manufatura de excelentes aparelhos de som).

Enfim, voltando. Perdi meu celularzinho! Ele tinha um despertador ótimo com som de galo e uma luz led multicolorida que emitia raios fortíssimos no ambiente, na hora de despertar. E tinha o jogo da cobrinha que eu adorava. Mas perdi! Perdi meu celular! Como aquilo foi acontecer? Como fui me descuidar? Onde deixei-o cair, escorregar do bolso? Até hoje me pergunto.

Uma tragédia.

Situação 2. Encontro 5 pilas por aí e – por que não? – guardo, oras. Não faço idéia do destino dado àquela nossa nota gay (segundo Os Simpsons). Só sei que naquele mesmo dia, dou pela falta do meu Bilhete Único: o cartão magnético do transporte coletivo em São Paulo. Ó amigos, sabei: perder tal cartão implica em mergulhar a alma nos sete infernos da burocracia estatal, nas trevas abismais do Leviatã municipal; são jornadas insólitas, a demandar o bloqueio dos créditos, a solicitação do novo plástico, a comunicação ao RH da empresa, aguardar as baixas todas no sistema… e talvez nada disso dê certo e o processo se repita umas três vezes. Uma via crucis mundana, enfim: tudo que eu não podia ter feito era perder aquele bendito Bilhete Único. Mas aconteceu.

Ambas as situações ocorreram num curto espaço de tempo. A conclusão era óbvia: maldito dinheiro gratuito! Maldito “achado não é roubado”! Decido: se encontrasse mais algum dinheiro dali pra frente, entregaria ao primeiro famélico, ao primeiro pedinte que topasse na minha frente. Não ficaria com aquele butim, jamais! Nunca! Sai de mim, zica!

Tempos depois — em 2015, mais especificamente — , acho a importância de R$ 2 na Avenida Pacaembu, na Barra Funda. Já sabia a resolução a tomar. Subo a rua Mário de Andrade com a notinha em mãos e topo com um senhor morador de rua, descansando sob a sombra de seu carrinho de sucata. Perturbo o cochilo e entrego-lhe a nota. Renderia dois almoços no restaurante Bom Prato, calculei; fiquei feliz com minha boa ação. Puxa vida. E o melhor: não perdi nenhum pertence meu depois. Bingo! Era isso, claro!

De lá pra cá, nunca mais achei dinheiro algum pela rua. E olha que cultivo o hábito de caminhar, adoro fazer isso, faço com frequência. Bem, vai ver, há muito menos cédulas em circulação hoje em dia. A pergunta que mais o brasileiro ouve pelas freguesias país afora é: “crédito ou débito?” Nem precisa mais ensinar as crianças como conferir o troco, feito antigamente. Sinal dos tempos. Por outro lado, já perdi alguns pertences importantes desde então. Até para ladrão. Ah, quer saber? Pouco importa. Se achar algum trocado, entrego a quem precisa. Eu, dar sopa pro azar? Sai pra lá, zica!




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(Selo criado por Beth Spencer)

Alma de explorador

Tempo de leitura: 2 minutos

Sou um grande explorador. Grande não, minto: um pequeno explorador. Do tipo que vai e vê, capta a substância e volta. Mas vou, pois necessito. Preservo a lucidez, contudo. E Deus como porto seguro.

Como se diz, “confiar desconfiando”. Discreto, entro e capto os sons, atento-me aos movimentos: de modo que não sou um homem do subsolo mas outro, que pára ao meio da escada que leva ao porão e dali estuda o ambiente. Se a escuridão é muita lá embaixo e o cheiro de mofo arde-me as narinas, volto, antes que me fechem a porta e não haja retorno possível.

(Dostoiévski chamaria a isso covardia? Não sei. Eu chamo de prudência.)

O caso é que me atrai o diferente que a manada rejeita, por isso mesmo: manadas adoram consensos e o consenso me aborrece. Quando todos repetem mantras em coro, tatuam as mentes, volto-me e parto em busca do Verdadeiro dentro da suposta mentira rejeitada; por vezes, encontro ali outra verdade, sutil e profunda, ocultada qual um tesouro sob montanhas de mistificações, sofismas e preconceitos burros (passe a redundância).

