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Não sei o que deu na dona Lúcia que um dia foi me chamar lá em casa. Quer dizer, foi chamar minha mãe e pedir que eu fosse brincar com o Gil, filho único dela e do pai que trabalhava na Voith (o pai fazia questão de dizer que trabalhava na Voith; devia ser importante a Voith). O Gil estudava na minha escola. Não vou dizer que era um amigão, não. Mas era legalzinho, tranqüilo, o Gil.
Também a dona Lúcia era amiga da minha mãe (colega: minha mãe dizia que amigo é uma palavra muito forte e que a gente tem colega; amigos são poucos). Mas a minha mãe fazia a feira com a dona Lúcia toda quinta, então ela deixou eu ir brincar lá, rapidinho. Foi bem tranqüilo. E outra, a casa dele ficava na rua de baixo, bem perto. Lá nem passava carro direito.
Na hora eu fiquei admirado do tamanhão daquele quintal, nos fundos, porque o acesso era por um corredorzinho estreito que mal passava um Fusca. A casa do Gil ficava bem lá atrás, depois de um corredor compridão. Não era a casa principal. A casa principal era a grandona de cá, uma cor de mostarda com jardim na frente. Quem morava nela era a dona Elza, que além de velha era viúva, pelo menos todo mundo dizia isso.
A dona Elza dava um pouco de medo porque ela ficava enfiada naquela casona e quase não saía de lá. Tinha uma capelinha no jardim e ela acendia várias velas de sete dias, daquelas grossas que nunca apagam. Era esquisita. Outra coisa, ela usava calça de homem, social. Ela mandou arrumar as calças do falecido pra caber nela, acho. Outra coisa que eu me lembro dela (é meio chato de dizer, mas fazer o quê?): quando a dona Elza passava, subia um cheiro de mijo. Acho que ela fazia nas calças, coitada. O cheiro era forte, desculpa falar.
Mas a dona Elza ficava lá na casa maior. A gente ficava aqui no quintal brincando: embaixadinha, golzinho; depois, jogar bafo; depois, Super Trunfo. Nossa, o Gil pirava no Super Trunfo. O dele era aquele de caminhão, mas aqueles dos Estados Unidos tudo cromado, com pintura de fogo. Aqui no Brasil só tinha aquelas jabiracas da Mercedes, aquela da frente redonda que solta fumaceira. Os do Super Trunfo eram tudo altão, quadradão, gigante.
Eu só fingia que jogava porque sabia bulhufas de cilindrada, torque, cavalos HP não-sei-que-mais. O Gil ganhava, lógico, e isso deixava ele mais a fim de brincar daquilo. Eu achava chato. A melhor parte era soltar pipa, peixinho principalmente. Peixinho era mais legal, porque ninguém queria cortar peixinho. Lá no alto, o peixinho ganhava do pipão. Era desbicar, cortar e aparar, já era. Então ninguém tentava cortar a linha da gente. Era bem legal. Mas às vezes não tinha muito vento ou sei lá, daí o Gil não queria saber de peixinho.
A dona Lúcia pegou confiança na gente e nem ficava vigiando muito a brincadeira. Às vezes, ela saía pra fazer alguma coisa lá fora, ia no banco, no supermercado. Deixava a gente lá, brincando. Como era pertinho de casa, não tinha segredo: se me enchesse o saco brincar, eu voltava pra casa. Ficou combinado assim.
Uma vez a dona Lúcia saiu e deixou a gente com a dona Elza, a meio doida da casona. Ela falou que tudo bem, olhava a gente. Olhava nada, ela nem saía daquela casa. Naquele dia, eu lembro até hoje, a dona Elza ouvia na maior altura uma música do RPM, aquela loiras geladas vêm me consolar.
Então o Gil ficou meio esquisito, meio desconfiado. Chamou pra ir até o quarto dos pais dele.
Não, ela não tinha idade pra essas músicas, o que é isso. É que ela era meio surda, coitada, e botava o rádio no último volume no programa do Paulinho Boa Pessoa. Daí passou a música do RPM. Nossa, aquilo tocava toda hora, até enjoava.
Então o Gil ficou meio esquisito, meio desconfiado. Chamou pra ir até o quarto dos pais dele. Tinha lá uma daquelas camas com baú na cabeceira, acho que das Casas Bahia. Ele falou: “se liga nisso”. Levantou a tampa do baú, tirou travesseiros, cobertores, e mexeu lá no fundo. Tirou umas revistinhas. Eu fiquei com o coração acelerado de medo. Acho que não devia mexer com aquele negócio, não sei, parecia sujo, proibido. Ele senta na cama e começa a folhear as revistinhas, e eu ali, sem graça: o cara com a boca na mulher, a mulher com a boca no negócio do cara. O cara tinha um bigodão e parecia pilantra, mas a moça nem ligava, não sei. Nem vou falar o resto, isso-naquilo-aquilo-nisso. O Gil falava um monte de palavrão pra fingir que manjava de tudão, fingir que estava acostumado. Mentira, até parece. Aí ele ouviu um barulho lá fora e guardou tudo rapidinho no baú de novo.
Eu fiquei com medo porque achei que ia sobrar pra mim. Eu sempre achava isso. Não sei, eu tomava bronca sem motivo. Minha mãe contava pro meu pai e ele dava a surra logo pra se livrar e não perder o jornal. E se o Gil mentisse, e se ele dissesse pra mãe dele que fui eu? Mas como eu ia adivinhar que tinha aquelas revistas lá no baú? Sei lá.
