
Tempo de leitura: 17 minutos
1
Quando ouviu a assertiva do doutor Norton, o professor Zarzur mal acreditou em seus ouvidos: “ouçam o que digo, senhores. Em dez anos, todos comerão fezes humanas.” O cientista pronunciou a frase uma vez, mas ela ressoou três vezes na cabeça de Zarzur, girou como um papel que rodopia ao vento.
Não só Zarzur, mas toda a comissão ficou estupefata. Aquilo soava repugnante além de absurdo. Mais, era também uma piada de mau gosto e pueril, típica de criancinhas na fase anal freudiana, totalmente imprópria para um cientista tão renomado como Norton.
Ora, quem em sã consciência comeria fezes? Ia frontalmente contra a natureza humana. Foi o que disse Zarzur ao engenheiro social, depois de levantar o braço com inquietação. Incomodado por ser interrompido no início da apresentação, Norton o atende, irritado:
— Natureza humana, caro Zarzur? Defina natureza humana. Sei de natureza, ponto. O que é você agora, um carola libanês? — riu com desdém.
Não precisava ofender. Agora Norton dava-se ao deboche? Presunçoso, via-se no direito de tocar na recente conversão do velho professor e desgastar uma amizade de décadas, em nome da ascensão na carreira? O ego de Norton parecia-se àqueles balões de ar quente que precisam livrar-se dos sacos de areia para subir ao céu. Zarzur era um daqueles sacos, agora.
Quanto a Norton, o renomado cientista não saía das páginas dos jornais e estúdios de televisão; gabava-se de sua recente indicação ao Nobel, depois de ter sido laureado pela Royal Society de Londres no ano passado. Estava no auge, com efeito. Não obstante, sua resposta revelava uma empáfia lamentável. Não havia motivo para impostar a voz nem fazer pose num ambiente restrito, diante de pares tão preparados quanto ele — embora sem a mesma projeção pública, é verdade — como se estivesse diante das câmeras e de uma audiência em nível nacional.
“Comer fezes”. A frase era de um ridículo evidente. Não que Zarzur fosse algum naïve ou pudico, muito menos santo; sabia dos experimentos que ele mesmo fizera no passado e aliás lembrava-se como outrora empolgara um jovem Norton, ao explicar-lhe os meandros da mente humana, na época como ambicioso orientando. Zarzur ensinara a um sardento Norton como o comportamento podia ser programável, “embora nunca na totalidade”, o professor frisava bem este detalhe importante.
O próprio Zarzur tivera sua fase arrojada no início. Flertara com a inconsequência natural dos visionários, a qual pode ocorrer com muita facilidade, em particular na engenharia social. Hoje em dia, porém, era um ícone, consagrado e reverenciado pelos pares; contudo, sua cabeleira branquinha em roda da lustrosa calva não permitia nutrir as mesmas ilusões e ousadias de outrora. A idade conferiu-lhe certo pudor, um comedimento típico dos velhos, de modo que mantinha uma reserva ante as limitações da ciência psicológica e de tudo o mais que o homem descobre e implementa. Apesar dos êxitos, ele sempre apelava à cautela dos alunos.
Quanto a Norton, mesmo homem maduro atirava-se com ímpeto; portava-se como alguém cujo momento de brilhar chegou. Não por acaso: popstar da ciência, vivia na mídia e desfiava suas ideias com oratória convincente. Tinha carisma além de tudo e sabia ganhar a atenção da audiência leiga; treinara tanto nisso de oratória e expressão corporal que seus gestos se internalizaram, viraram hábito; apresentava-se como um mágico, como quem traz um ás na manga. O cientista dominava cada etapa dos processos que arquitetava, como um software elegantemente programado.
