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1
NAQUELE DIA, COMO TODOS OS DIAS, o relojoeiro postou-se diante da portinha de aço e abaixou-se com dificuldade. Puxou a chave correta do molho atado ao passador da calça e rápido a inseriu no cadeado de chão, girou, abriu. O ritual matutino escondia a dificuldade recente de agachar-se, compensada pelo gesto preciso e metódico, quase reverencial: desperdiçar movimentos era um luxo a que o relojoeiro não se dava mais, pois uma hérnia pressionava-lhe o cóccix ultimamente, de modo que o agachamento dava-se de modo cuidadoso para não travar a coluna.
Desde rapazinho o relojoeiro internalizara a máxima do velho pai, passado há três décadas: a de que na vida tudo pede jeito e força, muito mais jeito que força, o velho frisava. Ele aplicava o ensinamento paterno ao abrir cada relógio, a fim de reparar os mecanismos que garantiam o controle do tempo.
Seus modos também continham esse controle temporal nas mínimas coisas, e ele, como os relógios da relojoaria, portava-se com precisão, de modo que agora, na abertura da loja, o trinco abre suave e sem resistência ante o giro harmônico da chave. Nas mãos do relojoeiro, encaixe e movimento obedecem exatamente à regra para a qual foram projetados, em perfeita sincronia: a máquina como extensão do corpo.
Há seis décadas tudo começara. O entorno e as circunstâncias da cidade mudaram muito de lá para cá. Não obstante, por longos anos a relojoaria representou uma ilha de estabilidade em meio às transformações da metrópole. Ali, na Galeria Novo Século, há décadas confinado em horário comercial, o relojoeiro não testemunhou a passagem dos tempos lá fora, não acompanhou o acúmulo das novidades, o caráter das novas gerações nem a troca dos costumes.
Durante muito tempo, tudo parecia fixo e permanente na relojoaria. No entanto, tudo mudava lá fora: a entonação das vozes, os sotaques e as fisionomias diferentes que a cada dia aportavam na cidade. Enquanto isso, tudo igual no lado de dentro: o balcão em madeira de lei, a estreita vitrine, o cheiro característico do ambiente, a disposição das mercadorias: tudo igual. Lá fora, o tempo corria impiedoso e veloz: o centro da cidade tornava-se um revezar frenético de itinerantes, e se antes as transformações ocorriam de década em década, agora tudo virava outro cenário e situação em poucos meses.
Jurandir chamava-se o relojoeiro. Punha-se em pé agora, e, com a dificuldade dos anos, empurra acima a porta de aço. Olha num relance a vitrine: tudo ali. Nenhum sinal de arrombamento. A luzinha do alarme pisca vermelha no canto inferior, muda e preventiva.
Tinha gosto pelo ofício de vender e consertar relógios. Sacerdotal, no silêncio da oficina nos fundos, aprendera não só a reparar mas a respeitar as engrenagens e pecinhas dos relógios. Deus sabe a satisfação que tinha ao terminar os consertos, lacrar a tampa traseira, reorganizar no lugar certo as minúsculas ferramentas para mãos precisas, e ouvir de novo o tique-taque sutil, a passagem rítmica dos ponteiros. Então, naquele breve instante tudo se reordenava: um triunfo sobre o descontrole e a desordem.
Devagar o ofício incorporou-se ao homem. Jurandir internalizou o rito intrínseco da profissão, de unir exatidão à arte, perícia à beleza. Muitos que passavam diariamente pela galeria o conheciam, e sentiam de modo reconfortante que, afinal, não importam que intempéries desabassem ou que ventos tirassem as coisas de lugar, tudo voltava ao local adequado, à certeza e ao controle calmo, patentes na rotina do relojoeiro.
