Dona Tuca
e o homem tóxico

Tempo de leitura: 10 minutos

1

Manhã de sábado. Paulino Eiras de França Júnior se senta no sofá com um suco de laranja numa mão e um misto-quente que acaba de tirar da sanduicheira na outra. Ele gostava de tomar seu café da manhã assim, relaxado, de moletom velho e chinelo, na sala do apartamento de dois dormitórios que financiara em 30 anos pelo sfh e para o qual mudara-se há sete meses. Ele liga a televisão de 50 polegadas da qual ainda pagava as prestações — dividira tudo em 24 vezes no cartão de crédito — e procura algo para assistir.

Enquanto zapeia no controle remoto, França dá uma olhada panorâmica pela sala: mira o lustre chinês da salinha de jantar, bonitinho; depois olha o roda-teto de gesso — agora ele tinha uma sala com gesso no teto — , num estilo branquinho tradicional que contrastava bem com o azul-gelo suvinil das paredes, e arrematado pelo visual das portas brancas dos dormitórios. Incrível: nem custou tão caro tudo aquilo, mas mesmo assim o aspecto novinho do acabamento lembrava vagamente uma casa de classe média americana, igual a dos filmes, padrão que no seu entender representava o melhor do conforto e bem-estar doméstico.

França sentia-se orgulhoso de sua conquista recente, o belo apezinho; conquista não apenas sua, mas também da esposa, Edivânia Lucilene de França, no momento grávida de cinco meses e que infelizmente não pôde acompanhá-lo naquele café da manhã, pois estava no plantão de vendas da construtora onde trabalhava. Hoje era o dia do grande feirão imobiliário, e tudo indicava que ela conseguiria fechar uns bons negócios nesse final de semana; afinal, martelaram a campanha durante toda a semana no ShopMix, canal 19 UHF. Ah, com certeza. Daria tudo certo, em nome de Jesus.

Sem opção para assistir na tevê, França vai ao mesmo canal líder de sempre; o canal líder de sempre era aquele que se sobressaía em qualidade de todos os demais na tevê aberta. Os outros canais só exibiam programas de uma igreja evangélica diferente daquela que o casal frequentava ou reclames de panela antiaderente; tinha também o canal educativo do governo, que passava um jornal com voz abafada, sempre a falar da floresta e a mostrar uns índios tristes. Vai ver era por isso que o canal líder era o mais assistido do Brasil: a ruindade e o tédio dos outros canais praticamente garantiam uma reserva de mercado para aquela emissora.

Pois no canal líder de sempre exibem uma roda de debate, França percebe: está lá uma moça com uma soberba cabeleira que irradiava em todas as direções, e uma senhora branquinha, mais ou menos idosa, vestida com uma informal túnica de linho que destoava de sua expressão aristocrática; por último, um rapaz franzino com barba por fazer que, a julgar pelo tom e os trejeitos, devia jogar no time B da masculinidade.

O fato é que Paulino Eiras de França Júnior parou para ver aquela roda de conversa do show matinal, cujo cenário exibia uma rusticidade gourmet e despojamento chique; uma decoração pensada para quem não liga tanto para o luxo e valoriza o que realmente importa, muito além do dinheiro. Sentados em cadeiras de vime, os três debatedores falam de feminismo, lgbteísmo, racismo, machismo e vários ismos que a mídia tanto fala mas que ninguém dá a mínima no ponto de ônibus.

Parece que a moça do cabelo farto presidia lá uma ONG instituto zuma, zemba, mamba — França não ouviu muito bem; o rapaz diz ser ator e que acabava de chegar da Holanda; viera ao Brasil com o marido holandês para adotar três crianças bem brasileiras, disse; quanto à senhora distinta com roupa humilde, França ficou surpreso ao saber: era ninguém menos que a dona do mesmo banco no qual ele trabalhava como bancário, há cinco anos, exatamente na agência 3702 dígito 9, no Jardim Marialva, bem em frente à Praça do Relógio. Sim, aquela era a dona do banco Tupy, em pessoa. Ela se chama Antonina Seráfico, ou Tuca para os íntimos. Apelido simpático. Ao dar-se conta disso, França presta mais atenção nela, enquanto morde o misto-quente mais uma vez e estica o queijo à frente da boca. Aproveita a oportunidade para ver a fisionomia daquela que afinal era sua patroa, embora ela não soubesse. Que bacana… então foi ela quem carimbou sua carteira profissional?