Embora não declarasse abertamente, pretendia-se um gênio no campo da engenharia social. Ambicionava ser o grande nome da matéria no século 21 como Kurt Lewin o foi no século 20. Sentia ser o homem certo para levar seu ramo de conhecimento a um novo patamar, e a comissão do Nobel parecia reconhecer isso ao indicá-lo. Era com tal segurança que falava agora aos interlocutores:
— Ora, engenharia social é uma questão de apertar os botões certos. E hoje, senhores, as oportunidades estão dadas: não há mais a religiosidade carcomida a atrapalhar nosso caminho. Há umas caricaturas de religião no máximo, mas que atrapalham nada ou muito pouco: digamos que elas aderem ao gosto da freguesia pois dependem dela. Ocidentais aceitam absolutamente tudo hoje em dia; estranham mesmo as tradições, sobretudo as religiosas.
Norton abaixa o rosto e leva a mão à boca, de repente. Suspira e ergue o queixo:
— Perdoem o riso, senhores; eu mesmo me espanto com os progressos que fizemos em poucas décadas. Pois se antes tínhamos de contar com mentes raras e geniais — aponta a Zarzur — hoje já contamos com a inteligência artificial. Vide os algoritmos das redes sociais: mapeiam gosto e consumo sem um único dedo humano a interferir no processo. A pessoa é induzida por um vetor binário e responde por um gatilho inconsciente. Notam a oportunidade, por que os chamei aqui? Cada um de nós temos talento e competência suficientes para desencadear o processo mais uma vez.
Doutor Norton prossegue em seu preâmbulo:
— Com efeito, nunca se tenta reprogramar uma Índia, uma Arábia ou uma China. Seria estúpido gastar energia e dinheiro — pois tudo neste mundo custa muita energia e dinheiro — em culturas tão milenares quanto arraigadas. Daí que nem se tenta. Mas quem precisa de orientais se há o Tio Sam tão individualista ou a Europa cada vez mais ateia e pós-cristã? Os países ocidentais são imensos recipientes esvaziados, senhores, sempre prontos para novos preenchimentos sucessivos e invisíveis. Quanto aos satélites na periferia do Ocidente, ora essa… são servis e ridiculamente suscetíveis, terreno fértil para toda sorte de experimentos. A América Latina é uma planta frágil e sem raiz que qualquer golpe de ar arrasta.
A plateia ouve sem esboçar reação. Norton adotava um tom acima do ponto, era notório. Se bem que nem tudo fosse vaidade. O cientista explicava as motivações profissionais e responsabilidades, como é praxe em toda a discreta ciência da engenharia sociocomportamental, conforme a designação técnica. Engenheiros sociais tem muitas satisfações a prestar, sobretudo a quem paga.
— Mudar modos de pensar e, em decorrência disso, o modo de viver de sociedades inteiras, é perfeitamente possível no Ocidente, de há muito. Todos aqui sabem como há seitas dedicadas a mudar os hábitos do séquito a ponto de levá-lo a cometer absurdos em nome da crença. Então, o que a ciência do comportamento faz é estudar, catalogar e apropriar-se de determinadas técnicas de estímulo e resposta extraídas dali, como o químico sintetiza o fármaco da exótica planta tropical. Mas antes de entrar no projeto propriamente, quero ouvir o professor Zarzur a quem fiz questão de convidar. Vamos recebê-lo com uma salva de palmas. Bem-vindo, mestre!
A plateia levanta-se para aplaudir a Ibrahim Zarzur, que levanta-se da poltrona com vagar e vai circunspecto ao tablado, lento e escrupuloso, como se ponderasse o que irá dizer.
— Passo a palavra ao senhor, mestre. Vamos escutá-lo, como nos velhos tempos. — Norton emprega o nível correto para não colocar-se abaixo do veterano em seu próprio show. O velho entende; ajusta o microfone e pigarreia levemente, espera o burburinho encerrar. Faz um gesto mudo de agradecimento.