No início, quando ainda aprendiz do pai e os suspensórios escorregavam nos ombrinhos, a vida urbana pedia fregueses uma formalidade apropriada. Os acessórios realçavam a postura e os bons modos dos cidadãos, e os relógios faziam parte da indumentária: usá-los indicava o bom alvitre do cavalheiro e a elegância da dama. Sempre havia na loja um modelo adequado à estampa que cada um queria projetar. Damas e cavalheiros namoravam os modelos na vitrine, por dias; decididos, entravam no estabelecimento para experimentar o tipo escolhido, não sem antes cumprimentar ao jovem Jurandir, agora dono após o falecimento do pai, como mandavam a educação e a civilidade.
A Galeria Novo Século era reconhecida pela boa frequência, de gente sofisticada sem ser esnobe; pois não eram necessariamente ricos que passavam por ali. Os relógios, as joias e semijoias que Jurandir vendia, não só as alianças dos casais mas também os anéis, colares, cordões e pingentes certificados, tudo aquilo não se destinava à frivolidade, mas representavam algo além: materializavam o mérito, a recompensa a quem trabalhava dignamente. De resto, se os fregueses fossem melhor remunerados que os demais, aquilo justificava-se: seus ofícios requeriam um volume maior de estudos, preparos e leituras que permitiam o ganho e reclamavam por um galardão. Dourados e brilhantes não simbolizavam somente distinção, mas incentivavam o esforço.
Assim, a relojoaria tornou-se um pequeno marco no centro, por décadas a fio. Ver Jurandir ali, de segunda a sábado sempre no mesmo horário, dava ao passante a sensação de constância e estabilidade. Todos prometiam-se comprar um mimo dali nalgum dia, para presentear a si ou ao ente querido. Gerações frequentavam a relojoaria, pais, filhos e netos. A expressão serena do proprietário atestava a tradição, até que a fronteira do século 20 para o 21 foi finalmente atravessada.
2
O século 21. No centro da cidade, o barulho caótico impera: vendedores ambulantes esbravejam ofertas, as lojas berram pechinchas em microfones como uns desesperados. Palavrões de populares misturam-se às músicas obscenas dos marreteiros, voam como flechas no ar. Na avenida principal, sirenes de polícia se fazem ouvir cada vez mais. Perto da galeria, o bem vestir, o bem falar, a graça feminina e a cortesia masculina, tudo isso extingue-se, escasseia-se até a inexistência.
Na Galeria Novo Século, a vida sempre se manteve intacta a despeito da lenta decadência do centro. Por longos períodos foi assim. Hoje, não mais: as lojas vizinhas à relojoaria — a tabacaria, o sebo, o café, a perfumaria, a ótica, a alfaiataria, a loja de bolsas e carteiras — enfim, todos os comerciantes vizinhos comentavam entre si, lamentosos: como tudo mudou! E, diante da evidência, restava apenas concordar, não sem a sensação amarga da perda e da impotência ante a brutalidade dos tempos que chegam avassaladores.
Quem domina, a quem obedece o tempo? O hoje dá as costas ao ontem, e o mesmo fará o amanhã ao hoje, sem cerimônia. O novo século impõe-se, abrupto; cai como pedra na cidade. A paz urbana sempre foi uma criança frágil e vulnerável, e haverá sempre perturbações a dificultá-la, provocadas ou espontâneas — principalmente as primeiras. O século chegara à galeria, também. Clientes somem e lojas fecham; companheiros de lida do relojoeiro vão-se: ora do comércio, ora do mundo. No lugar, brota a gente ignara, que pouco liga aos referenciais de até há pouco.
A antiga freguesia ninguém sabe onde foi parar. A galeria recebe forasteiros desdenhosos, rústicos sem respeito pela história, sem conduta adequada: umas expressões embrutecidas, uns portes grosseiros, sem trato. A língua-mãe é maltratada com expressões cada vez mais chulas, e a comunicação se dá aos gritalhões e gargalhadas. Chegam também uns estrangeiros com ar tribal, Deus sabe de onde, a falar entre si por dialetos de enigma, de todo alheios à cultura que os recebe e acolhe.
