O gordinho
do videogame

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Na rua tinha a turma e tinha o gordinho do videogame. O pessoal falava que a mãe dele era gerente de banco e acho que era a única mulher da vizinhança que trabalhava fora. Nossas mães eram só mães mesmo, e isso não era pouca coisa não.

Mas a mãe do gordinho do videogame era a única que trabalhava fora e saía de carro para trabalhar, um carro novinho e grandão igual ao do Antonio Fagundes na novela. Quase ninguém tinha carro na rua. O pai do Binho tinha um Passat cor de pamonha que derramava óleo e o pai do Zóio tinha uma Belina que parecia abóbora descascada. Só eles tinham carro. Mas a gente nem ligava pra isso, a gente nem saía muito do bairro. Tudo era pertinho: a escola era pertinho, o mercado era pertinho, a feira, a padaria, a banca de revista, o campinho. Tudo pertinho. A gente nem pensava em carro.

Acho que a mãe do gordinho não deixava ele sair na rua pra não se misturar com a gente. Mas a gente não era moleque de rua não, a gente só brincava na rua depois da escola. Eu nunca faltava na escola e só tirava nota azul. Eu até gostava de estudar, e também meu pai que trabalhava na fábrica de geladeira dizia que, se eu repetisse de ano, tomava uma surra.

Uma vez eu vi no comercial que perto do Natal a gente podia colocar uns bilhetes na camisa do pai escrito assim, “não esqueça minha Caloi”, mas só se passasse de ano. Meu pai falou que ele trabalhava muito e que estudar era nossa obrigação, que Caloi o quê. Daí eu disse que o Fábio — que era meio bacana igual o gordinho do videogame mas brincava com a gente — o Fábio ganhou uma Caloi Cross do pai dele. Só que depois que ele ganhou, não brincou mais com a gente: só dava pinote na descida e empinava a bicicleta lá no final da rua. Acho que ele corria pra ninguém chegar perto e pedir pra andar.

*      *      *

Um dia, a mãe do gordinho do videogame começou a falar com um ou outro menino da turma. Sei lá, acho que ela queria testar quem falava o melhor oi, fosse mais educado: quem falasse o oi mais educado não ia ser moleque de rua.

Acho que venci o concurso de oi educado, porque a mãe do gordinho foi falar com a minha mãe depois — que foi atender o portão secando as mãos cheirando a cebola no avental — e a mulher perguntou se eu podia ir lá na casa dela brincar com o gordinho do videogame: “ele tem um videogame”, ela disse.

Eu já conhecia videogame, ué. Queria o Atari que vendia no Mappin, mas meu pai disse que era caro e queimava a televisão. Quando meu pai dizia não, eu nem insistia mais. Porque birra ele acertava na cintada, não tinha frescura. Quando ele dizia não, aquilo sumia da minha cabeça, puf, nem quero mais. Foi assim com o Atari.

Então minha mãe me levou no outro dia pra brincar com o gordinho do videogame na casa dele. Ó, eu não gostava daquele moleque, não queria ir lá. Falei pra minha mãe e ela me torceu um beliscão, “fica quieto, se comporta”. Então fui brincar com aquele moleque. Bosta, viu.

Sentei no sofá que quase me engole de tão mole, eu não achava jeito sentar naquilo. No começo, o gordinho parecia meio legal. Mostrou o castelo de Grayskull todo completo dele e depois a coleção do Comandos em Ação. Eu sabia, via no comercial. Caramba, ele tinha tudo que passava no comercial. Eu via aquilo tudo afundado no sofá, daí ele pegava cada bonequinho do He-Man e me explicava o nome, como se eu não soubesse. Bobão. Eu assistia o He-Man todo dia, vi todos os episódios até repetir tudo de novo, claro que eu sabia tudo. Ele até confundiu o Ciclope com o Fera. Eu nunca ia confundir isso.

Todo brinquedo que ele me mostrava eu falava “legal”. Ele nem deixava eu pegar nenhum direito, fora que eu fiquei com medo porque minha mãe avisou “não mexe em nada lá, viu?”. Quem disse que eu ia mexer? Aquela casa parecia uma loja, meu pai não deixava a gente ficar mexendo em brinquedo na loja. Depois se quebrasse ele tinha que pagar.

Depois o gordinho falou “fica aí” e foi buscar alguma coisa na geladeira bem grandona da cozinha. Pegou uma garrafinha de vidro com Toddy lá, não sei o que era, meio leite meio sorvete. Ficou tomando. Quando acabou, ele me chamou para o quarto onde ficava o videogame. Engraçado, ele tinha uma televisão só pra videogame? Eu achava que ninguém tinha outra televisão em casa, só podia ter uma. Lá em casa só tinha uma Sharp, colorida. A gente assistia de dia, a mãe de tarde e o pai de noite. Mas o gordinho tinha um Atari com dois controles e uma televisão só pra ele! Muito boyzinho…

Daí ele aperta aqui aperta ali e liga o negócio. Pega um controle e diz que o outro tá quebrado, “essa droga”. Também, ele puxava a alavanquinha parecendo que tinha raiva, tinha pressa. Lembro do joguinho que apareceu na tela, Homem-Aranha: o Homem-Aranha tinha que subir no prédio sem cair. Bem legal, viu.