— Agradeço o convite e as palavras gentis, doutor Norton. Olhe para vocês, meus amigos: que saudade… saudade dessa universidade, desse anfiteatro; saudade de cada sala, cada laboratório, cada corredor. Há vinte anos não venho aqui. Bem… não tenho nada de muito especial a dizer, caro Norton. Suponho que veremos aqui mais um trabalho brilhante, como é costume de sua parte. Perdoe a inquietação que tive ao ouvi-lo no início e que gerou minha interrupção. É que sua assertiva me chocou um pouco, devo admitir. Coisa de velho, talvez; coisa da idade.
Risos discretos na plateia. Zarzur continua:
— Me perguntei como o doutor convenceria as pessoas disso, pois dizer a frase comer fezes repele de imediato. Não questiono sua capacidade, longe disso, mas a fala me soa tragicômica, com todo o respeito. Um disparate pode minar a credibilidade de uma vida de trabalho e comprometer reputação, carreira, coisas pelas quais sei que zela muito bem. O senhor será um prêmio Nobel dentro de alguns dias, tudo indica. Ser tachado de maluco uma hora dessas? Arriscar-se num projeto estapafúrdio? Adoraria saber como tem considerado isso.
Harold Norton mal escuta o mestre e prende um bocejo de tédio. Assombra-se como o provecto Ibrahim Zarzur, uma mente privilegiada e brilhante, se mostrava agora incapaz de entender o mecanismo transformador e modelador de comportamentos. Justo ele? Os anos prejudicaram sua capacidade? Embora brilhante em tempos passados, o bom Zarzur nunca vendeu muito bem sua imagem. Sempre esteve nos bastidores e desprezava o marketing pessoal, em que pese o termo não existir naqueles tempos. De todo modo, Zarzur elaborava seus estudos eficientíssimos e contentava-se em manter o anonimato, oculto nos laboratórios e gabinetes.
Enquanto mal ouve o mestre a discorrer, Norton lembrou-se quando este escreveu a giz, pela primeira vez, um curioso termo no quadro negro: “soberba andrógina”. Depois, discreto com aqueles enormes óculos quadrados, explicou candidamente aos alunos: “O homossexo existe desde o alvorecer dos tempos: abrange de Alexandre Magno a nosso Rock Hudson. Logo, a modalidade pertence ao terreno da natureza”, disse o mestre. “ Mas soberba, notem bem, uma nova categoria mental e social chamada ‘soberba andrógina’, isso nós criaremos, bem aqui”.
Aquilo foi no mestrado, em 1974.
2
Foi uma bela aula, aquela: Norton lembra até hoje. A lembrança de Woodstock estava fresca na memória dos estudantes. Quando o professor apresentou a novidade todos riram, mesmo dois assumidíssimos da turma. O jovem Harold Norton, não; ele entendeu, enxergou o mesmo que Zarzur e entusiasmou-se no íntimo.
Pois não aconteceu de fato? Voilà: hoje é termo corrente na boca de governantes, consta em leis e jurisprudências, está nos budgets das corporações; é tópico obrigatório nas cerimônias do Oscar e, o mais importante, chega aos lares mais suburbanos. Tornou-se natural como o alvorecer. Então, o que era tudo aquilo diante do que propunha agora? Ora, ingerir excremento humano — substância perfeitamente orgânica e natural — não seria nada demais, nada de tão grave; apenas mais um passo dentre tantos. Chegava a ofender tamanha ingenuidade num tarimbado engenheiro social.