E os antigos senhores que procuravam por maletas executivas na loja ao lado? Onde estão? Os frequentadores do café, a gente boa de papo à hora do almoço? Onde foram as moças bem trajadas das agências de turismo, elegantes e perfumadas, num tempo em que perfumes franceses era artigo raro deste lado do Atlântico? E quanto às damas com penteados trabalhados, que, a despeito dos decotes e insinuações ressaltados, a grossa aliança no dedo indicava, sobranceira entre anéis e pulseiras, sou uma mulher casada?
Não eram tempos tão inocentes aqueles, certamente não; mas havia um jogo sutil que combinava charme e recato, seriedade e beleza — como os relógios. Os relógios são assim: inovam, mas não perdem a essência. Mas agora, o encanto urbano inexiste: tudo se corrompe, os bons somem sem deixar rastro, levados por um turbilhão.
Jurandir mantinha-se na Novo Século como podia, por hábito e escrúpulo, pois, pensava, “homem deve manter a postura apesar de tudo”. Não era fácil. A relojoaria recebia agora a visita de uma repentina malta que ignorava elementos essenciais da boa educação: não diziam um por favor, com licença, bom dia, boa tarde, o senhor poderia me informar — essas trivialidades corteses. Andavam esbaforidas para lá e cá, como quem rouba um cavalo na estrada. Seus cheiros também lembravam ladrões de cavalos. E falavam como se falassem ao cavalo roubado.
Perguntam pelo preço de qualquer coisa por estalo na relojoaria, sem ciência alguma, não compram, jamais compram nada, comprar o quê, se mal se vestem, se mal comem? Olham a vitrine com uns olhos vidrados, como se vissem naves alienígenas em miniatura. Jurandir nota um curioso da vez a embaçar o vidro da vitrine com respiração ofegante, e lá de dentro suspira em desânimo. Espanta-se com aquelas caras — é indecoroso dizer — um tanto idiotas. Os fulanos perguntam o nome das marcas que estão gravadas bem à frente, e não sabem ler ou não se dão ao trabalho, e o relojoeiro faz as vezes de professor. E depois, nada. Compravam nada.
Pois no novo século ninguém liga para mais nada. Ninguém percebe o valor de ser honrado e respeitável. Ninguém sabe o que é ser pai de duas filhas bem-educadas com cada centavo ganho no labor de anos a fio. Ninguém sabe como é casar uma com um médico e estabelecer a outra no Primeiro Mundo, em Roma, casada com um engenheiro bem-sucedido. Ora, essa gente sabe nem de si mesma. Roubariam, se pudessem? Claro que sim. Mesmo sem ler um simples nome no visor de um relógio, roubariam. Gostam de tudo apenas porque brilha, atraem-se pelo coruscar, como moscas à luz. E em reação àquilo têm uns reflexos corporais, uns cacoetes, uns tiques, zero elaboração.
Fossem só os nativos… Jurandir lembra que a velha alfaiataria fechou e, depois de pendurarem uma placa de alugar durante meses, abriram ali uma casa de câmbio. Que coisa. Mal a inauguram, e para lá acorrem uns tribais que desprezam nosso idioma. Postam-se em frente, um magote deles, e conversam ugabugas com vozes cavas. Ocupam o entorno do chafariz principal da galeria, os bancos charmosos onde outrora sentavam-se as atendentes das lojas nos intervalos. Quase ninguém passa mais ali. Não há um policialzinho para dar uma espiada de leve, uma olhadinha só, custa nada. A polícia não existe quando se precisa dela.
De repente, um tribal alto e magricela posta-se em frente à relojoaria. Olha fixo desde fora. Jurandir estranha cá dentro. Que quer o sujeito? Repara o movimento? Estuda a rotina, quem é o dono, a que horas se vai? O relojoeiro coça a cabeça, intrigado. Logo chega um igual, um tipo robusto, diz sei-lá-o-quê e ambos se vão. Com o sobrolho cerrado, ele deixa o balcão e vai olhar, cauteloso: ambos se juntam ao magote da casa de câmbio. Todos têm smartphones gigantescos e telefonam a deus-sabe-quem naqueles dialetos. Coisa esquisita.
