Do preconceito

ACUSAR alguém de ser preconceituoso confere ao acusador, no mesmo instante em que acusa, a condição de juiz da moral alheia. Ao acusar isto é preconceito!, o acusador autoriza-se no mesmo instante a praticar o seu próprio preconceito contra o acusado, enquanto fica isento de receber a mesma acusação de volta.

Quando aponta preconceitos alheios, o acusador estabelece instantaneamente uma hierarquia moral na qual ele está acima e o outro, submetido a seu julgamento, está abaixo. Tal hierarquia moral dá ao acusador uma primazia desde a qual ninguém poderá julgá-lo: afinal de contas, réus julgarem juízes como forma de retaliação ao julgamento que recebem não tem nenhum cabimento.

Ao acusar, o acusador entende por preconceito aquilo que seu senso comum, sua “lei” moral particular determina. Esta “lei” do senso comum — obscura e amorfa, definida por valores verbais e não-verbais recebidos desde fora e internalizado no próprio acusador — variará de acordo com o humor, o sentimento ou a conveniência que ele carregue em si: ao ser acusado, o “réu” tachado de preconceituoso é julgado num tribunal de exceção — o tribunal do discurso moralizante do acusador de preconceitos.

Se existem preconceitos e preconceituosos — e de fato os há, sem dúvida — ninguém deveria possuir a prerrogativa de apontá-los, se fosse honesto com sua própria consciência; pois no mesmo ato de acusar um preconceito alheio, o acusador pratica ele mesmo preconceito contra o acusado. Logo, preconceituoso será antes de tudo aquele que denuncia o preconceito alheio, necessariamente.

Até aqui, refiro-me à esfera particular da sociedade, na qual vigem códigos não-escritos de adequação social, convenções transmitidas de pessoa a pessoa. Entretanto, se transpormos estas regras sociais para as esferas legislativa e jurídica, todo um corpo de leis e códigos podem ser estabelecidos a fim de se definir o que seja ou não preconceito, tipificando crimes e determinando punições. E é precisamente o que se pretende hoje em dia nos parlamentos mundo afora, não por iniciativa da sociedade civil, de pessoas comuns, mas por pressão de grupos e ativistas representantes de ninguém exceto de si próprios, e das entidades que representam.

Mas eis que surge um problema: se preconceito é no fundo uma opinião, cometerá este preconceituoso um crime de opinião? Opiniões — sem comprovado prejuízo moral de outrem, o que caraterizaria prejuízo efetivo e verificável já preconizado em lei — poderiam ser considerados crimes? Meras opiniões, crimes? E quanto à liberdade de expressão, um dos pilares da democracia?

O enquadramento de determinadas opiniões ou posturas na categoria de preconceito torna o hipotético ente definidor de preconceitos — digamos assim, seja pessoa ou instituição, pouco importa — um ser divino e incontestável, quando arroga ser o definidor máximo de certos e errados dos cidadãos. Mas como tal ente definidor de preconceitos se faria obedecer e respeitar?

Para tanto seria necessário implantar todo um novo imperativo categórico na mentalidade coletiva, um código moral imperceptível arraigado na alma. E como implantar tal imperativo categórico? Quanto tempo leva tal operação e em quê implica sua efetividade? Lobotomia? Uma nova religião civilizatória? Mas como produzir isto? Para fazer sua lei moral ser totalmente internalizada, será necessário que o ente definidor de preconceitos não admita divergências de nenhuma ordem durante a implantação, sob as penas de perder a eficácia, esvaziar a autoridade e assim não conseguir mais submeter ninguém àquela “verdade” que detém e pretende tornar funcional.

Levando em conta que para um imperativo categórico social tornar-se senso comum demora séculos, a tarefa de implementação urgente deverá ser necessariamente artificial. Tal imperativo categórico não existirá se não for imposto verticalmente, psicologicamente, na formação dos cidadãos desde a tenra infância; contudo, não imagino maior violência moral. Se isto não for a própria definição de tirania e totalitarismo, não sei mais o que é.

Entretanto, esta implementação induzida e forçada de códigos morais artificiais — que não penetram o senso comum como imperativo categórico, mas aparecem desde fora por entes não identificados, algo como um chefe invisível a quem todos devem obedecer — nos é familiar. Sim, tudo isto acontece neste exato instante, em que supostamente vivemos numa democracia e acreditamos ser cidadãos livres. Novos imperativos categóricos são criados todos os dias a fim de aprisionar-nos a mente, tolher nossos comportamentos: somos uma pessoa dentro das nossas mentes e em nossos círculos mais íntimos, talvez nem mesmo neles; porém, na convivência social, somos pressionados por todo um código moral externo, “alienígena” que não habita nosso coração. Somos vigiados por um enorme olho invisível, e o policiamento íntimo ou público aos supostos preconceitos talvez seja a maior evidência desta vigilância, cujos controladores desconhecemos completamente.

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