— Lamento ser o chato da festa, mas tudo tem limite, Norton — disse Zarzur, arqueando as sobrancelhas esbranquiçadas. — Perdoe me estender, mas nada do que fiz no passado humilhou ninguém. Houve um contexto, uma conjuntura. O Ocidente vinha do Holocausto, Deus do céu! Havia um excesso de testosterona dominante e furiosa no mundo, desordenada desde a Primeira Guerra e sucedida em poucos anos pela Segunda Guerra. Não fosse suficiente, surge a Guerra Fria e a ameaça nuclear aterroriza a humanidade. Aquela sequência dos diabos precisava ser parada, desmontada por dentro ou a humanidade estaria liquidada. Não foi algo romântico de se fazer. Foi uma medida necessária como toda decisão difícil. Assumo, orgulhei-me de minha obra. Mas isso durou até meados da década de 90, ainda na docência, quando vi as coisas frutificarem sozinhas na tevê e sem depender de mim. Vi meu próprio corpo teorético a vagar sem pai nem autor identificável. Ocorre que hoje, quando meu neto de treze anos exige que o chame de minhe nete, sob pena de magoar-lhe os sentimentos de gênero; quando me pede que o acompanhe a lojas da MAC para fazer compras e gravar seu videolog de maquilagem, vejo minha própria obra voltar-se contra mim. Dói-me saber que a coisa saiu de controle, sem chance de reversão. Jamais pretendi isso, Norton. Jamais quis mal à humanidade. Quis apenas um mundo melhor, mais justo e pacífico, nada mais. Por ora é o que tenho a dizer, senhores. Obrigado.
Zarzur termina a participação de modo melancólico e retorna ao lugar. É aplaudido timidamente. Norton tenta manter o ânimo do evento:
— Importante depoimento, caro Zarzur. Respeitamos seu desabafo e o compreendemos — dirige-se à plateia, de modo a evitar a comoção e o consequente deslocamento do show; emenda:
— Não vamos entrar em detalhes de ordem pessoal ou familiar. Questão de ética profissional. Depois, minha proposta é mais modesta e, como as do professor, muito necessária. Bem, senhores. Creio que é preciso detalhar o projeto, enfim. Os slides passarão nessa enorme tela aqui em cima, mas antes peço licença para pegar um humilde livrinho, bem ali.
Norton vai à mesinha de apoio com ar misterioso. Bate com a sola do sapato no tablado de um jeito dramático. Da prateleira do púlpito retira um voluminho surrado, de não mais que duzentas páginas. Mostra a capa aos presentes:
— Alguns amigos da velha guarda vão lembrar. Apenas 1.500 exemplares, para um círculo restritíssimo. Um deles é meu, exatamente este, devidamente autografado na folha de rosto. Veem? O título, inesquecível: “Fator Z: Engenharia Comportamental e Controle Social nas Democracias”. Ano de publicação, 1967; autor, um certo Ibrahim Saad Zarzur. Lembra-se professor? — o velho acena positivo com a cabeça. Norton fala num tom superior, com respeito de par e não de aluno:
— Os colegas conhecem bem a obra, mas há muitos jovens cientistas aqui, alguns muito emocionados por estarem na presença da lenda que é nosso estimado Professor Z. Natural. Rapazes, vocês não viram nada: permita-me ler o prefácio da obra, uma pérola inigualável que me arrebatou desde o início, quando ainda não passava de um nerd sardento e de aparelho nos dentes. Graças a este livrinho estou aqui hoje. Lerei o curto prefácio e será nada entediante, garanto.
3
Bem, aqui diz:
“Há muito Freud demonstrara que a natureza humana, este termo vago de que falavam os escolásticos, na verdade era psique: uma espécie de massa maleável, programável em cada ser humano. Não fosse assim, nenhum de nós seríamos educados por nossos pais nem adquiriríamos os costumes que eles nos legam e que carregamos ao longo da vida: costumes e hábitos que não nascem conosco, mas são assimilados e se tornam nosso modo de ser, ver e agir no mundo.
Do pioneiro austríaco para cá, a ciência psicológica evoluiu absurdamente. Vivo fosse, Freud se orgulharia de um Skinner, celebraria um Lewin, reverenciaria um Festinger. Até seu sobrinho Ed Bernays, do qual, consta, o tio sempre julgara um poltrão e veja: cada maldita empresa passa-se por honesta e até benquista graças ao sujeito, tido e havido como pai das relações públicas, técnica que, sabe-se, não passa de logro e empulhação conveniente.