Dia seguinte, igual: lá está o sujeito a olhar e olhar. E assim prossegue a semana inteira: olhar fixo do magricela, chegada posterior do robusto; saem, juntam-se ao magote da casa de câmbio, telefonam e telefonam. Ora, é evidente, planejam um assalto. Cadê a polícia? Nem aparece, esquece dali. Os sujeitos notaram a facilidade, é óbvio.
*
Naquela manhã em que Jurandir se abaixou com cuidado e retirou a chave correta para abrir a relojoaria, eram sete e meia da manhã em ponto. Ele sempre foi um dos primeiros a abrir o estabelecimento na Novo Século. Levanta-se com dificuldade, ergue a porta e olha a vitrine, quando uma voz surge atrás de si, quente à sua nuca: siô!
Jurandir vira-se assustadiço, e vê um grande turbante de chita amarelo-girassol. Uma mulher, toda revestida do mesmo amarelo. “Agora é uma mulher tribal, Deus do céu.” Disse aquele siô a Jurandir, e aponta um relógio da loja que mal abria.
Jurandir não se conforma: olha só quem o aborda. Inacreditável. O novo século chega a ele pessoalmente. A galeria acabou de vez. Não bastassem as várias placas de imobiliária perfiladas: tabacaria, alfaiataria, sebo, loja de artigos de couro. Tudo fechado: aluga-se, vende-se, passa-se o ponto. Tudo deles agora, sem medo, sem polícia. Devem estar confortáveis com tanto apoio e facilidade. Apenas sete e meia da manhã, e logo quem aparece?
A mulher do turbante girassol não vai. Não arreda pé, espera a resposta. Jurandir fala um preço de cabeça, seco, nem olha o adesivo na vitrine. Mal a encara. De reflexo, nota apenas o amarelo-girassol em alto contraste, um borrão. Aliás, por que ela mesma não vê o preço na etiqueta? Não sabe ler? Como uma criatura chega num país estrangeiro sem saber o mínimo do idioma? Informada, a mulher se vai, muda. Não agradece.
3
Chega correspondência de Roma. A filha de Jurandir manda uma carta com cartões-postais mais três fotos das netinhas. Uma delas escreve com letrinhas tortas e desenhos coloridos, “a nonno Jura, con affetto, Anna.” É a mais velha, recém-alfabetizada. Jurandir ri sozinho, os olhos rasos d’água. Que graça de netinhas, que meninas lindas. Nas fotos, vê-se que são felizes, saudáveis, sorriem como quem tem nada para se preocupar.
Ah, a Itália… Jurandir iria a Roma muito em breve. Sonhava com isso. Mas não passaria vergonha com o idioma: sem ninguém saber, ele adquirira um guia de conversação em italiano. E tem lido devagarinho um livro italiano, de Pirandello, que achou no sebo. Também lê Zagor em italiano, que a filha enviava pelo correio. Treinava frases para quando fosse a Roma visitar a filha e as netinhas, ambas de olhinhos verdes e cachinhos de mel, com umas sardinhas no rosto que eram um charme só.
Comovido, guarda a correspondência no envelope com cuidado para não estragar os selos. Imagina a futura viagem e vê cenas na cabeça, quando, lá fora, ressurge o magricela tribal de novo. “Desgraçado!”, Jurandir xinga em pensamento. O figura olha e olha. Desconcertado, o relojoeiro aperta a mandíbula, nega-se a aceitar aquilo. “Não só quer assaltar, mas intimida, afronta. A qualquer momento vem a surpresa.” Pouco depois chega o companheiro corpulento e ambos se vão.
