Encontros e desencontros: a difícil relação do Brasil com os livros (parte 2)

Maurice Sendak, “The Big Green Book” (1962)

Tempo de leitura: 4 minutos

Vira e mexe o tema reaparece: “por que o brasileiro não lê”? Consultados a respeito, especialistas são praticamente unânimes (ou repetidores uns dos outros) no parecer: falta educação. O que em bom português significa “falta escola”. Será? A explicação não convence. Afinal, todo brasileiro que um dia passou pelos bancos escolares não vive exatamente uma relação de amor com os livros, salvo raras exceções.

Falta mais o exemplo, na verdade; modelos de comportamento. Ler é antes de tudo um ato de afeição: se alguém de quem gostamos ou admiramos de alguma forma cultiva o hábito da leitura e ama os livros, tal postura nos permeará de algum modo, e os imitaremos nalgum momento, seja na infância ou na idade adulta. Depois da simples imitação, caminharemos com as próprias pernas e faremos nosso próprio roteiro de leituras. Não importa o tipo, se clássicos universais ou o jornal do dia. Leremos algo, por hábito.

No entanto, raros são os lares brasileiros onde a leitura esteja presente de modo natural e amigável, sem traumas nem fetiches. Raras são as casas, mesmo as mais humildes, onde haja num cantinho, a repousar despretensiosamente, uns volumes surrados para quem quiser folheá-los, experimentá-los vez ou outra. No Brasil, o mais comum é a maioria das pessoas passar a vida tão indiferente aos livros quanto à existência dos tamanduás-bandeira. Não dão a menor bola e imaginam não precisar disso — e vivem mal assim, obrigado.

O outro lado da moeda também existe. Um preconceito que diz: “livro é coisa de intelectual, acadêmico, doutor; livro é coisa de gente formada, de nerd”. Vejamos um trecho de Lima Barreto:

… [Policarpo Quaresma] não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que merecera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era formado, para quê? Pedantismo!”

Pedantismo. Se achar o tal. Querer aparecer. Rótulos de que podem ser alvos aqueles que lerem apenas por gosto, pelo simples prazer de saber algo mais. Saber maior que incomodará quem já estabeleceu para si estar pronto e acabado, nada mais restando por acrescentar ao pensamento, cuja banal “experiência de vida” basta: o retrato acabado da mediocridade. Doutor Segadas era assim. Leitor não “oficialmente credenciado”, talvez Policarpo incomodasse ao medíocre clínico por imaginar no major um possível desejo secreto de ascensão social, urdido em silêncio, no interior da casa. Precavido, doutor Segadas não podia admitir que alguém lesse por alguma razão não interesseira: “tem algo aí”. Assim pensa o medíocre: lê-se apenas por força ou necessidade, no polo negativo; lê-se para conseguir algo, no polo positivo. Para o mesquinho, tudo é mesquinho.


Ler é antes de tudo um ato de afeição: se alguém de quem gostamos ou admiramos de alguma forma cultiva o hábito da leitura e ama os livros, tal postura nos permeará de algum modo


Existe também o vício de natureza oposta, o da pseudo-cultura livresca. Falsos leitores que no fundo não gostam de ler, há quem almeje prestígio social, entrar em círculos sociais importantes, e se utilizam de leituras protocolares apenas para obter determinados fins — acadêmicos, profissionais, midiáticos, etc. Neste sentido, lançam mão de leituras de almanaque, de orelhas de livro; decoram nomes, citações, autores, e os guardam na manga, para sacar na hora oportuna, uma carta curinga. Afetados, tais tipos pensam por verbetes, e não conseguem aplicar o suposto saber adquirido às circunstâncias reais da vida, adaptá-las à realidade e derivar o conhecimento. Não raro na sociedade, estes tipos foram retratados no conto Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, no qual um pai ambicioso aconselha a seu filho, prestes a tornar-se bacharel. Diz o pai a seu filho:

“Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. […] De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. […] Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! — E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.”

A Teoria do Medalhão, título do conto, consiste em ler apenas o suficiente, jamais para produzir idéias próprias, mas para coletar somente aqueles ingredientes simples, prontos ao saque sempre que a situação exigir. Leitura, neste caso, serviria de tática: deverá ser útil na casca, superficialmente. Leitura pouca, que forneça material suficiente para se usar nos salões e jantares bacanas, nos encontros de prestígio, apenas para causar impressão de intelectualidade e render benefícios socioeconômicos.


Referências bibliográficas:
— BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17ª ed. São Paulo: Ática, [s.d.].
— ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. (grifo meu)



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