Modelar comportamentos constitui a melhor medida a ser adotada nas democracias, sustento neste livro. Dizemos genericamente país ou nação, mas a exacerbação das identidades nacionais levou a tiranias genocidas neste século, resta provado. Assim, se a democracia é o melhor antídoto contra a tirania, há algo dentro da democracia que é preciso governar: a maneira do ser individual. A identidade singularíssima, isto é, distinta de indivíduo a indivíduo, é o melhor remédio para manter o regime democrático como único guarda-chuva a proteger-nos das intempéries do chauvinismo e do fanatismo nacionalista.
Dessa forma, é preciso singularizar até o último fio de cabelo de cada pessoa, distinguir uns dos outros até o limite, de modo a tornar a excentricidade o único padrão aceitável em si mesmo. Deve-se disseminar o desejo social de padronizar o não-ter-padrão. Neste “Fator Z”, proponho uma nova regra, que não substitua a anterior por força de lei; antes, promova um caudal de novas posturas e modos de viver, aspergidos diuturnamente via propaganda e comunicação social, de modo que a única característica similar entre as pessoas seja a única remanescente, qual seja, a humanidade enquanto tal.
Na prática, é preciso substituir a moral majoritária que enseja as disputas nacionais; é preciso fragmentar em pequeninos pedaços atitudes uniformes e tidas como aceitáveis nas comunidades renitentes; ao mesmo tempo, envergonhar toda reação contrária a essa mesma fragmentação. É preciso constranger os nostálgicos, desprovê-los de fibra, bani-los do convívio humano sadio e fazê-los temer a oposição ao padrão não-padrão. Assim, será considerado cidadão sadio e democrático aquele que transitar entre as múltiplas singularidades sem fixar-se em nenhuma delas como modelo, e os opostos se coadunarem somente pela via da civilidade, celebrando a diferença radical (ainda que incômoda, no fundo), ou silenciando-se, por coerção social e econômica. No limite, é preciso levar a aceitação irrestrita de todos os modos de vida, não importa que posturas ética ou estética apresentem. Então, criaremos a Outra Moral, a moral nova e definitiva das democracias: o Fator Z.
Críticos poderiam objetar, compreensivelmente: tal reprogramação comportamental não levaria à anarquia e ao caos social? De pronto, a resposta é não: a democracia é um regime não somente de leis, mas sobretudo de inúmeros regramentos não-escritos e coerções sutis, sobretudo as de ordem econômica. Com efeito, se não for possível eliminar todos os padrões conservadores de valores e pensamentos, será possível manter certa estrutura inescapável de controle superior sem rosto e nome, algo contingente e difuso, para que a represa não se rompa e o vilarejo não inunde: essa estrutura de controle será a própria economia e as ditas regras de mercado.
Todos precisamos comprar, vender, comer, morar, vestir etc. Por isso, precisamos todos submetermo-nos a certas regras que as relações econômicas se nos impõem. Então, se me perguntam qual a maior preservadora de consciências diante da fragmentação comportamental proposta nesta obra; se me indagam o que poderá controlar os impulsos mais agressivos e violentos, ou a licenciosidade mais irrefreada e contraproducente à sociedade, eu lhes respondo: é a economia de mercado e seu sistema subjetivo de punições e recompensas. E isso basta.
A fragmentação comportamental se dará na transformação do prazer em nova moral: o imoral de hoje será o decente de amanhã, como se decente fosse; e o prazer pelo prazer, o hedonismo liberto de culpas religiosas e compromissos tradicionais proporcionará uma tal elasticidade moral que a tudo incorporará e desencorajará de antemão a disputa, o embate, a luta discursiva. Nesta democracia moderna que se coloca, a testosterona combativa será a maior inimiga da boa governança.
Daí que é preciso manipular vontades, disseminar os novos valores em dois polos, um afirmativo e positivo e outro negativo: no positivo, mostrar como a nova modalidade comportamental é a melhor, a mais feliz, a mais desejável e aprazível; no negativo, inculcar nos refratários que resistir ao novo modo de viver será inútil, já que inevitável. Trabalharemos com os jovens nesse sentido, e eles formarão assim as gerações seguintes, sob nova mentalidade.