Jurandir passa as mãos na cabeça. “Meu Deus do céu… olha pra mim, minha postura, meus cabelos brancos. Sempre tive boa reputação… não combino com essa gente. O que fazem aqui? Por que me ameaçam? Sou honesto, nunca errei um troco nem roubei ninguém. Nunca vou atrás de rabo de saia, mesmo sendo viúvo. Tenho duas filhas bem casadas, uma com um médico e outra com engenheiro, em Roma. Cadê o respeito?”
— Rispetto! — Jurandir vai à fachada e diz alto a palavra em italiano, sem dar por isso. — Rispetto! — brada de novo ao magote pouco acima, com o punho cerrado. E retorna ao balcão, arfando.
Respeito. Quem não o tem, conquista. O relojoeiro era pacato? Sim, sempre foi. Mas bobo, nunca. Ninguém planejaria um assalto assim, com a maior tranqüilidade, encarando sua loja com marra e abuso, como se o dono fosse nada, como se nada pudesse e se assustasse com cara feia. Fica lá o sujeito intimidando, dia após dia, como se dissesse te cuida, vovô ou coisa parecida? Deixe estar. Jurandir sabe se cuidar, ah, como sabe. “Ele vai ver só”, garante.
O relojoeiro nunca deixa de cumprir um dever, sobretudo de consciência. “Não vai ser fácil assim, não, tribal. São quarenta anos de relojoaria e não quarenta dias.” No fundo, porém, sente-se mal por desgastar-se com aquilo. Perder a calma e a paz de espírito era o que mais detestava.
Noutra manhã surge de novo a mulher do turbante, logo cedo. “Eles se revezam, é isso”. Está num vermelho-fogo, em forte contraste. Entra na loja aos sacolejos. Mira um relógio que a bem da verdade nem era dos mais caros, e pergunta, direto, sem cerimônia: quan-quié-pufavô?
O relojoeiro informa o preço, ríspido. Ela diz ubigadu e sai. “Que figura… ela tem algo com o sujeito mal-encarado? Tudo muito estranho. Pelo menos agradeceu.” Mas Jurandir tomará alguma providência, não é possível ficar assim. Chegou a hora, não pode esperar mais. Questão de honra. Tudo no seu lugar, com sua ordem, sua função. Vale para os relógios e para a vida: tudo tem um porquê, cada peça corresponde a outra; tudo tem uma lógica que faz a vida girar. E ao defeito, conserta-se.
4
Segunda-feira. Um perfume feminino adentra a relojoaria. Súbito, a memória de Jurandir viaja: lembra uma das mulheres das agências de turismo lá dos anos oitenta. O velho século volta doce e cítrico agora, relembrando gente agradável e decente da antiga galeria. Que saudade… de repente ele se lembra de uma delas pela fragrância, uma em especial que, olha… ele ficou muito balançado certa vez. Aconteceu sem querer. Se a esposa soubesse à época… Nossa Senhora, aquilo foi uma loucura…
Foi um dos dias mais emocionantes na vida de Jurandir. A mulher deixara um relógio suíço de bracelete, uma raridade. Ela precisava consertar um dos elos e não imaginava que Jurandir pudesse fazê-lo. Mas, que mulher… o relojoeiro lembra como se fosse hoje: alta sem exagero, com maçãs do rosto salientes e nariz esculpido a cinzel, um desenho perfeito. Ela o olhava direto nos olhos, sem se intimidar, olhar firme e penetrante de quem sabe o que quer.
Bonita e marcante. Jurandir sentiu o baque, pra valer. Há mulheres assim, cientes de seu poder sobre os homens. E ela era astuta; falava com voz de sereia, para agradá-lo e obter o melhor dele. Embora forte, aquele olhar tinha uma doçura de fundo, um quê de menina meiga. Parecia haver uma fonte de amores sob aqueles olhos cor de mar.
A mulher era curvilínea, generosa onde interessava, e as madeixas louras onduladas recaíam num busto sarapintado, farto e imponente, duas conchas sob os bojos do vestido. Abaixo, os quadris sinuosos inspiravam volúpia e respeito ao mesmo tempo, respeito pela pura substância feminina. Uma fêmea primordial, sem dúvida, de onde a feminilidade partia. Puro instinto, doce fúria.