Naquele momento, o assunto abordado era “homem tóxico”, a tarja informava na parte inferior da tela. A ativista da ONG desabafa como era vítima disso no dia a dia, enquanto os dois acenam a ela afirmativamente, de um modo um tanto reverencial. Tocados e lamentosos, pareciam dizer “sim, isso acontece mesmo, a gente sabe como você se sente”. Depois que a moça fala tudo que precisava falar sem qualquer interrupção, ela concede a vez ao rapaz casado com o holandês. Ele conta como na Holanda tudo era tão mais fácil para gente como ele, diferente do Brasil — “meu país” — , de onde teve de sair a contragosto; ao mencionar um tio que o humilhava na adolescência, o rapaz não contém a emoção, e uma fina lágrima escorre pelo seu olho esquerdo e para na barba por fazer. A câmera corta para a moça ativista num close, e seu olhar de empatia transparece no vídeo. Quando o rapaz pausa a fala e pede desculpas por estar emocionado, a câmera abre de novo e dona Tuca o afaga: passa a mão no seu ombro, ampara-o; demonstra estar comovida também, pois leva o dedo mindinho a seu próprio olho, como para segurar uma lágrima furtiva e não borrar a sóbria maquilagem no ar. Uma dama.

Vem a vinheta e os comerciais do intervalo. O primeiro deles, França nota, é o do banco Tupy. Coincidência. Ao som de ukelelês e assobios, uma adolescente mostra ao pai cafona e antiquado como o aplicativo do banco facilita a vida dela e poderia facilitar a dele também, caso deixasse de ser cafona e antiquado. Meio pascácio, o senhorzinho calvo admira-se da esperteza da filha jovem, que domina a tecnologia como ninguém, ao dispensar filas e portas giratórias das agências. A câmera fecha no homem com cara de bocó feliz e sobe o logotipo do Tupy, com assobios ao fundo: “assim a gente muda o mundo”, diz o slogan.

Telespectador, França mastiga o último naco do misto-quente. Ele ainda não tinha visto o novo comercial do Tupy. Achou legal. Mas, estranho: inconsciente, ele se solidariza intimamente com o senhorzinho pascácio e calvo do comercial, sem motivo aparente; quem sabe o faz porque, assim como o homem do reclame, ele não se sente necessariamente um pascácio; mas antes, já o incomodava suspeitar que fosse um tóxico, como o crack e a cocaína dos traficantes. Há poucos instantes, França tinha certeza de que não saía de segunda a sexta em direção à agência 3702 dígito 9, no Jardim Marialva, bem em frente à Praça do Relógio, para ser tóxico nem para engabelar senhorzinhos pascácios e calvos; e agora jogam aquilo em sua cara pela televisão. Coisa esquisita, desconfortável.

Volta o programa, sob aplausos da plateia.

Hora de dona Tuca falar. Magnânima, ela rememora o relato comovente da ativista exuberante no bloco anterior. Relembra os infortúnios por ela sofridos nos ambientes em que passou e denuncia a perseguição infligida apenas por ser do jeito que é, ou por apresentar-se em sua plena naturalidade ancestral; depois, a bondosa banqueira vira-se à esquerda e pondera o caso do rapaz casado com o holandês; arremata dizendo “puxa, como homem é tóxico, não?”. Por fim, ela não cita qualquer exemplo próprio — talvez a modéstia a impeça de usar a si mesma como case —, mas diz como “a sociedade não tolera mais homem tóxico e todo esse machismo retrógrado. A gente precisa agir nas causas do problema”, afirma, olhando aos dois com convicção. Frase forte, que arranca aplausos gerais.

