É CONFORTÁVEL ser cínico, à primeira vista. O cínico olha para uma pessoa, situação ou idéia, e lança sobre elas sua suspicácia corrosiva, sempre pronto a enxergar malignidades ocultas no objeto de seu cinismo, malignidades as quais, imagina, os demais não notaram.
O cínico sente prazer na insinuação maliciosa. Atribui dolo a qualquer um, exceto a si mesmo: se houver qualquer hipótese de erro alheio, ainda que remota ou não comprovada, o cínico não titubeia: delirante, aponta mil maldades, na máxima extensão possível, envolvendo seu acusado num poço de sujeira imaginária. Para o cínico, erro não é acidente, não pode ser; é sempre algo deliberado e proposital.
Antes de emitir suas sentenças, o cínico não dá-se o trabalho de examinar caso a caso, conhecer as circunstâncias e as particularidades, fazer distinções entre coisa e coisa, pesar atenuantes, considerar contradições e aceitar que, para compor a narrativa que formula, podem faltar dados fundamentais. Caso dados faltantes apareçam, é possível que a tese do cínico evapore-se, se esfarele completamente, como sopro num punhado de farinha. Por isso, o mais rápido possível o cínico constrói uma montanha de calúnias, associações comprometedoras, insinuações levianas e irresponsáveis, de modo que o acusado, mesmo se comprovar sua inocência depois, não possa recuperar a reputação prejudicada.
Se, à luz dos fatos, a narrativa falhar por completo, o recurso do cínico será pinçar do ocorrido aquilo que ele pretensamente alertara. Além de apelar ao sarcasmo — a vingança dos impotentes e ressentidos. Usará o sarcasmo, nunca a ironia: esta é fina arte, recurso superior utilizado por quem, sereno, domina as impressões sutis e brinca com elas; o sarcasmo, ao contrário, oculta um sentimento mordaz de raiva ou amargura por baixo do tom satírico.
Cinismo é o efeito colateral das expectativas frustradas, do desapontamento com pessoas e situações. Quando algo que se esperava, ingenuamente e de boa vontade, não se concretiza ou se transforma para pior, cria um ranço no indivíduo que o leva à malícia ostensiva. É um mecanismo de defesa. Dá à pessoa a sensação de agora estar no controle de suas emoções: basta despejar hipotéticas maldades aqui e acolá, e pronto. Constrói-se uma fortaleza nas muralhas do coração, como nos castelos medievais, e um largo fosso pantanoso ao redor do castelo. O fosso pantanoso é o cinismo.
A angústia do cínico é que ele teme perder o sentimento ferido, a coisa que mais valoriza. Vive num estado permanente de desconfiança. Não esquece esperanças não atendidas, nem fatos negativos que desencadearam o problema. O cínico não perdoa a si próprio por ter sido ludibriado. Tem raiva de si por ter sido ingênuo, feito de bobo ou passado para trás. Ou, ainda, fere-o a humilhação de ter sofrido um vexame — como se só ele no mundo passasse por vexames. Se abandonasse a lembrança dolorida e simplesmente transformasse a experiência em aprendizado, poderia fortalecer-se.
Por trás do cinismo, há uma personalidade perfeccionista — quem sabe demasiadamente cobrada na infância — e que aprendeu a cobrar-se muito, também. O cínico imagina que todos os outros devem se portar da mesma maneira que ele: se renega um prazer a si próprio, detesta que outro se dê este mesmo prazer; se faz sacrifícios para alcançar um objetivo, não admite que outro possa alcançar esse objetivo sem aquele mesmo sacrifício; se participa de um doloroso ou concorrido ritual de iniciação para fazer parte de um grupo, requer o mesmo ritual a outros, e assim por diante.
A acidez e a mordacidade do cínico, se constantes, fará mal aos demais. Se bem que o cínico nunca se entende por tal; imagina-se alguém sábio, perspicaz, com discernimento agudo das personalidades e intenções. As injustiças do cotidiano parecem confirmar suas suspeições insistentes. Ele não é capaz de perceber bondade ao redor, exceto em idéias remotas, ou em fatos e figuras idealizadas do passado. Para ele, nada no presente jamais será verdadeiro, sincero e desinteressado. E esta sensação, a da inexistência da bondade, faz do cínico alguém egocêntrico, amargo e infeliz. Contudo, ele pode disfarçar a tristeza com tiradas de humor ferino que eventualmente divirtam as pessoas em torno, que o perceberão como um sujeito irreverente ou falastrão.
Entretanto, o cínico não é incurável. Está num estado intermediário entre a frustração passada e a realização futura. O cinismo é superado quando a experiência negativa, inerente à existência, é absorvida: quando conscientiza-se de que entre os extremos mal, de um lado, e o bem, de outro, há percalços inevitáveis na vida. Um pouco de cautela e ceticismo sempre é útil, obviamente. Mas no caso do cínico, baixar as defesas e as prevenções exageradas, rejeitar a malícia e notar a bondade, a beleza e a singeleza dos pequenos gestos pode ser reparador. Ingenuidade consciente é o remédio: faz brotar na alma a semente da magnanimidade, que é o extremo oposto do cinismo.