Ao receber o relógio-bracelete, dourado e impecável, a mulher o experimenta. Estende o belo braço desnudo no vestido estampado. O relojoeiro tremelica de alto a baixo, palpita e disfarça. Ele nunca esqueceu o que ela disse, algo que, pela primeira e única vez, fez Jurandir perceber que era um homem, um ser humano real com sangue nas veias, e não somente um tipo funcional, um mero consertador. Ela disse, melíflua: você é um homem raro. Imagine! Ele, raro! Ninguém jamais disse isso a Jurandir. Ele nunca ousou pensar uma coisa dessas. Quando ela se vai — ele lembra até hoje — vira-se e o olha de modo prolongado, como se dissesse “deixe tudo e venha comigo.” Que mulher era aquela?
E se ele fosse? — Jurandir se pergunta desde então. Sua vida jamais seria a mesma, certamente. Mas na hora ele não foi: pessoas muito corretas não agarram certas oportunidades na vida, o excesso de escrúpulo atrapalha. Diante de chances que duram segundos elas não sabem como agir. E tais chances nunca mais ocorrem.
Aqueles olhos o chamaram e ele não foi. Tinha ela, além dos atributos físicos, um sobrenome italiano que ele anotara no certificado de garantia. Devia ser uma primeira descendência ítalo-brasileira, os traços não negavam. E talvez ele estivesse na Itália com ela hoje em dia, há uns bons anos, muito antes da filha. Quem sabe… Jurandir suspira fundo e vai conferir quem passou na galeria com aquele perfume. Quem seria? Tenta encontrar, mas já foi. Não pôde ver.
5
Dia seguinte, o sujeito olhando. “Maldito marginal. Não há mais o que confirmar, esperar. Esperar o quê? Ele apontar uma arma na minha cara e anunciar o assalto? Os outros lá do bando, aqueles defronte à loja de câmbio lhe dão cobertura, daí a confiança do bandido. Domínio territorial, é isso. Querem mostrar quem é que manda, agora. Não… não, senhor.”
Agora, o relojoeiro daria o troco. Sua história estava ali, a história de seu pai estava ali. Há dias o sujeito ameaça, afronta, intimida? Jurandir fará algo por si. Ele que experimente, o meliante não perde por esperar. Preparado, ele poderá encará-lo e não ficar ali encolhido, envolto na penumbra da loja como se tivesse medo. Sairia com convicção e enfrentaria o patife à altura, como quem diz “tenta a sorte, vagabundo”. Ele não lembra onde — faz muito tempo — mas lera em algum lugar que o simples fato de erguer os ombros, olhar de frente e mostrar confiança cria no oponente uma dúvida, uma hesitação. O elemento entende que ali pode haver um perigo e muda de alvo.
Na semana seguinte, nada do sujeito. Justo agora que Jurandir está preparado, oh, sim: tem à mão todas as ferramentas do ofício, guardadas na estreita gaveta abaixo do caixa, e mais outra ferramenta, a do dever, da honra e da ordem.
“Incrível como eles sabem, eles percebem. O meliante fareja a ameaça e some. O magote ali em cima disfarça com aquelas grossas correntes, telefonam a ninguém naquela língua, ao diabo, vai ver. Mas o sujeito que me encara, cadê? Cadê a parceira de turbante? Sumiram? Eles estão juntos, suspeitam de algo. O comparsa grandalhão os avisou, deve ser o chefe. Eles vão retaliar. Não posso baixar a guarda, agora.”
O relojoeiro está preparado. Aquilo foi longe demais, mas agora ele pode se defender. Lembra o que o pai dizia, nas raras vezes em que o velho quebrava o silêncio na oficina: cada ferramenta no lugar; usou, volta pro lugar; toda ferramenta tem nome e função; jeito e força, cada uma pede jeito e força; às vezes, mais jeito que força. Às vezes, mais força que jeito.
