Literatura
é bobagem?

A MAIOR, a melhor e mais importante obra de literatura poderia ser considerada bobagem: qualquer um que vença as duas mil páginas de Guerra e Paz após o ponto final do último parágrafo poderia fazer cara de tédio, fechar o volume e suspirar:

— Quanta bobagem…

Mais: qualquer um conseguiria, sem dificuldade, ler um diálogo de Sócrates e bocejar:

— Quanta encheção de linguiça, quanta besteira…

Declare que algo é bobagem, e ela o será — ao menos para a pessoa em questão.

Se uma grande obra literária, um clássico, fosse considerada bobagem na época da publicação, a obra nem chegaria ao nosso conhecimento. Queimariam-na lá mesmo naquele século e nem sonharíamos que um dia ela existiu.

De que maneira uma obra adquire importância ao longo do tempo? Depende de aprovação instantânea no tempo da publicação? Como se constrói um consenso em torno da obra que a define inequivocamente como clássico?

Difícil responder algo além de vaguezas tipo “são clássicos pois tocam a humanidade de todas as épocas”. Porém, desconfio de duas coisas:

1. Se os chamados clássicos não chegassem ao nosso conhecimento com este mesmo rótulo, fama e recomendação, mas como coisa comum ou algo pior, a maioria encararia assim mesmo aquelas obras: descartáveis, desprezíveis, indignas de atenção.

2. Se obras da literatura comercial fossem propagandeadas como clássicos, certamente como clássicos seriam tratados.

Quem se daria ao trabalho de examinar o valor de um Tolstói, se fosse tachado de romancistazinho pretensioso? E se Dostoiévski fosse considerado um lunático de confissões banais, com aquele psicologismo amador? E se dissessem que o texto de Thomas Mann se perdia num ramerrão enrolatório, “porque não diz logo o que quer dizer?” E se acusassem Goethe de moralista, que aquelas suas maximazinhas bem poderiam aplicar-se a ele mesmo, “quem ele pensa que é?”

“E daí, aonde você quer chegar? Quer dizer que as obras clássicas da Grande Literatura Universal não possuem realmente o valor que lhe dão?” Claro, claro que possuem, quem sou eu para negar uma coisa dessas? No entanto, convenhamos, suas famas (merecidas e indiscutíveis) as precedem quando chegam ao nosso conhecimento; não fosse assim, ninguém lhes daria a menor bola. Este é o ponto.

É perfeitamente possível deduzir que:

a) Ao longo da história, obras que seriam consideradas clássicas se perderam. Seja por guerras ou cataclismos (a biblioteca de Alexandria ilustra bem isso), seja porque seus autores, talvez geniais, foram sumariamente desprezados ou ignorados em seus dias.

b) Obras incontestavelmente clássicas hoje em dia foram massacradas pela crítica de ilustres imbecis, que ditavam o válido e o não válido naquelas dias. Estas obras injustiçadas foram resgatadas tempos depois, por um verdadeiro milagre. Por outro lado, milagres assim não contemplaram a todos que o mereciam e muitos tesouros em potencial se perderam.

Diante disso, esboço um corolário: obras se tornam clássicas não só pelo seu valor intrínseco, mas também considerados pela montanha consensual que se ergue em torno delas.

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