Eles sempre nos intimidaram, nos repeliram ou lhes fomos indiferentes. Mas o “museu de grandes novidades” chamado Brasil chega até a combatê-los, agora. Como nunca antes, precisamos discutir a relação dos brasileiros com os livros

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Cena 1. Em Rondônia, sob as ordens do governador do PSL, Coronel Marcos Rocha, e do secretário Suamy Vivecananda Abreu, a Secretaria de Educação lista uma série de livros a serem recolhidos imediatamente das escolas públicas do Estado. De leque amplo, na lista figuram obras que vão de Machado de Assis a Caio Fernando Abreu, passando por Euclides da Cunha, Edgar Allan Poe, Nelson Rodrigues, além de — o comunicado frisa bem — todas as obras de Rubem Alves (ex-pastor presbiteriano que renegara a fé protestante antes de abraçar a carreira de escritor e acadêmico), entre muitos outros. O governador, do mesmo partido do presidente Jair Bolsonaro à época da eleição, diz-se evangélico da Assembléia de Deus. Fim da cena 1.
Cena 2. O presidente Jair Bolsonaro, numa das costumeiras coletivas de imprensa improvisadas no pátio do Palácio do Alvorada declara, sem mais nem porquê, que os livros didáticos voltarão a ser como os de outrora, a estampar em suas capas a gloriosa bandeira nacional, a letra do hino brasileiro, e finaliza dizendo que os livros didáticos contém, em suas palavras, “um amontoado de muita coisa escrita”; para depois garantir que, em sua gestão, trataria de “suavizar isso aí”. Fim da cena 2.
Cena final. Sob a alegação de instalar um inédito gabinete de primeira-dama, o presidente toma uma decisão igualmente inédita: desmonta toda a biblioteca do Palácio do Alvorada. Nenhum presidente fizera algo do tipo, mesmo na ditadura militar. Nas redes sociais, vazam fotos a mostrar livros raros e edições de valor inestimável empilhadas pelo chão e estantes totalmente removidas do local, como se por ali não houvesse mais do que um incômodo e inútil entulho. Perguntado a respeito, com a delicadeza que lhe é característica o presidente tranquiliza à incomodada imprensa: “nenhum livro vai embora, vai ficar tudo lá”, como a dizer “isso não é da conta de vocês, mas tudo bem, eu respondo”. Antes, porém, repreende aos repórteres por se ocuparem com o desmonte da biblioteca (por ser pública e importante, quem sabe?): “vocês só se preocupam com besteira”. Cai o pano.
Mais que ilustrativas, as três situações acima são sintomáticas. Livros seriam ao mesmo tempo perigosos, repletos de palavrório inútil e um monte de entulho a ocupar espaço à toa. Equação estranha. Fariam parte do mesmo fio condutor três atitudes tão díspares em relação aos livros? O que posturas tão diferentes entre si teriam em comum?
Vejamos. Na cena 1, prevalece certo obscurantismo pré-iluminista: o pavor de que idéias perigosas possam virar a cabeça, subverter almas juvenis. Quem quer que tenha urdido a proibição das obras literárias em Rondônia — e voltado atrás, após protestos nas redes sociais país afora — certamente não lera nenhuma delas, ao menos não sob o rigor exigido ou a mínima educação literária necessária. No máximo, fez-se lá uma busca apressada e conveniente num Google, e misturou-se tudo numa farofa de suspicácias e preconceitos: ciscou-se uma cena gay ali, esbarrou-se num questionamento à religião acolá; talvez houvesse naquela obra uma luta popular por direitos sociais (olha o esquerdismo aí!) ou noutro rejeitou-se o casamento tradicional, de véu e grinalda (nunca! em defesa da família!).
Mais que ilustrativas, as três situações acima são sintomáticas. Livros seriam ao mesmo tempo perigosos, repletos de palavrório inútil e um monte de entulho a ocupar espaço à toa. Equação estranha.
De acordo com os sábios e entendidos de Rondônia, tais obras poderiam perverter a cabeça dos pobres estudantes, afastando-os do bom caminho — caso as lessem, o que dificilmente ocorreria, e por várias razões que não cabem aqui. Pouco importa: que tais livros sequer estejam disponíveis, eis o melhor remédio. Caberia a pergunta: quais seriam então os bons livros para a juventude? E sob quais critérios?
Vamos à cena 2. Bolsonaro rememora uma distante imagem dos livros didáticos de sua infância, com a bandeira e o hino nacional neles estampados. Lembra das capas somente, bem entendido: nada disse a respeito do conteúdo daqueles livros. Entretanto, ele mesmo se queixa do “montão de coisa escrita” dos livros didáticos atuais, logo na sequência da fala. Que dizer? Há tantos erros compactados, embutidos no confuso raciocínio do presidente, que levaria um artigo extenso só para tentar explicar, ponto a ponto.
Talvez algum defensor corresse em defesa do amado mandatário e trouxesse à baila o chamado conteudismo das apostilas escolares atuais, mais voltadas a fabricar campeões do vestibular do que enfatizar conhecimentos de fato relevantes. Entretanto, sofrem desse mal o material das escolas particulares, e não as públicas, vítimas do oposto, da falta de conteúdo. Sim, a discussão é necessária e existe há tempos. Mas não é bem disso que Bolsonaro fala. A questão de fundo é outra.