A moça e o rapaz assentem levemente com a cabeça. A câmera abre e eles miram em dona Tuca, com olhinhos suplicantes, como a dizer “por favor, a senhora nos ajude nisso”. Tuca Seráfico, a dona do banco Tupy, faz cara de quem está lá mesmo para livrá-los de homens tóxicos e fazer um mundo melhor para todos. Porque, embora fosse muito rica e nem parecesse a mulher mais rica do Brasil segundo a Forbes, ela era acima de tudo uma pessoa consciente de seu papel social. E é de gente assim que o mundo precisa.

2

Termina o programa e Paulino Eiras de França Júnior tinha umas camisas para passar, as que ele vestiria para trabalhar na semana porvir. Desliga a tevê, abre a tábua de passar, liga o ferro na tomada, e coloca o seletor na posição “tecidos delicados”. Quieto, fica a pensar naquele negócio de homem tóxico. Nunca tinha ouvido falar nisso. Será que ele era um homem tóxico? Matutava enquanto separava as camisas de tricoline do cesto para passar a ferro.

Na verdade, França lembrou-se do gerente da agência, o Milton Devisate. Aquele sim pegava pesado. França já vira duas meninas saírem chorando em direção ao banheiro depois de ele jogar na cara delas as metas não cumpridas do mês. A agência 3702 dígito 9 do Jardim Marialva era repleta de correntistas antigos, na maioria aposentados; e uns tempos atrás, Devisate esteve na berlinda, pois o Tupy, lá na central da Faria Lima, já havia mandado um recado ao gerente: ou a agência dá lucro ou fecha de vez. Porque é assim que funciona nos bancões: a agência tem uma meta de lucro mensal própria — pois cada agência representa um centro de custo isolado das outras — , e os funcionários devem vender os produtos do banco aos correntistas para baterem a meta de faturamento, bancarem o custo operacional da agência, dar lucro como unidade de negócio e assim manter a equipe empregada. Essa era a ordem da central e ponto final.

No fim das contas, o bancário banca o próprio salário, embora nenhum gerente diga isso abertamente à equipe ou comprometeria a confiança de todos, conforme o RH orientava. Coitados, os oito funcionários da agência 3702 dígito 9 achavam que o banco Tupy pagava seus vencimentos desde a tesouraria, com toda a generosidade. Ledo engano: o salário vinha das próprias vendas de planos de capitalização e empréstimos consignados que eles mesmos faziam. Aposentados aliás eram as vítimas perfeitas para isso, pois não faltavam velhinhas a obedecer servilmente à “moça do banco”: quando pegavam um empréstimo meio forçado, diziam em casa ter dado ouvidos à tal moça do banco: “ela disse, eu fiz. Ela, a moça do banco.” Nunca falhava. Naquele mês, porém, as duas moças tiveram dó das velhinhas ou sabe-se lá o que aconteceu. Então, deu no que deu: Devisate, o homem tóxico.

Sim, Devisate era tóxico, França agora sabia. O cara era implacável com esse negócio de metas a bater. Ele se lembrou de outra coisa, inclusive: rolou um comentário no passado, “Deus me perdoe”: o Devisate chegou a gerente ao surrupiar taxas inventadas em contas-corrente de clientes que quase não movimentavam o dinheiro. Pegava um tiquinho daqui, outro tantinho de lá. Somava tudo, batia e superava as metas assim. Um belo dia e pumba!, é promovido a gerente. Diziam isso, comentavam lá e cá nos corredores. França não podia provar nada e aliás temia tocar no assunto. Mas que tinha a pulga atrás da orelha, lá isso tinha.

Por sua vez, ele deixara de bater a meta duas vezes alternadas, sempre compensadas no mês subsequente. Por sorte, a central da Faria Lima incluiu na estratégia de vendas o saque do cheque especial e isso veio muito a calhar para os funcionários, pois, se tem uma coisa que todo correntista faz é cair no cheque especial. Graças a Deus a pressão das metas passara um pouco, e ele não precisava mais bancar o bookmaker da zona leste e vender sorteios pela loteria federal a velhinhos desavisados. Nem a velhinhos, nem a pascácios, nem a calvos. E outra: ultimamente o Devisate nem andava tão tóxico: a julgar pela reforma que a central mandara fazer na agência, mudando o carpete marrom mofado para o granito cinza, parece que a turma da Faria Lima andava feliz com a agencinha 3702 dígito 9 do Jardim Marialva, em frente à Praça do Relógio; principalmente a bondosa dona Tuca Seráfico, a dona com consciência social do banco Tupy.