Eu sei é que não quis mais brincar com o Gil. Falei pra minha mãe que não queria mais. Não contei nada daquilo pra ela, tá louco? Também ela nunca tocou no assunto. Morreu, passou. O que será que aconteceu lá na casa do Gil? Pensei um tempão. A gente tava de férias, nem vi ele na escola pra perguntar.
Sei que depois os pais do Gil compraram uma casa e se mudaram dali. E o segredo foi embora junto. Nem demorou muito e a dona Elza morreu também, coitada. Os filhos venderam o casarão cor de mostarda com jardim na frente, daí vieram, derrubaram tudo e fizeram outra casa enorme lá.
* * *
Depois de um tempo, minha mãe deixou sair na rua sozinho, brincar com os moleques. Mas eles eram meio folgados. Eu não gostava, não. Tinha um terreno baldio ali perto, bem na frente da casa do seu Ítalo. O seu Ítalo mudou do casarão depois que ficou viúvo e alugou a casa dele. Quem morava lá agora era uns uruguaios. O marido, Gualter, tinha uma Kombi e vendia ovos na feira. A casa toda fedia a ovo, eu me lembro: é que depois fui lá brincar com o filhinho deles às vezes. Mas depois falo disso. Agora eu ia brincar de aventura no terreno baldio da frente. Eu era o Indiana Jones, eu explorava a floresta perigosa. Floresta só de capim e pé de mamona, mas tudo bem.
Um dia, eu vi uns papéis rasgados lá num cantão do terreno. Fiquei curioso. Não tinha ninguém olhando. Fui ver o que era. Era revistinha rasgada de sacanagem (minha mãe falou que sacanagem é palavrão). Mas tinha um monte daquilo. E tinha umas revistas escrito International que só tinha umas loiras. Não parecia do Brasil, não, porque o peito das mulheres era da mesma cor até na ponta. Era diferente. Eu fiquei olhando, o coração acelerado. Era errado, mas sei lá, eu via. Era estranho. Aquilo me chamava.
Não contei pra ninguém. Ficava meio tonto com aquilo, meio bobo alegre. Eu nunca contava nada pra ninguém, porque todo mundo ia falar mal, dar chilique. Ninguém sabe conversar direito essas coisas. Então pra quê, né? Piorar tudo? Melhor ficar quieto.
Lá no terreno baldio eu vi as folhas rasgadas algumas vezes. Mas uma vez eu fui mexer numas folhas debaixo de um bloco quebrado. De repente uma aranha armadeira saiu correndo atrás de mim, juro por Deus. A armadeira ataca a gente, ela corre atrás. Eu saí num pinote que nem doido até a rua. Acredita que ela saiu do terreno e veio atrás de mim, a desgraçada? (Minha mãe falou que desgraçado é palavrão, não pode falar desgraçado). Daí eu peguei um pau da rua e taquei nela. Foi de longe, acho que ela não morreu, só dobrou as patas pra dentro. Fiquei na calçada esperando, até que um Chevette bege passou por cima dela. Filha da mãe.
Então depois disso eu fui brincar na casa do seu Ítalo, aquela alugada para os uruguaios. Eles tinham um molequinho, deram um velotrol pra ele e pediram para eu ir brincar lá. A casa era grande, na esquina, tinha um quintalzão gramado, um limoeiro que dava pra subir. Era até legal.
Que graça tem amarrar a mulher e abusar dela amarrada? Meu Deus. Aquilo me deixou mal, viu.
Um dia, a Raquel (a uruguaia lá) me pediu pra buscar o cigarro no criado mudo do quarto. Ela só fumava o Plaza. Só que eu não achei o maço onde ela falou e, pra não perder viagem, abri a gaveta do criado mudo pra procurar. E o que tinha lá, chuta? Revistinha de mulher pelada. Nossa, parece perseguição. Nem abri nada, mas lembro da capa: uma moça de costas, pelada, lógico. Estava ajoelhada e amarrada com cordas com uns caras em volta. Eu lembro bem disso. Que coisa. Que graça tem amarrar a mulher e abusar dela amarrada? Meu Deus. Aquilo me deixou mal, viu. A Raquel via aquele negócio? Mas pra quê?
Passou, e chegou o fim de ano. O Gualter (o uruguaio) tinha um depósito de ovos numa salinha improvisada. O cheiro ali era insuportável. Aí eu fui lá buscar não sei o que e vi um bolinho de papéis ali, preso num elástico. De longe pareceu o Super Trunfo do Gil. Eram calendários de bolso. Cheguei perto e estava virado do lado das datas, meses, tal. Quando eu virei, era tudo de mulher pelada, um monte. Eu lembro de uma coisa: vou chamar de peruca. Era cada perucona ali. Será que ele ia dar aquele calendário pra freguesia? Imagine minha mãe recebendo um daquele na feira.
Então foi assim que eu conheci mulher pelada, sem querer. Conheci nas fotos, pelo menos. Na minha casa nunca teve aqueles negócios, não que eu saiba. Ah, não mesmo. Fora que isso nunca foi assunto lá em casa, nunca, nunca, nunca. Meus pais nunca falaram disso com a gente. Mas também, de um jeito ou de outro a gente ia ficar sabendo, mesmo; eu acho que era por isso que eles não falavam. Esse aí foi o jeito que eu soube.
Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 40 (19/1/2025)

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