Se examinarmos bem, o presidente replicou ali uma noção rasa do papel da escola, muito comum no Brasil: o de que ela devesse tratar de questões práticas, promover o ensino de ofícios “úteis”, e só abordar um tantinho assim a parte teórica. Segundo essa mentalidade, a escola se dedicaria ao ensino profissionalizante, com algum esporte no meio. O toque de chef bolsonariano seria o patriotismo compulsório, de quartel. Tudo porque, afinal, a direita brasileira considera a escola A Grande Modeladora de Comportamentos, para o bem ou para o mal; logo, esse negócio de muita idéia abstrata escondida numa montanha de textos não passaria de lero-lero a ser empurrado goela abaixo da garotada. Que mal há nisso? Pois justamente aquela massa de textos é que fabrica a militância de esquerda. Claro, está na cara. Portanto, que nem se dê o trabalho de ler tudo aquilo: com tanta coisa escrita, o esquerdismo há de estar embutido naqueles textos de alguma forma. Batata. Esse Paulo Freire e seus ardis…
E a cena final. “Um espaço imenso desses, ocupada com um monte de livro velho, cheirando a mofo”. Pode-se imaginar um possível pensamento de Bolsonaro, ao passear pelos corredores do palácio num momento fugidio, a subir e descer escadarias e dando de cara com aquele lugar: “desperdiçar um espação bom desses apenas com… livro? Ninguém lê isso! Vá me dizer que a Dilma lia alguma coisa daqui? O Lula eu sei, nunca entrou nessa sala! Ok, talvez o Temer se escondesse aqui. FHC entrava também, mas para se exibir. E o Sarney, se lia alguma coisa, logo ficava maluco e acrescentava zeros na moeda. Um monte de bobagem isso daí! Tem Google hoje em dia pra quê? Livro é coisa do passado. Tudo besteira.” Soa verossímil.
Os exemplos acima ilustram somente três situações das muitas que recobrem nossa tortuosa relação com a leitura. Medo, desprezo, raiva de livro, até — livro enquanto objeto, mesmo, sem entrar no mérito dos conteúdos, sem ler nada. Basta um volume — capa, lombada, páginas com palavras impressas — para intimidar ou incomodar. Mistério: livro ora é bicho perigoso ora não vale nada e não passa de besteira pré-internet.
De fato, o Brasil nunca foi conhecido exatamente como uma nação amiga dos livros, o que explica em boa parte nossa incivilidade — nosso maior problema. Nossa relação com os livros sempre foi estranha, problemática. E o problema ganha contornos diferentes ao longo do tempo, como vimos. Mas por que lidamos de modo tão esquisito com livros? Difícil encontrar uma explicação única e cabal. Tentemos refletir um pouco.
Paira certa mentalidade obtusa no país quando se trata de ler. Em geral, a leitura não nos é tão natural quanto escutar música ou passear ao ar livre. Desde cedo, aprendemos que livros são criaturas sisudas, graves e muito, muito importantes. Crescemos com os livros a nos meter medo, a repelir-nos. Há uma tensão presente. Parece que as páginas escondem sortilégios, feitiços reservados somente para iniciados. Então, para vencer essa “tensão do livro”, apelamos às saídas mais fáceis: os ignoramos, somos indiferentes a eles, como se à leitura houvesse sempre algo melhor e mais importante a fazer.
Paira certa mentalidade obtusa no país quando se trata de ler. Em geral, a leitura não nos é tão natural quanto escutar música ou passear ao ar livre. Desde cedo, aprendemos que livros são criaturas sisudas, graves e muito, muito importantes.
Na verdade, por baixo desse medo de livro esconde-se nosso desapreço em cultivarmos o espírito, em melhorarmos interiormente, como pessoa. E como cada um copia a atitude do outro, o vício torna-se senso comum. Como todo senso comum confere segurança interior, sensação de normalidade e de sanidade ao indivíduo, como transforma maus hábitos em bons pela simples força da repetição, tudo que contrariar esse costume arraigado causará desconforto mental e será combatido com preconceitos irracionais, com atitudes defensivas e até agressivas. Postura típica que engendra disposições totalitárias, uma vez chegado ao poder, a primeira coisa que o preconceituoso às letras faz é atirar janela abaixo toda abertura a ideias, ao conhecimento. Defende-se delas o sentimento totalitário, custe o que custar.
Tudo isso explica em boa parte a postura anticultural do Brasil de Bolsonaro e de uma recente extrema-direita tupiniquim a pipocar de todos os buracos, buracos digitais especialmente; uma turba hoje mandante a pescar, nas águas profundas do obscurantismo e da ignorância, suas prevenções refratárias e burras, revelando seu desprezo ao saber, cujo maior portador são principalmente os livros, bem como as universidades, os acadêmicos, os intelectuais, os cientistas: todos tratados como novos bruxos de uma Idade Média jamais vivida no Brasil, já que o país sequer existia com tal naquela época. São eles — com suas explicações conceituais, seus enigmas científicos, seus postulados sabotadores da pátria — os culpados pelos males do presente. Queimariam a todos, se pudessem? Difícil saber. Mas já vimos esse filme numa certa Alemanha nazista. Boa companhia não é.
- Continua na parte 2

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(Selo criado por Beth Spencer)