Aí entendi porque o gordinho não tinha amigo. Ele falou “eu sei jogar, quer ver, duvida? Olha o que eu faço, ó, ó.” Eu nem falava nada. Até quis jogar um pouco, me chamaram, né? Teve uma hora que ele cansou, daí o videogame parou, a tela ficou preta. Aí ele tirava o cartucho e enfiava de novo com raiva. Nem era meu videogame e eu tinha medo que estragasse. Se fosse lá em casa, eu já tinha levado uma chinelada.

Daí o negócio funcionou novo, e ele todo suado falou “ô, quer jogar aí?”, daí eu falei “quero”. Eu nunca tinha jogado, nem sabia segurar o controle direito. Mas mexi com calma, devagarzinho, e consegui. Deu certinho: o jogo começou e eu fui mexendo devagar a alavanquinha, depois apertava o botãozinho vermelho, mexia, girava a alavanquinha… o Homem-Aranha começou a fazer uns movimentos diferentes, bem legal. O gordinho não gostou, tomou o controle com tudo da minha mão e disse “sai, você não sabe jogar”, aí ele tentou fazer aquele negócio que eu fiz e não conseguiu. Ele tentou várias vezes, aí deu um socão na televisão e disse “esse negócio quebrou, acho que foi você, né” e eu não entendi nada mas fiquei com medo, será que eu fiz alguma coisa? Se minha mãe ficasse sabendo e contasse pro meu pai, eu ia tomar uma surra.

Depois a moça empregada chamou a gente pra almoçar e eu não consegui comer de tanto medo. Também a comida era diferente e muito ruim, não sei o que era aquilo. Eu queria arroz, feijão, bife e batata-frita que minha mãe fazia. Aquilo ela um negócio verde enrolado que eu quase vomitei.

Daí o gordinho falou “vamos jogar bola lá fora”, aí a gente foi pro quintal dele. Eu só jogava bola na rua e no campinho, jogar no quintalzinho era ruim porque não tinha espaço. Mas nessa brincadeira eu era melhor, daí falei “então vamos fazer um golzinho aqui, ó” e coloquei uma trave de vasos lá. Ah, eu dibrava o gordinho e ele suava com aquela bochecha toda rosa, aquele cabelo caindo na testa. Botei ele de bobinho e fazia um monte de gol e ele ficou com tanta raiva que puxou minha camiseta, quase rasgou. Depois ele falou “foi você, foi você” e eu fiquei com medo de novo. A camiseta estragou, já era, minha mãe vai me bater.

*      *      *

A campainha tocou e era minha mãe. Ela só olha com cara feia pra minha camiseta e não fala nada. Ia sobrar pra mim, duvida? Ela fala um negócio com a moça empregada e me leva pra casa. Fiquei esperando a bronca, a surra, não sei. Não aconteceu nada, ainda bem.

Na outra semana, a mãe do gordinho veio falar com minha mãe de novo. Achei que o gordinho me dedou, aquele cuzão (não pode palavrão, limpa essa boca). Não foi nada, ela pediu pra ir lá brincar de novo. Minha mãe disse não, não ia dar não. Então não fui naquele dia e não fui lá nunca mais.

*      *      *

Sei lá, por isso nunca gostei muito de videogame. Depois do Atari veio o Master System, depois veio o Mega Drive, veio o Mini Game. Nem pedi nenhum pro meu pai. Também, ele me deu uma bola igual a da Copa e uma camisa do Brasil do camelô. Depois do jogo, eu jogava bola na frente de casa, eu era o Zico e o Careca às vezes.

Depois eu comecei a gostar de gibi e comecei a desenhar tipo o desenho do gibi. Eu gostava de desenhar e gostei tanto de ler gibi que nem quis saber mais de videogame. Agora eu era o John Byrne, o George Pérez e o Frank Miller.

Um dia, quando minha mãe me deixou andar sozinho no bairro, fiz questão de passar na rua do gordinho do videogame, só pra ver. Nossa… o sobradão parecia abandonado, a pintura descascando, o portão enferrujando. A casa tinha uma placa de “aluga-se” toda gasta, torta.

Eu acho que a mãe gerente de banco não morava ali faz tempo. Ah, o nome do gordinho era Jonathan, viu. O pai dele nem sei, nunca vi.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 21 (12/5/2024)



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