Por fim, sabemos como o ser humano tem a capacidade de se adaptar a tudo. Toda mudança repentina precisa ser operada primeiro na massa mais maleável. O animal abatido é aberto pela barriga, onde não há ossos nem tendões, apenas pele, gordura e carne, substâncias maleáveis: a lâmina entra e percorre macia, operando o que precisa. Por isso, começaremos pelos grupos mais frágeis e deslocados, pelos insatisfeitos sem voz na sociedade. Os atuais comandados e tutelados comandarão e tutelarão o futuro. Diremos como sofrem opressão e proporemos que assumam a liderança discursiva, a vanguarda, que tornem todo formal em lúdico, todo grave em sensível, todo varonil em feminil.
Não sei que homens teremos a partir daí. Mas sei que eles não buscarão a guerra, mas a conciliação, não por subjugação externa mas pela própria consciência, como se fossem eternos garotos de nove anos com medo de desagradar as mães. Toda mulher será essa mãe e todo homem será esse filho. A ser assim, não haverá mais embates, pois não haverá mais qualquer desejo masculino de guerrear para conquistar, mas uma disposição feminina inserida no masculino para a conciliação perpétua. O Fator Z veio para salvar a democracia ocidental para sempre.”
— Isso foi publicado em 1967. Fenomenal, não, senhores? De novo, peço uma salva de palmas para nosso brilhante professor Zarzur.
4
— Certo, permitam-me detalhar o projeto. Os slides vão passar aqui em cima. Bem, a matriz alimentar da humanidade precisa ser remodelada, como todos bem sabem. No plano alimentar, o que há de mais moderno e sustentável é o veganismo, que a princípio parece uma boa ideia, mas sabemos como a agricultura consome terra e água em larguíssima escala. Consumir vegetais e minerais não interrompe a contento o aquecimento global nem o extrativismo das fontes naturais, pelo contrário. No plano geopolítico, não podemos desprezar o inesperado: quando falávamos em ecologia na Rio’92, ninguém contava com o fenômeno China, que hoje, sozinha, responde por um sexto do consumo mundial de alimentos e recursos naturais.
Eis o que proponho: a reciclagem alimentar a partir das fezes humanas. Vemos aqui as opções de alimentos processados a partir de excremento: hambúrgueres, pães, sorvetes, do básico ao delicatessen; pode-se fazer de ensopados nutritivos a biscoitos recheados, numa gama que vai do gourmet ao caseiro, do industrial ao artesanal. Neste slide, vemos soluções inclusive para food service e gastronomia profissional, tudo com excelente durabilidade e custo reduzido; nesta versão doce, vemos creme sabor avelã para crianças desenvolvido a partir das fezes. Na versão desidratada, o excremento pode ser usado como tempero de pratos salgados ou como confeito para doces. Aqui temos croutons para salada, entre muitas outras opções e variedades, como os senhores podem ver nesta foto.
De repente, um jovem levanta a mão na plateia. Norton o deixa de braço erguido por um minuto, antes de deixar-lhe falar.
— Ahn, pois não, diga.
— Obrigado, professor. Todas essas imagens realmente são impressionantes, e ninguém diria que a matéria-prima é, bem… — o jovem disfarça um engulho — cocô humano. Imagino que essa informação constará nas embalagens, é óbvio. Concordo com o professor Zarzur, como se dará esse convencimento das pessoas? Eu nem teria coragem de falar disso com algum conhecido.