“Certo, pai”, diz, em voz alta, como se o velho estivesse presente. As ferramentas estão organizadas, limpas e ordenadas, como o pai ensinava. Todas para a hora certa e a tarefa certa.
*
Era uma quinta-feira, e Jurandir põe os óculos a meio nariz: conserta um relógio difícil naquele dia chuvoso. Dia de chuva é péssimo para o comércio de rua, ninguém passa. Na Galeria Novo Século, com calçadinhas elevadas, um regato se forma na ruela central e escorre pelas pedras portuguesas em direção à rua lá fora, onde impera o inferno de gritos e ruídos e palavrões. Há tempos Jurandir não caminha mais ali. Aquilo virou um circo de malucos. Aqui na galeria, sem fregueses por causa da chuva, ele termina o difícil reparo e separa o item consertado, à espera do cliente. Depois, pega o Zagor: uma nova edição chegou via correio. Diverte-se com o herói e já entende tudo que lê. Está afiado no italiano. A viagem a Roma está marcada, aliás: ano que vem, no outono de lá: nem tão frio, nem tão quente. “Ano que vem, se Deus quiser. Tudo marcadinho.”
Lá fora escurece em pleno dia. Troveja e relampeja, e os grossos pingos d’água tiritam no piso. Jurandir lê o fumetti com os óculos atados pela correntinha atrás do pescoço. Distrai-se enquanto a água escorre galeria abaixo. Eis que surge um vulto em frente à relojoaria, todo encharcado: o magricela tribal.
Jurandir se assusta, mas recobra a vigilância. Tenso, tenta raciocinar friamente, domina-se. O tribal ensaia um passo e hesita um pouco. Quer se aproximar, parece. É hoje. Devagar, Jurandir abre a gaveta sob o balcão, silencioso, oculto. Repousa a mão na ferramenta certa, para a hora certa e o serviço certo. É hoje.
É hoje: o sujeito dá um passo e se aproxima. Leva a mão ao bolso. Três tiros. Queda.
6
Na chuvarada, ninguém ouve os estampidos. Jurandir tem o braço direito paralisado e teso, empunhando o Taurus calibre 38, cano curto, aço polido e reluzente. Três tiros no peito do sujeito que veio assaltá-lo. “Na hora certa! Legítima defesa, legítima defesa”, pensa, eletrizado. “Era ele ou eu, ele ou eu. Invasão de propriedade, legítima defesa. Ferramenta certa. Mais jeito que força.”
Logo chega o sujeito robusto e vê o companheiro caído. Desespera-se, urra umas linguagens quando vê a arma empunhada e não ousa entrar. Circula o chafariz defronte e some. “Vai, desgraçado, foge. Aqui, não.”
Minutos depois, chegam dois policiais. “Agora eles aparecem?”, pensa Jurandir. Os policiais estão com o tribal corpulento. No novo século, a polícia muda de lado. Só ver a televisão: o errado é certo, o certo é errado; o rabo abana o cachorro; tudo invertido. Proteger o homem honrado, quem protege? Ninguém, nem a polícia. Direito, só para bandidos. É o mal do novo século. A gente que tem que se defender.
— Fica aí, senhor. — diz o primeiro policial, com a mão espalmada.
Jurandir está com as mãos ao alto, como nos filmes, embora o policial não ordenasse aquilo. O oficial empunha sua pistola para o chão, entre o balcão e o morto, que é revistado por um segundo policial abaixado.
— E isto aqui? — o policial abaixado tira um volume qualquer do bolso onde o tribal pusera a mão, em seu último movimento. O agente se levanta e deposita o item no balcão.
— Um relógio. Era daqui, senhor? De sua loja?
O segundo policial abre a caixinha. Há uma nota fiscal toda dobrada. Abre e lê: CompraOnline.com. Coloca no balcão a caixinha aberta com o relógio e a nota fiscal, interrogativo. Jurandir nota algo. Seu sangue congela.
— Sem bateria. Não tem bateria. Ele queria trocar a bateria do relógio! Eu matei um inocente? Eu… matei? Meu Deus do céu! — sussurra, incrédulo. Senta-se no banco junto ao balcão, leva as mãos à cabeça abaixada, chora-não-chora. Suas pernas tremem. Levanta-se novamente e estende os punhos. Diz, trêmulo:
— O senhor me prenda, eu matei esse homem. Cometi um assassinato! Eu matei! — Jurandir esmurra o peito num mea-culpa, para aplacar a angústia. — Fui eu, policial! Me entrego.
— Fica calmo, senhor! — diz o primeiro policial, ainda sem guardar a arma — Vamos para a delegacia e o corpo fica aqui para a perícia. Fica calmo, se acalma.
— Os senhores podem me prender logo, não vou mentir. Fui eu que matei ele, cometi um assassinato. Vou pagar pelo meu crime. Podem me levar, agora.
— Vamos, o senhor nos acompanhe por gentileza à delegacia.
— Tudo bem — levanta-se o relojoeiro, esfregando as mãos nos olhos, ainda atrás do balcão — preciso trancar a loja e podemos ir. Vou pagar tudo que devo à justiça. Assumo tudo na frente do juiz. Eu matei um inocente, meu Deus do céu… meu Deus do céu…
— Não, o senhor vem com a gente para a delegacia. Outra viatura vai chegar e olhar a loja pro senhor.
— Não, eu preciso fechar a loja. Não, não… eles vão entrar aqui, vão roubar tudo, aquele bando que fica no acima do chafariz, aquele bando em frente à casa de câmbio. Eles vão se vingar, acabar com tudo aqui.
O policial se enerva. Dá nova ordem, mas Jurandir insiste em fechar a loja, baixar a porta primeiro. Sugere arrastar o corpo para fora e aguardar tudo na calçada, cobrir com um pano ou algo do tipo, debate. Não entende que a loja agora era cena de um crime. O policial perde a paciência e aponta a arma ao relojoeiro, para convencê-lo de vez.
— Sai agora, senhor! Sai, vamos logo!
— Sem trancar a loja?
— Sem trancar a loja. Já, anda!
Quatro décadas com ele, duas com o pai. Um homem honrado, que cumpre o dever de consciência. Que amou a esposa até o fim, resistiu à tentação daquela outra; que casou bem as filhas e tinha duas lindas netinhas. Que sonhava ir à Itália e aprendia o idioma para isso. Tudo graças à relojoaria da Galeria Novo Século.
— Rispetto!
— O que o senhor disse?
“Não sem a loja”, Jurandir pensa, num segundo. Discreto, puxa o Taurus calibre 38, cano curto, aço polido, em direção à têmpora direita.
Um disparo.
O policial abate Jurandir com o braço a meio caminho. Ele tomba sentado no banco, de olhos abertos, com a arma perfeitamente empunhada na mão direita.
Mais jeito que força.
*
No dia seguinte, a porta de aço está abaixada. Em frente, o robusto amigo do homem assassinado monta guarda em frente à relojoaria.
— Não deixa nenhum curioso por aqui, ouviu? Qualquer coisa, me avise pelo rádio — diz o síndico da Galeria Novo Século.
— Sissiô! — diz o estrangeiro corpulento, obediente. Era o novo vigilante contratado pela administração da galeria.
Dali a pouco, chega a mulher de turbante e túnica, num verde cítrico muito contrastante. Diz ao vigia e conterrâneo:
— Cadê o siô? Vai abrí a lojá? Vim comprá relojô. Agora eu tem dinheiro todo, ó.
A mulher abre a bolsa candidamente e mostra ao conterrâneo as cédulas novinhas em folha, recém-sacadas na casa de câmbio: todas bem enfileiradas na carteira.
Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/08/2023
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(Selo criado por Beth Spencer)