Assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Mais sérias que o mero factual

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A respeito de Dostoiévski e sua obra-prima Crime e Castigo, leitores ilustres e críticos em geral são unânimes em apontar um ingrediente que admiram na obra: a redenção de Raskólnikov, depois de desferir suas machadadas na pobre velha usurária e em sua azarada irmã.
Entretanto, Raskólnikov não me desperta qualquer simpatia, malgrado sua suposta redenção no final (ai, spoiler! já foi). O sujeito permanece cínico e indiferente ao crime cometido por toda a trama— exceto pela irritação causada pelo noivado da irmã, reação que no fundo sugere algo de fundo incestuoso a meu ver, e pelo cerco psicológico a que o submete o inspetor de polícia Rostinikov, quando o enquadra a fim de obter sua confissão. Raskólnikov não se arrepende do crime, contudo. Queria tão somente ser deixado em paz na sua loucura eremita, a despeito dos assassinatos praticados.
Como todo clássico, há que ler e reler Crime e Castigo. Contudo, acho estranho como ninguém — até onde eu saiba — destaque uma passagem singela do livro a qual tocou-me profundamente: quando a família do beberrão Marmeladov passa por apuros após a morte idiota deste, depois de cair de bêbado no chão e ser pisoteado por um cavalo. Desamparada, a família se vê obrigada a esmolar para descolar uns cobres e não morrer de fome.
A viúva de Marmeladov, coitada, imagina que conseguirá uma audiência salvadora com o príncipe, já que teria ela um remoto título de nobreza ancestral. Talvez delirasse. Mas caso fosse verdade, teria tal título alguma validade, alguma relevância? Seu apelo urgente à distinção era fruto do desespero. O caso é que tal audiência jamais acontece; e a mulher, sem alternativa, bota o filho pequeno para dançar e fazer macaquices na rua, enquanto a filha mais velha, Sonia — mocinha que afinal será a responsável por redimir Raskólnikov — termina por prostituir-se para ajudar a família.
Uma tragédia familiar desnecessária, lamentável, estúpida. Como todas as tragédias familiares, quem sabe? Até oonde sei, o evento passa batido pela crítica, centrada no protagonista e na tal redenção. Um desperdício.
Pois aquela passagem me marcou pessoalmente. Imagino como algo do tipo poderia ocorrer a qualquer família. Fico a pensar na responsabilidade que pesa sobre mim: jamais brincar com a negligência, como fez Marmeladov, sob pena de minha própria família terminar feito a dele, humilhada nas ruas por gente mil vezes mais indigna que ele próprio.
Bem, de tantas camadas de significado possíveis, especialmente esta depreendi de Crime e Castigo na primeira leitura. Certamente a obra tem a revelar muito mais numa próxima visita, pois assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Não raro, mais sérias que o mero cotidiano factual.
Viva os 200 anos de Dostoiévski. Viva Crime e Castigo. Viva a grande ficção literária, que é coisa muito séria. No bom sentido.

Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)