Norton ri sardonicamente. Diz, com ar professoral:
— Meu jovem colega, não me entenda mal. Vou explicar como se falasse a um menino de 16 anos com tênis sujos e mochila encardida, tudo bem? Lembre-se do que lemos há pouco, o Fator Z. Aplicaremos o Fator Z. Por isso temos a honra de ter aqui, presente, o criador da técnica que é um verdadeiro trunfo da engenharia sociocomportamental. Foi baseado na sua obra, cujo prefácio li há instantes, que tenho a solução para introduzir lenta, gradual e eficientemente a Coprofagia Voluntário-Induzida, CV-I. Eis a designação técnica. Você me dá oportunidade para passar à etapa de implementação, no próximo slide. Acompanhe-me: em primeiro lugar, trabalharemos no longo prazo. Um termo cansado, com efeito. Na prática, nosso horizonte temporal de implementação abrange uma década e meia. Descreverei as etapas. Tudo segue a clássica estratégia do Fator Z.
Doutor Norton pigarreia levemente e toma um gole d’água. Retoma:
— Primeiro, colocaremos a hipótese na mesa da forma mais chocante, repulsiva e absurda. Esperamos as reações todas, as censuras, as incompreensões refratárias e até a violência, que é sempre relativamente pouca. É um preço a pagar: mesmo a reação violenta, como ensina o professor Zarzur em seu Fator Z, é benéfica, pois faz nascer por si mesma a aceitação de outro lado. A aceitação virá por serenas explicações e diálogos preliminares, e a isso chamamos “estimular o debate”, diremos “por que isso incomoda tanto?” e coisas assim. Acuadas, as mentalidades se veem obrigadas a negociar. Chegada a etapa de negociação, o campo está aberto: mostramos que a aversão precisa ser mitigada e diluída mediante sugestões aceitáveis, emparelhadas às normalidades da vida. O absurdo deixa de ser absurdo quando colocado em pé de igualdade com outras situações comumente aceitas. Fazemos uma diluição nas percepções, entende? Adota-se o tripé certo, errado, certo, como o professor Zarzur ensina na obra: concorda-se com A, discorda-se de B, concorda-se com C. Quem discordar de A+B+C in totum será o maluco, o ignorante, o atrasado etc. Depois, nossas fundações mantenedoras patrocinarão espaços de prestígio na mídia, atrairemos vozes influentes; faremos summits com especialistas e trataremos da problemática alimentar com autoridades renomadas e agentes representativos da sociedade. Forjaremos a necessidade: traremos à baila diversos estudos e evidências científicas ad hoc, dando ao público dito esclarecido o que ele busca, ou seja, a verdade comprovada pela ciência. A imprensa faz o resto, meu jovem: nenhum jornalista de prestígio quer estar fora da vanguarda, da modernidade. Estar fora do costume é algo humilhante, é como estar fora do jogo. Respondido?
— Sim, obrigado — responde o rapaz, como se pensasse em mais vinte dúvidas que o espicaçam mas não consegue elaborar.
— Continuemos — Norton retoma. — Depois fabricaremos iguarias finas de nossos alimentos de base excrementícia e faremos eventos promocionais de pompa, com modernidade e elegância. Criaremos um movimento positivo e de afirmação, contrataremos personalidades de proa para o endorsement, alimentaremos o interesse e criaremos desejo. São as etapas naturais de toda propaganda que se preza. Iniciamos os testes de divulgação da CV-I a partir do próximo ano, ainda em caráter beta.
5
Dez anos se passam. Na Quinta Avenida, os passantes comemoram o tradicional réveillon nova-iorquino. Acima de todas as cabeças, telas e displays gigantescos fazem a contagem regressiva: 5, 4, 3, 2, 1. Feliz Ano Novo! Todos se abraçam e confraternizam, enquanto no alto, um espetáculo de fogos multicores simboliza a nova fase de alegria e esperança. Patrocina o evento com exclusividade a gigante alimentícia NeoVita e seu snack de sucesso internacional Pooplez. Todos recebem o petisco orgânico e o experimentam com satisfação, crianças, jovens e adultos.
