O inútil
do escrever

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Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

– João Cabral de Melo Neto, O artista inconfessável

Se uns sábios, ilustres e entendidos em geral me colocassem no centro de uma roda e, com veemência e gravidade peculiares, me apontassem seus dedos respeitáveis, dizendo: “você não tem razão, garoto; você está errado!”, eu, malgrado o susto que a assertiva coletiva me causasse no momento, me conformaria no instante seguinte. Não sofreria mal algum. Zero trauma.

E isso não porque, no fundo, eu os desprezasse com moralidade superior e quisesse, do alto de minha irrelevância semianônima, colocar-me como um profeta não reconhecido (como sói acontecer a profetas), alguém cujo fracasso lhe subiu à cabeça. Não. O caso é que não apenas concordaria com eles — vai ver não tenho razão alguma, mesmo — como não faria absolutamente nenhuma questão de desmenti-los. Não lutaria para estar certo e não estenderia os punhos em riste para soar convincente, aos perdigotos. Debates e embates me dão preguiça, Deus me livre. Toma, olha: é sua, fica com a razão todinha pra você. Faria assim.

Assumo, sou mais um dos muitos levados pela onda da liberdade de expressão digital. Esta fez e faz do mundo ocidental um lugar tagarela como nunca antes e amplia o “alcance” dos zés-manés formidavelmente. Daí que, entre as tantas vozes que se estapeiam para sobressair-se de algum modo da multidão e — glória das glórias — ainda faturam uns cobres por isso (bem-aventurado quem paga o leite e a gasolina com o que recebe por sua escrita hoje em dia), pois bem, em meio a tudo isso este serviçal esboça apenas alguma brincadeira literária enquanto armazena um romance não revisado na gaveta e planeja outros três faz um tempinho, já. A esperança é a última que morre.

De minha parte, respeito quem venda suas lindas razões da mesma forma que respeito quem venda churros ou pneus. Tudo é necessário de algum modo. Não sou exatamente contra o capitalismo. Mas, parece, quem vive de vender teses não aprecia muito que vez ou outra surjam engraçadinhos como este aqui, que se atrevam a escrever coisinhas algo curiosas e, como um camelô que monta a barraquinha na calçada e atrapalha o movimento da loja em frente, desviem parte da freguesia dela sem querer querendo: então, se aparece um gaiato, lá vai cascudo: “você está errado; você atrapalha!” Desista e vá embora, parecem dizer. Se conseguem espantar o pentelho, respiram aliviados. Menos um.

Mas este teimoso aqui escreve. Não sei bem porquê. Preciso, apenas. Clarice Lispector disse uma vez que escrevia para expulsar de si as histórias que lhe ocorriam. Expulsar, Clarice: perfeita colocação. Também expulso as caraminholas que me flutuam na cuca enquanto observo a vida passar. Há algo de terapêutico nisso de escrever. Ajuda a aliviar a carga. Pensamentos insistentes brotam, pesam; frases se formam e pedem a rua como o vira-lata deseja passear um pouco ao ver outros vira-latas com plena liberdade indo e vindo lá fora. Late, grunhe, se atira contra o portão — por também querer aquilo. Escrevo mais ou menos por isso: praticar a liberdade.

De modo que não preciso ser levado a sério, ó sábios e entendidos: descansai, pois. Porém, notem: até poderei. Não preciso ter razão, ó notáveis, mas vede: ocasionalmente a terei. E poderei também estar errado e dizer bobagens imensas as quais, uma vez reveladas, serão assumidas como tal. Passarei as vergonhas todas. Assumo: ao compartilhar nesta plataforma gratuita algumas linhas, quero obviamente ser lido por alguém além de mim mesmo. Não sou imune a vaidades, saibam — como tampouco os senhores o são, diz o pregador.

Por isso, nas pouquíssimas vezes em que sou confrontado pelo que escrevo, depois da surpresa e algum choque, acho graça. Porque falo do quê? Do que sinto, penso, observo, formulo. Escritores são assim, não? Expressam impressões autênticas (Benedetto Croce) e não há mesmo impressões erradas enquanto tal. No máximo, equivocadas. Ademais, não falo por apuds — “isto é aquilo conforme o teórico X cuja obra completa estudei, etc”. Respeito, mas de novo: não provo teses nem as elaboro a sério, não vendo certezas, não exponho fundamentos suculentos no varejão das ideias. Se querem saber, no fundo me acho um escritor vagabundo (não vagabundo escritor): desvinculado das rodas importantes, jamais cogitado para um chopp no bar dos bacanas do intelecto (porém, se um dia chamarem, aceito o convite.)

De modo que sou feliz assim, acho eu. Sigo levando — e o que vier é lucro. Eu disse lucro? Aí está, pode até ser… quem sabe um dia? Como disse, não sou exatamente contra o capitalismo. Ora essa. E algum camelô seria?




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

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