Não raro, a mentira é só uma verdade mal explicada e a verdade, uma mentira bem contada.

Pois lá vou eu rumo ao diferente. Todavia, não me entrego às cegas nem me lanço de corpo e alma. Não: quieto, apenas aproximo-me, paro e observo à média distância. Deixo que ele se mostre e fale enquanto calo, durante o tempo necessário.

Assim minha alma aprende o bem e o mal, se vale ou não vale a pena. De todo modo ela aprende, ela evolui. Sem escapar de mim, porém.




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(Selo criado por Beth Spencer)

Do tempo

Tempo de leitura: < 1 minuto

Talvez não devamos aproveitar, mas saber perder tempo com tudo de bom e útil. O tempo é nosso ativo particular, avaliado em bilhões.

Tempo, atenção e dedicação são o novo petróleo do mundo: sondado, explorado e capitalizado.

Embora intangível, a atenção tem alto preço e a gente nem se dá conta.

Se o tempo se esgota, esgota-se a vida. E quem ganha com isso?

Que sejamos nós: tenhamos tempo para nós mesmos.




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(Selo criado por Beth Spencer)

Amar demais

Tempo de leitura: 4 minutos

Durante algum tempo, tive um carrinho de que gostava muito. Sei lá, me apeguei. Foi meu primeiro carro e fiquei mais de década com ele. Tinha motivos para me afeiçoar: foi com ele que levei meu filhinho recém-nascido, asmático à época, a passar noites em hospitais; foi com ele — o carrinho, digo — que peguei a estrada com minha recente e linda familinha, em muitos feriadões prolongados.

Achava que ninguém cuidaria melhor daquele carro do que eu. A primeira dona, ao contrário do que o povo diz (carro de mulher, etc.), foi relapsa e negligente com ele. Descobri depois, após muitos check-ups no mecânico. Pouco nele restava de original. Até a lataria havia sido vítima de várias colisões: com um simples ímã o mecânico desfez minhas ilusões. Em várias partes não grudava. Pura massa.

Desanimei por causa disso? Não. Pelo contrário: assumi o papel de nobre cavaleiro e dispus-me a resgatar minha amada. Verdade, não tinha muitos cobres para despender na empreitada, mas não importava. O amor vence as barreiras. E fui, intrépido e corajoso.

Como num romance farofa, quanto mais atenção eu despendia ao carrinho, mais problema ele dava. Era um tal de “queimou a bomba d’água” aqui; “quebrou o cubo de roda”, acolá. Então, quebrei meu porquinho e dei uma primeira geral no bichinho: cabeçote, suspensão completa, pneus zerados. Foi como se ouvisse o carrinho me agradecer. Fiz questão de pegar a estrada, a Rodovia dos Bandeirantes de preferência, um tapete, para ouvir os pneus deslizarem no asfalto liso. Quando o carrinho esticava, realmente era um prazer dirigir.

Sem me dar conta, o que foi um namoro inocente virou triângulo amoroso: o carrinho começa a dar tanto problema mês sim mês não, que ele passava boa parte do tempo encostado no mecânico — o qual, veja só, virou meu amigo. E meu sócio: se eu amava aquele carrinho, ele ainda mais; porém, só ele era remunerado por isso.

Enfim, tive muita experiência boa com aquele carrinho e muita experiência ruim, também. Só que chegou um certo momento que ele cansou de mim. Enjoou de uma vez e pronto. Começou a dar defeito de propósito, parece, como se me atirasse na cara “você não entende que eu não te quero mais?” Mas eu não aceitava. Não queria ouvir.

Desesperado, recorri de novo ao amante, digo, ao mecânico: expliquei que ele fora reprovado duas vezes na inspeção ambiental (lembram, paulistanos?). Uma injustiça, pois o carrinho era bom, não fazia mal a ninguém! O mecânico então olhou, testou e pisou fundo, fazendo o coitado até engasgar e liberar um fumacê dos diabos na oficina. Desenganou-me:

“Precisa fazer o motor. Agora, só retífica resolve.”

Meu coração apertou. Meu bolso, nem se fala. Menos mal que era final de ano e eu receberia o décimo-terceiro salário dali a alguns dias. Faria o esforço, fazer o quê? Poder mesmo a gente nunca pode, mas dá-se um jeito. Topei fazer a retífica do motor e deixei os rins na oficina mecânica: metade à vista mais um cheque pré-datado.

A essa altura, eu já me sentia mesmo um bobo com aquele carro, mas não assumia. Meu pai dizia “troca isso aí, meu filho!”; conhecidos perguntavam “casou com o carro? vai vender não?”, etc. Todo mundo sabia que eu era traído, menos eu. Um clássico.

Quietinho, meio envergonhado em assumir que afinal minha história com o dito-cujo tinha chegado ao fim, resolvi analisar as coisas. Talvez tivesse mesmo que me desfazer dele. Pra você ver, eu tinha uma pasta onde guardava cada notinha de troca de óleo, cada lavagem de radiador… entretanto, tomei a decisão. Ainda meio tíbio, confesso.

Por acaso, nessa época eu arranjara um emprego melhorzinho. Com a indenização do anterior pude dar entrada num novo carro (seminovo, na verdade). Agora, já não era mais um carrinho, mas um carro. Talvez um carrão pra alguns (ao menos na época). Enfim, troquei. E quanto ao outro? Ainda estava comigo, o patife. Sim! Quis só dar um sustinho nele e deixá-lo lá para sair no fim de semana. O carro maior ficaria para a família.

E você acha que o infeliz tomou jeito? Que nada. A mecânica estava zerada, motor novinho; mas agora ele resolve bagunçar com a parte elétrica. Deixou a alcova do mecânico e deu de se engraçar com o eletricista de autos. Eu, bobo, cedi. Só que agora não era mais o bobo de sempre, registre-se. Já conhecia outra realidade automotiva no novo carro, mais robusto, mais motorizado. Ao dirigi-lo, sentia sua construção mais firme, mais durável. Foi então que decidi: tchau, carrinho ingrato.

E aconteceu. Vendi o malandro para uma parente, por um preço simbólico. Ela ficou feliz da vida, pois sabia do meu zelo para com o carrinho. O preço módico, calculei eu, seria mais para compensar todo o gasto que ela teria com aquele sem-vergonha dali pra frente. Se reclamasse, eu logo diria: “desculpe, mas saiu quase de graça pra você”. Bingo! Quando entreguei a chave a ela, fiquei com medo que o pilantra quebrasse na próxima esquina e voltasse a me atormentar. Felizmente, não aconteceu.

E na verdade nunca aconteceu. Até hoje o carrinho está lá com ela e nunca deu um probleminha sequer, apenas manutenção periódica normal. O negócio era comigo, então! Filho duma égua!

Isso já faz anos. Sublimei a experiência, mas olhando em retrospecto, concluo, não sem alguma dor no coração: meu crime foi amar demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O totalitarismo digital

Tempo de leitura: 4 minutos

O universo digital ainda acabará com a cultura humana. Em poucos anos não haverá mais registro histórico, memória. Não saberemos a estética de uma certa época, quais sabores tinham, que cores gostavam. Diários, hoje, são as redes sociais. Filmes? Dados, códigos binários. Música? Apps, streamings. Leitura? E-books (mas estes nem tanto, o papel ainda resiste; resta uma esperança). Mas é alarmante: em tudo hoje impera o todo-poderoso algoritmo. O que será das coisas, daquilo que se pode pegar com as mãos, coisas que abrem e fecham, que tocamos e guardamos conosco? O que será dos cinco sentidos corporais com esse totalitarismo digital?

Minha geração, a terceira de trás para frente (nasci em 1979), passou por várias transições tecnológicas. Pulamos do puro material físico e analógico para a convergência digital e vimos suas derivações ao longo do tempo, em como estes dois — o físico e o digital — foram se imiscuindo aos poucos, desde o advento da computação e da internet. Como não lembrar do disco de vinil, sucedido pelo CD, depois pelo mp3, agora o streaming…

No início da internet, eu acreditava que o meio digital fosse um complemento, uma extensão do produto físico, mas que este jamais tornaria-se superado — e aliás não foi superado. As companhias globais da internet estão nos apartando do físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos, cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso. Confesso: sinto uma certo vacuidade hoje em dia, talvez uma orfandade na alma, não sei; um desalento interior quando noto que tudo converge a galope para as malditas “nuvens”, para clouds da vida, que ninguém sabe onde fica, embora nelas confiem cegamente, sem questionar. São pura abstração, ilusão; até mesmo as nuvens reais, aquelas do céu, ao menos pode-se ainda vê-las e apontar para elas. As nuvens digitais, porém, nem isso se pode fazer.

E antes tínhamos coisas de verdade, que existiam nalgum lugar. Dizíamos meu disco, meu livro. Num dia, olhávamos para elas, guardávamos, depois pegávamos de volta tempos depois. Ou nos livrávamos delas. Mas, hoje? Gastamos dinheiro virtual com códigos binários, luzinhas numa tela enquanto códigos de programação rodam em segundo plano desde servidores nalgum ponto do planeta. Aposto: todo mundo saberia listar pelo menos três discos que ouviu na infância, talvez os dois CDs preferidos na adolescência. Agora, digam-me lá: qual filme você viu em streaming no início de 2016? De qual série mais gostou em 2015? Um milhão de dólares para quem acertar de cabeça, sem esforço de memória nem consulta ao Google.


As companhias globais da internet nos apartam do mundo físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso


Entendem meu ponto? Nossa memória cultural se esvai e se esvai. Sem contar o mais grave: fornecemos a robôs invisíveis nossas intimidades, nosso endereço, nossos hábitos pessoais. Eles sabem a que hora vamos dormir, quando acordamos, o que fazemos, o que deixamos de fazer. Acompanham nossos passos, por onde andamos durante o dia.

Falava algo disso com um conhecido no trabalho. Comentávamos a respeito da Netflix, por exemplo. O que é a Netflix, exatamente? À primeira vista, uma plataforma digital de exibição de vídeos: filmes, séries, documentários. Certo? Mais ou menos. Esta é a parte boa. A parte ruim e não contada é que a Netflix não passa de um ladrão voraz e ditatorial de tempo. Do meu e do seu tempo. A companhia Netflix trabalha, e muito, para comer (não encontro verbo mais apropriado), para devorar todo nosso tempo, nossa atenção. Nem o pior dos ditadores do passado jamais pensara em algo assim.

E pensar que nossos avós nos alertavam a respeito da televisão… agora, a tevê é meio dos mais inocentes: não possui algoritmos, mapas faciais, controles de acesso, “stats” plotadas num gráfico.

Tenho pensado muito nisso nos últimos dias. E aos poucos, decidi voltar-me cada vez mais ao bom e velho analógico, ao material físico. Discos, filmes, livros, revistas, jornal… de maneira que deixo essa proposta: voltemos às coisas palpáveis, tridimensionais, materiais. Coisas com cheiro, com cor e textura. Coisas feitas por e para seres humanos. Resistamos, docemente. Geraremos mais empregos, ajudaremos mais gente assim. A transformação da matéria em produto final requer toda uma cadeia produtiva, algo que quase não acontece no meio digital.

Parece bobagem? Talvez, mas pense melhor, com mais calma. As coisas físicas sempre nos serviram. Qual o problema com elas? Nós as usamos quando quisermos, sem assinatura mensal, sem conexão, sem wi-fi. Dispomos delas sempre. Quanto a essas companhias do mundo digital e seus produtos ilusórios numa tela de smartphone, a mercadoria é você, sua própria existência. Pelo menos, é isso o que elas pretendem fazer.

Vale a pena dedicar nossa vida e intimidade a esse totalitarismo digital? Não creio. Acho que ainda podemos dar meia-volta e repensar os caminhos que estamos trilhando. A escolha é toda nossa, por enquanto. Por enquanto: talvez amanhã seja tarde demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)