O programa mais assistido da televisão americana é a sensação Feeding with Biofood, apresentado pela famosa chef e ativista alimentar Ruby Shyman. Ela introduz a alimentação CV-I nas escolas americanas. Na tela, exibe-se um sortimento de fricassês, quiches, cupcakes e snacks de encher os olhos, e que fazem a alegria das crianças e adolescentes. Os pais dos alunos aprovam a iniciativa e experimentam os quitutes, conscientes e satisfeitos, sem qualquer preconceito. Uma nova etapa da alimentação humana chega, enfim: é o que o reality show demonstra ao mundo todo, via cabo e streaming.
*
A exatos 800 quilômetros de Nova York, um senhor septuagenário adentra em sua cabana. É inverno e neva intenso lá fora. O homem traz um feixe de lenha, de uma madeira especialmente aromática que provém de uma árvore específica da região. Anoitece. Dentro, a luz da lareira torna o clima propício e intimista. Ali está o homem e sua noiva. Ambos se abraçam e se aconchegam ternamente diante da lenha a crepitar.
O homem é o prêmio Nobel Harold Norton. Acompanha-o a bela Helen, ex-aluna, vinte e três anos mais jovem. Desfrutam de um momento a dois. Laureado com o prêmio da academia sueca há uma década, Norton aposentara-se de vez. Mudou para os alpes, e hoje dedica-se a administrar os investimentos e a escrever as memórias, sem qualquer pressa. Além do que, a noiva causa em Norton o mesmo efeito que ocorre a qualquer homem mais velho ao relacionar-se com uma bela jovem: seu coração se rejuvenesce.
Parece ter voltado duas décadas no relógio da vida o laureado doutor. Oh, estava mesmo feliz o velho Norton: tinha uma doce vida de prazeres inofensivos e hobbies bem escolhidos que preenchiam os seus dias, livre de qualquer pressão externa ou responsabilidade mais séria. Não é para outra coisa que um homem trabalha por toda a vida, afinal.
— Vou preparar um chá, meu amor. Ligue a tevê, se quiser.
— Claro, querido — concorda Helen, sentada em cima da perna no amplo estofado.
Norton prepara um chá de maçã orgânica e canela. O cheiro adocicado preenche o ambiente. Enquanto serve a noiva, o âncora do telejornal chama a atenção:
“Ativistas pelos direitos alimentares protestam na capital colombiana: exigem a universalização da bioalimentação CV-I aos países do Terceiro Mundo. Confira na reportagem.”
Na enorme tela, vê-se que os ativistas protestam em frente à sede do Ministério da Agricultura em Bogotá, exigindo os mesmos direitos bioalimentares do Primeiro Mundo: “o corpo alimenta o corpo” diziam os cartazes, “o corpo faz, o corpo come”, gritavam. Todos estão com rostos pintados com o próprio bioalimento produzido em seus corpos para representar a causa da Coprofagia Voluntário-Induzida.
Depois, no estúdio da tevê, acadêmicos e ativistas debatem; âncoras explicam os benefícios efetivos da CV-I ao planeta; asseguram como esta não veio para substituir a alimentação regular, mas para somar-se ao esforço global na luta contra a desnutrição e o extrativismo de recursos naturais. Em seguida, reportagens apontam as vantagens dessa nova modalidade alimentícia, com depoimentos de renomados médicos e especialistas.
Helen assiste a tudo enquanto assopra o chá quente. Norton olha fixo a televisão.
Ela pega o controle remoto ao lado. Antes de zapear, não resiste fazer um comentário:
— Que gente louca, não é, meu amor? Essa gente sabe que CV-I é comer merda? Eles exigem isso! — meneia a cabeça e ri, inconformada.
— Pura loucura, querida. — Norton sorri e sorve o chá, sem dizer mais.
Helen recosta em seu peito e suspira. Olha-o desde baixo e pergunta:
— Eu jamais teria coragem de comer um negócio desses. E você?
— Eu? Não, o que é isso… pura insanidade. Esse mundo está cada vez mais louco.
Helen beija o noivo acaloradamente. Norton desliga a tevê.

Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)