Coisa irritante

HÁ MUITAS coisas irritantes e cada um tem sua lista pessoal de coisas irritantes. Da minha, destaco um item: não restringir a si próprio. Este, asseguro, é um dos vícios prediletos nestas paragens. Sinal de nossa falta de civilidade, categoria abortada no solo pátrio desde a precisa data de 15 de novembro de 1889.

Não restringir a si próprio, o que é? O termo vai além da expressão não se tocar ou não se mancar. Para entender melhor, imagine que você, eu ou qualquer pessoa tenha certo espaço delimitado em torno de si, algo como um círculo. Melhor: imagine cada pessoa envolta por uma bolha invisível (bolha ilustra bem). Imaginou? Pois bem: restringir-se consiste em respeitar a exata distância que vai de um corpo à parede da própria bolha, e da parede da bolha subseqüente ao corpo que ela contém; desse modo, nunca invade-se o espaço alheio: as bolhas ficam perfiladas ou justapostas. Se em ambientes com pouco espaço disponível a pressão entre as bolhas for inevitável, mesmo assim os corpos estarão protegidos de indesejáveis apupos, ruídos perturbadores e outras inconveniências.

Por que tanta gente não sabe restringir-se? O problema é que brasileiros são muito carentes. Ok, não sou nenhum finlandês: nós somos muito carentes (melhor colocado). Insisto, por que raios somos assim? Carentes mesmo, observe. Daí que muitos adotem o vício de precisar aparecer, fazer-se violenta e indiscretamente presente, chamar atenção a todo custo, pisar no dedão do universo. Quem nunca viu gente assim? Aquele tipo que chega aos berros no recinto, a fazer graça com o vácuo como se falasse com “a geral”. Ou ainda aquela menina, no transporte coletivo, discutindo constrangedores problemas familiares com a mãe em seu Samsung: “então, mãe, não adiantaaa, entendeeeu? Esqueeece, esqueeece…” Os exemplos são inúmeros.

As vítimas dos não-restringidos: comedidos e discretos. Eles são as vítimas preferenciais dos, digamos, mais expansivos. Às vezes, está você tranquilamente n’algum local público, seja a biblioteca municipal ou o banheiro do shopping center, por exemplo, fazendo o que se faz nesses lugares, oras. Ali, na sua. E eis que dos ralos e tomadas surgem os carentes performáticos, sozinhos ou em bando, a bradar alegrias incontidas num tom de voz calculado para chacoalhar seus neurônios. Nesta hora todos devem escutá-lo; é muito, mas muito importante que eles sejam ouvidos pelo maior número possível de pessoas. Não há escapatória, não há misericórdia. Quanto mais silencioso o recinto, azar: eles possuem um radar especial para detectar tais ambientes. Daí chegam, inflam os pulmões, ativam as cordas vocais no volume máximo, expandem-se: não restringem a si próprios.

Mas voltando ao exemplo das bolhas isolantes. Qualquer leitora de memes fofos em redes sociais condenará esta minha sugestão de viver em bolhas. Terá calafrios. “Oh, não! Não podemos viver isolados! Não somos uma ilha”, etc. Olha, de fato não somos mesmo, e aí está o problema. Temos companhia demais.

Compare a densidade populacional de uma São Paulo com uma Zurique e veja do que estou falando. Falta isolamento, acredite. Falta por aqui uma frieza sutil entre os indivíduos, certo distanciamento entre as pessoas. Ademais, sabe, é interessante transmitir um ar misterioso e reservado, algum charme enigmático feito uma caixa de bombons por abrir. É próprio da boa convivência um mostra-esconde, um leve chiaroscuro nas personalidades, dos quais brotem a curiosidade e o desejo. Pessoas abertíssimas feito pernas em camas ginecológicas causam choque inicial, porém, logo revelam-se tão estupidamente banais que não têm graça nenhuma afinal de contas. São tolerados, na melhor das hipóteses.

Sim, sem qualquer reverência blasfemo aqui o deus calor humano e cuspo no altar da deusa mais amor, por favor. Não me importo. Talvez tais divindades estejam em falta na Islândia. Já por aqui, na terra da micareta, do carnaval e da Ivete Sangalo, elas estão sobrando: tanto assim que dá até para mandá-las à Islândia num contêiner. Junto com a Ivete Sangalo.

Portanto, quem deseja ser feliz sem encher o saco alheio deve aprender a restringir a si próprio. Discrição é a regra número um das pessoas especiais. Não apenas, obviamente: recomenda-se adquirir algum conteúdo para um contato eventual. Ler uns livrinhos aqui e acolá não dói nada. Requer apenas um leve esforço.

Enquanto praticar a nobre disciplina da auto-restrição viva aí, quietinho e especial, elegante feito um gentleman ou graciosa feito uma lady. Cada qual quietinho na sua bolha. Ah, mas essa bolha é frágil, te contei? A qualquer momento ela estoura, e os encontros acontecem.

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