3

Ao fazer os vincos na manga da camisa com o ferro de passar, França se dá conta de outra coisa: o Tupy não contratava gerentes mulheres, exceto nas agências do Oca Tupy dos bairros nobres, divisão premium dedicada à clientela de alta renda. Nas agências de bairro, porém, apenas homens ocupavam as gerências. E eles — França se dá conta — costumavam ser tóxicos pra valer com aquele negócio de bater metas. Confrontados, viviam acusando a central, sempre a central que os pressionava, alegavam. Pois é: não era apenas o Milton Devisate que soltava perdigotos a semana inteira e chegava a mandar colegas praquele lugar depois que a agência fechava ao público; funcionários que vinham transferidos de outras unidades relatavam como o Tupy parecia fazer vista grossa com outros gerentes — todos homens e todos tóxicos. Sim, todos eles. Era meio que um padrão.

Alguns clientes que ganhavam salário mínimo reclamavam aos funcionários como deixavam o limite do cheque especial deles tão desproporcionalmente alto que podiam comprar um carro zero quilômetro à vista se quisessem; e alguns compravam mesmo, caíam em tentação. Então, a dívida contraída crescia como bola de neve e os engoliam vivos. Não raro, filhas apareciam acompanhadas de seus pais idosos nas agências e pediam para cancelar empréstimos consignados; a orientação que a central da Faria Lima passou era para conceder um segundo empréstimo para cobrir o primeiro, e todos usavam simuladores eletrônicos que convenciam os velhinhos como aquela era a melhor opção: pagar uma dívida pior com outra melhor. A central do Tupy implantara um moderno sistema de simulação automática e a família se convencia: entravam com um empréstimo, saíam com dois; e esticavam o prazo de vínculo com o banco, que os acorrentavam a si o máximo possível.

Fazia sentido? No caixa, sim. A cada trimestre, Devisate recebia o relatório e reagia com aquele jeitão dele: o banco estourara de lucrar mais uma vez. No mês passado, ele até recebeu uma caneta dourada da central, dizem que banhada a ouro, por estar há um ano superando as metas sem parar. Ninguém dizia o montante exatamente, mas a julgar pelo entusiasmo do sujeito, não devia ser pouco. Mesmo para França, o bônus gordinho que ganhou no último trimestre indicava que a coisa andava muito bem no Tupy. Imagine só para o gerente, cujo sorriso chegava quase à nuca ultimamente. Imagine então a quantas não andava a central do Tupy, o grupo todo, lá na chique Faria Lima…

Já a terminar de passar a última camisa, França pensa se, com aquele faturamento todo na casa dos bilhões trimestrais, não custaria muito ao Tupy evitar tanto homem tóxico nas gerências, como bem protestara dona Tuca na tevê. Poxa, seria justo. Aliás, será que ela sabia daquilo? Será que a central da Faria Lima a informava de tudo que rolava nas agências de bairro?

França tinha certeza que não: certamente ela não sabia daqueles homens tóxicos espalhados nas agências do Tupy a intimidar as colaboradoras, e muito menos devia sonhar com aquelas maracutaias todas de empréstimo sobre empréstimo nas costas de velhinhos aposentados. Sim, porque ela pareceu ser uma pessoa muito boa e do bem na tevê, ao ajudar os outros e ao patrocinar ONGs solidárias país afora. Ela dava o exemplo.

“No fundo, gente bondosa assim merece ter a riqueza que tem”, França conclui ao pensar em dona Tuca, “e Deus sabe o que faz: por isso os gerentes nunca vão chegar aos pés dela.” Ele termina de passar as cinco camisas da semana e já as pendurava nos cabides quando deixa escapulir uma última opinião, em voz alta, para encerrar bem o assunto da manhã: “sabe qual o problema? É que gente boa igual ela é sempre ingênua demais.”


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/8/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *