Gilson, um brasileiro

Tempo de leitura: 5 minutos

“Tá com inveja?”

Gilson morria de medo dessa frase. Imagine só, ter inveja. Pecado capital.

De modo que Gilson era generoso. Parabenizava todo mundo: pelo novo emprego, pelo novo cachorro, pela nova promoção. No fundo, acreditava, celebrar a conquista alheia talvez funcionasse como uma cosquinha na barriga da existência, um cafuné no destino: talvez o universo retribuísse a generosidade dele algum dia.

Gilson curtia o post, comentava; era fofo. Não perdia um aniversário nas notificações, parabenizava a viagem do conhecido — que mal lhe respondia de volta. “Feliz por você, brother”. Nada. Se mulher, Gilson comentava com tato e sensibilidade, para evitar grosseria e machismo. Refazia o elogio, editava o comentário uma porção de vezes.

E era incrível, mesmo: parecia que todos ao redor de Gilson se davam bem, tanto que ele chegou a pensar se o bem-querer ofertado ao mundo não causasse um efeito maior, não influísse nas energias invisíveis a beneficiar seu círculo social, se não movesse as engrenagens espirituais do progresso alheio. Quem sabe? Algum bem devia fazer. Mistérios existem.

Um dia, sem mais nem menos, Gilson é demitido. “Tudo bem” — diz à chefe, visivelmente embaraçada — “as coisas estão difíceis, mesmo. Essa pandemia não tá fácil pra ninguém.” Aperta-lhe a mão e agradece, como se fosse promovido, como se recebesse um troféu. Gratidão na perda: Gilson sentia-se especialmente enobrecido por cultivar tal sentimento. “O universo vê tudo; ele está vendo, agora”.

Quando passou pelo corredor, viu que já tinha alguém chegando à sua mesa, colocando coisas, um desconhecido. “Que loucura… eu, gerando emprego? A família dele vai receber uma ótima notícia hoje, posso até imaginar”.

As pessoas viviam pedindo favores a Gilson. Quando recebeu a indenização trabalhista, pagou o cartão de crédito da irmã cujo marido estava desempregado há ano e meio. Como tivesse um carro com caçamba e tempo de sobra, levava pra lá e pra cá bugigangas de todo tipo: máquinas de lavar, sofás, armários desmontados, entulho de reforma. Perdia fins de semana com aquilo e seu carro colecionava arranhões. Mas ele ajudava, sentia-se útil. Custava nada.

Quando foi sacar o FGTS, Gilson traçou um plano. Como soubesse da má vontade dos funcionários na agência do bairro onde morava, dirigiu-se a outra agência, num bairro nobre onde gente remediada frequentava. Geralmente, a equipe lá era mais treinada no atendimento ao público vip, o qual não tolerava grosserias.

Bem, ele foi. Tomou um belo chá de cadeira, pois a agência só tinha dois caixas funcionando e um deles era preferencial, de sorte que não parava de chegar idosos. Saía um, entravam dois; saíam dois, entravam três. “Tudo bem, eu espero. Tenho tempo”, pensava.

De repente, chega ao lado dele uma velhinha e o cutuca. A princípio, toma um susto: “fiz algo errado?” Mas não. A vovó só queria conversar. Solícito, ele ouviu, olhando em seus olhos. Gilson lera tempos atrás o best-seller “O Monge e o Executivo” e lembrou da grande lição do livro: saber ouvir. Ele internalizou o ensinamento, de modo que escutava atentamente tudo que a mulher lhe falava e aguardava por sua vez de responder, quando e se solicitado.

Quando começou a falar — com todo cuidado para não ser invasivo nos problemas familiares da senhorinha — a mulher aponta para o ouvido, sinalizando não escutar direito. “Não ouço muito bem”, disse baixinho, “abaixa só um pouco essa máscara”. Obviamente ele usava o acessório oficial da pandemia. Obedeceu. Só um instante não devia fazer mal. A velhinha também usava a máscara dela, um tanto afrouxada é verdade, a pender e a deixar o nariz para fora.

Enquanto Gilson falava olhando nos olhos da vovó — que ela desviava às vezes para o monitor, pra ver se sua senha não aparecia na tela — de repente ela tem um acesso de tosse, e na primeira tossida a máscara sai completamente de lugar. Gilson a ampara, coitada; depois, ele vê um garrafão d’água postado na coluna ali perto e lhe traz um copo. Ela agradece, secando as lágrimas com um lenço e se recuperando do acesso.

Depois de beber a água, o assunto não prossegue. Chamam a senha da velhinha na tela, que sai sem se despedir. Mas tudo bem, porque Gilson também já tinha sido chamado, enfim. Quando se aproxima do caixa, o funcionário sinaliza que sua máscara estava abaixada, ao queixo. Ele reposiciona e se desculpa. Finalmente, consegue resolver seu assunto no banco, sem dificuldades. O plano dera certo.

Dias depois, Gilson sente uma dor de cabeça intensa. Depois, coriza e tosse seca. “Igual a da senhorinha no banco!” — lembra dela logo na primeira tossida, idêntica. Naquela noite, não dormiu bem. Dores no corpo, mal-estar. O que fazer? O mesmo que em qualquer gripe comum: chá de limão com alho e mel, dipirona pra abaixar a febre, própolis para aliviar a garganta irritada. Enquanto isso, isolamento e rede social para distrair. Curtidas. Likes. Desejos de sorte e sucesso aos amigos. Ficar por dentro das novidades.

Aproveitou e postou que estava com covid-19. Subiu uma foto do teste. ficou esperando as reações: duas curtidas e um comentário “força, man”. Mas ficou nisso. A timeline se atulhara com a repentina morte de um ator famoso. Daí em diante, só se falava naquilo. “Caramba, ele era famoso mesmo. e eu nem conhecia…”

Calculou que por isso não deram muita atenção à sua covid-19. A princípio ele esperava alguma interação maior, já que vivia a pandemia na pele, tal. Se lhe perguntassem, diria que foi a vovó no banco, sem dúvida. Depois, recomendaria cuidados e precauções, relataria sua experiência. Mas ninguém lhe pediu qualquer detalhe.

Dali a duas noites, Gilson tem uma forte crise de falta de ar. Como sua esposa não soubesse dirigir, decidiram ir de Uber ao hospital. Antes, deixaram o filho de oito anos com a sogra, que viera de ônibus.

No pronto-socorro, Gilson foi logo conduzido à UTI e dali colhem os exames todos. Na sequência, é internado às pressas com síndrome respiratória. “Ele vai se recuperar” — diz o enfermeiro à esposa, meio sem olhá-la direito, como se falasse aquilo a todo mundo em modo automático. Gilson é transferido para a ala dos respiradores. Intubado, fica instalado ali até a recuperação.

Recuperação que não ocorria, porém. Gilson não sabia, mas era cardíaco. Sua diabetes também andava nas alturas e ele nunca detectara. Agora sua saturação estava baixíssima. O coração oscilava. A ala estava lotada, aquele estresse, movimentação intensa.

Após seis dias de muita dificuldade, Gilson não resiste e falece. “Complicações da covid-19”, diz a certidão de óbito. Naquela tardinha, ele torna-se o brasileiro vítima da covid número 431.997. Durante a convalescença, ninguém o visitara, ninguém perguntara por ele. Natural. Na pandemia as pessoas evitam mesmo os hospitais.

Dias depois do falecimento repentino, como não aparecesse mais nas redes sociais, Gilson perdeu alguns seguidores: dos 103 adicionados, contava agora 81. O número diminuía a cada dia. Por enquanto, ninguém dava ainda pela sua falta. Parecia que a qualquer momento pipocaria seu like rotineiro, seu elogio com emojis, sua figurinha de bom-dia.

Mas Gilson habitava outro plano, agora. Se visse aquilo com seu smartphone em mãos, diria algo como “tudo bem, é assim mesmo com as redes sociais, quem não interage acaba sumindo.” Sim, certamente. Daí, consolado por si mesmo uma vez mais, Gilson retornaria contente a seu cantinho no lar que o abrigara em definitivo: o seio do universo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A Eterna Fluidez

Tempo de leitura: 3 minutos

Diário Inconstante, 19.10.2020

Há tempos não vinha à Barra Funda, por motivos vários. O que tem de especial na Barra Funda? Nada em particular. Para mim, porém, aquelas ruas guardam memórias de quando trabalhava aqui, por anos, em duas fases importantes da minha vida. Mas a pandemia me afastou desse enclave que hoje serve apenas como passagem apressada entre um ponto A e um ponto B da cidade, para a maior parte dos paulistanos.

Penso que o bairro guarda um misto de aristocracia perdida no tempo, substituída por uma decadência pacata. A Barra Funda é um bairro com variados cheiros, não necessariamente agradáveis, embora marcantes. Agora, o vazio de gente forçado pelo novo coronavírus dá certo ar de terra de ninguém ao lugar. Tudo parece um enorme canteiro de obras abandonado, cercado de tapumes sujos e pichados. Vê-se um operário ali, outro ambulante acolá. Nem as figuras sofridas e miseráveis de costume vêem-se mais por aqui.

No caminho, no vagão de um vazio metrô, noto a simples presença de uma única moça em meio a marmanjos aleatórios a disparar olhares, despindo-a sob mil pensamentos frívolos. “O melhor a fazer é não tentar adivinhá-los”, diria a ela, se pudesse. Empunho um Coração das Trevas de Conrad e sinto o constrangimento da moça como se fosse comigo. O incômodo dela era notório e justificado. Com efeito, é difícil ser mulher, nas mínimas coisas. Quanto à moça do vagão, devo dizer, reunia mesmo atributos dos quais a audiência circundante, conquanto os admirasse, certamente não era mui digna deles.

Bem, chega a estação e a moça desembarca; marmanjos, idem. E eu mal sabia que o melhor a fazer era me abster de atirar a primeira pedra e não lançar-me a julgamentos apressados.

Vou ao Banco do Brasil na Marquês de São Vicente, eis o meu destino no bairro. Preciso retirar um novo cartão que se encontra na agência. Antes, no trajeto, uma mulher entrega-me um santinho. É época de eleição para prefeito. Algo curioso ocorre comigo: os detalhes são despiciendos, mas a visão daquela mulher, depois de tempos de quarentena, desperta-me certa excitação bem conhecida, porém ausente há tempos em espaços abertos. Estranho. Chego a uma conclusão: a de que ser casado implica em possuir a própria mulher como se ela fosse todas as outras. Todas as fêmeas desejáveis do mundo, numa só. Daí que — estranha dialética — para atrair-se pela sua, é preciso antes atrair-se por outras mulheres. Depois, vingar-se à noite das visões e sensações acumuladas do dia; expulsar e expurgar — e tombar, redimido.

Pobres mulheres, a agraciar-nos e perturbar-nos com seu Eterno Feminino! E miseráveis de nós, homens, por não saber lidar com isso. Culpa de quem? Não sei. Culpemos a natureza: há desvios de ordens biológica e instintiva que ideologia alguma, por mais bem-intencionada que seja, consegue dirimir. Freud explica; Darwin também. Apenas a religião que não: somente condena e cerceia, cerceia e condena, usando o medo da danação para conter a fúria do pecado.

A religião ensina que o homem é uma tríade: corpo, alma e espírito. Grande coisa. A mulher é bem mais que isso. Multidimensional, plasmática, polivalente, inefável. Ela não necessita racionalizações, intelecções de sábio nenhum. A mulher é substância que a explicação não alcança. O mesmo Freud morreu sem decifrá-las. São puro mistério, elas: mandam sujeitando-se, dominam adaptando-se, renovam-se ao sangrar. A mulher é um ser inteiramente esotérico.

Mas divago. E o banco?

Sim, o banco. Na agência, em obras e absolutamente vazia para uma segunda-feira, sou atendido com dedicação por Alberto. Conversa comigo, sem pressa. Lá pelas tantas, oferece-me uns “produtos bancários”, visivelmente embaraçado. Funcionário público com metas a bater, que coisa estranha. Não combina. Ele não sabe que eu sei bem o que ocorre. Talvez a constante ameaça de privatização Guedes-Bolsonariana paire no ar e o gerente já tenha alertado ao pessoal que Brasília ameaça a estabilidade empregatícia, aquela mesma que o senhor grisalho de meia-idade tanto batalhou para conquistar após diversos concursos. A ausência total de clientes por causa da pandemia deu ao servidor uma rara oportunidade de servir bem ao público. Então, fui bem atendido. Até os vigias me foram gentis.

Burocracia resolvida, volto para casa-escritório — outra modalidade que a pandemia 2020 impõe. Na estação, passa outra mulher. E de novo, o exame anatômico involuntário do macho (desculpem, desculpem): geometria, montanha-russa, sinuosidades; reentrâncias movimentam-se; virabrequim hipnótico. Ocorre-me a palavra: languidez. Excitação novamente. E de novo, a conclusão obtida na visão da mulher anterior: que ser casado implica em… e coisa e tal.

Pois eis a mulher, senhores: cíclica, simbólica, permanente e mágica. Eterno Feminino que as palavras não alcançam, filosofias não definem, psicologias não analisam. A mulher é esfinge, tenha ou não segredos, ó Oscar Wilde; pouco importa. A mulher, ela simplesmente vive e flui, flui e flui. Eis todo o segredo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A metamorfoice
(parte 4)

DIA APÓS DIA, Gregor Soros adaptava-se à vida de inseto humano. Numa segunda-feira pela manhã, a exemplo dos encontros com seus executivos, reuniu a mulher e o médico oficial para incumbir-lhes a tarefa de convocarem os melhores pesquisadores de Harvard e Stanford e outros geneticistas com autoridade reconhecida na área, a fim de investigarem mutações no DNA e possíveis modos de reversão ao estado original.

Cuidadoso para não contrariar o bilionário de modo ríspido, o doutor advertiu-lhe que pesquisas científicas deste calibre costumam ser lentas e dispendiosas, poderiam arrastar-se por anos, com resultados incertos; e que seu caso requeria tratamento médico imediato. Gregor S. aceitou a orientação, deixando claro que prazo não seria obstáculo para ele, se houvesse esperança de bons resultados. Ficou decidido que se submeteria às terapias enquanto as pesquisas avançassem em paralelo e que para todos os efeitos apostaria as fichas que tivesse à mão.

Toda a operação foi encaminhada oficialmente pelo conglomerado farmacêutico que pertencia a seu fundo de investimentos. Ninguém além da família sabia do problema, com exceção de seu médico de confiança, que lhe atualizava em linguagem acessível e não técnica o andamento e os resultados preliminares das pesquisas. Aos demais, tudo permanecia em absoluto sigilo.

A condição anômala já durava dois meses. Por mais que fosse ainda respeitado e obedecido, e por mais que seu caso recebesse o melhor encaminhamento possível e fizesse sua parte, Gregor S. não estava muito confiante, no fundo. Não apenas revoltava-se intimamente contra seu infortúnio pessoal, por razões óbvias, mas amargurava-se com tudo o mais ao redor, com tudo alheio a si. Pela televisão, notava o quanto o mundo continuava em relativa ordem, perturbando-se apenas com banalidades corriqueiras nas localidades de sempre — principalmente no Terceiro Mundo — enquanto aquele mal inexplicável o castigava.

Inconformava-se com a rotina das demais pessoas, rotina da qual fora privado. Trivialidades nas quais antes sequer pensava, hoje faziam-lhe grande falta: banhar-se na sua hidromassagem após um dia extenuante, por exemplo. Desejava de volta até privilégios simples e acessíveis a todos, ricos e pobres, como caminhar ao ar livre ou molhar-se na chuva; e pensava nas pessoas normais que em geral eram mal-agradecidas e desprezavam a boa sorte que tinham, não sabiam viver.

Em certos momentos, indignava-o até sua pobre criada quando postava-se à entrada do aposento, sem entrar. Notava-a emagrecer ou engordar míseros gramas — seu sentido de inseto detectava alterações corporais facilmente, inclusive odores e sons imperceptíveis às pessoas comuns — e raciocinava como o metabolismo dela andava em perfeito funcionamento. Depois, zapeava no controle remoto da televisão e via o tempo todo gente a se lamuriar ou a agradecer por bobagens, sempre a mencionar “Deus”: curioso, era “Deus” o tempo todo, aqui, acolá; esse tal “Deus” que para si não passava de fantasia de religiosos e fanáticos. Desprezava tais superstições. Para ele, tudo não passava de crendice tola.

Se existisse de fato, talvez Deus fosse um titã que jogasse com a humanidade arbitrariamente, a seu bel-prazer; um enxadrista cósmico o qual, sabe-se lá por qual razão, decidira aplicar-lhe particularmente um xeque-mate. Detestou a religião dali em diante, a cristã em especial, a que mais aparecia na televisão. Era uma religião vulgar, sem mistérios, sem ritos secretos; sempre com suas culpas manipuladoras, suas penitências sem sentido e sua moral piegas para dominar crentes simplórios: a maior farsa da existência.

Caso seu estado metamórfico não revertesse a contento, Gregor Soros não teria mais nada a perder. Estaria disposto a tudo para vingar-se do destino que lhe aplicara, sem motivo aparente, um golpe cruel e covarde. Diferente de antes, porém, sua revolta difusa agora ganhava forma, conteúdo, e alvos bem definidos. Foi quando sentiu uma estranha satisfação percorrer-lhe a carapaça ao identificar seus novos grandes inimigos: a fé em Deus e a normalidade da vida.

*continua…

A metamorfoice
(parte 3)

A FIM DE não prolongar muito o relato e causar enfado, registre-se que Gregor Soros conseguiu driblar engenhosamente as dificuldades iniciais de adaptação ao seu novo aspecto repugnante. Mulher e filho, após o choque inicial e todas as reações correspondentes, por fim condoeram-se da situação. Passaram por fases alternadas de pavor, nojo, negação, raiva, desespero, mas enfim começavam a resignar-se. Gregor Soros construíra um núcleo familiar muito sólido, e este foi seu teste decisivo. Com ajuda do terapeuta de confiança da família — que tinha com eles há muito um contrato de absoluto sigilo e confidencialidade — ambos, esposa e filho, aos poucos aprendiam a lidar melhor com o problema e empenharam-se em buscar juntos a solução. O histórico familiar era favorável, o que os deixava esperançosos: inúmeros desafios foram superados até ali e certamente aquele não seria diferente.

Medidas de contingência foram tomadas a fim de preservar a privacidade familiar e evitar possíveis escândalos midiáticos: o departamento de relações públicas da holding, cuja diretoria fora orientada diretamente pela esposa de Gregor Soros, convenceu os acionistas e a imprensa, por meio das agências de notícia do grupo, de que ele despacharia de sua residência a partir de então. Comunicou que o investidor tivera um mau súbito, mas que estava tudo sob controle. Estava em ótimas mãos e cumpria apenas ordens médicas. O timing foi oportuno e preciso, pois até o momento nenhuma especulação ou suspeita fora levantada.

Os órgãos da grande mídia tocaram no assunto apenas por alto, especialmente porque, afinal de contas, o sr. Soros era ele mesmo um importante acionista daqueles impérios da comunicação. E as concorrentes, por sua vez, não queriam ficar mal com o bilionário e perder possíveis patrocínios. Todas as redações, portanto, estavam devidamente orientadas pela alta direção a não gerar qualquer sensacionalismo em torno do repentino “sumiço” — já que ele se ausentara de todos os compromissos naquela semana — e a não divulgar nada sem o consentimento prévio da família. Tudo foi acatado sem sobressaltos. Na pior das hipóteses, caso algum boato vazasse na internet, cumpria àqueles veículos valerem-se de sua credibilidade para desmenti-los um a um, tratando-os como meras teorias da conspiração. Ademais, o departamento jurídico estava atento e tomaria as medidas judiciais cabíveis, caso fosse necessário.

Parecia que as coisas andavam mesmo sob controle. Gregor Soros, entretanto, dividia-se entre o alívio que sentia por encontrar tais arranjos temporários e a inconformidade pelo seu infortúnio pessoal. Queria respostas. Como, perguntava-se, como diabos aquilo pôde acontecer? E porque justo a ele? Apesar do bom tratamento recebido pela família e pela obediente criadagem, e apesar de sua fortuna muito bem administrada não recuar um tostão sequer, ao contrário, aumentou e proporcionou alegria aos acionistas naquele trimestre, apesar disso tudo crescia em Gregor Soros uma revolta difusa, uma raiva amarga e uma angústia por entender que não merecia semelhante castigo.

Conversava com seu médico — e único confidente — a respeito de seu drama. Não era possível, inquiria, como não haveria nenhum caso parecido por aí? Decerto fosse alguma nova doença ou epidemia que desembarcara no país, como a AIDS nos anos 70. O dilema era que, para escarafunchar casos semelhantes mundo afora, cabia a ele dar o start. Seria o primeiro case, justo ele? Submeteria-se a testes científicos, uma ilustre cobaia, em laboratórios de que ele mesmo era um dos sócios? Impossível. Seria uma enorme temeridade. O segredo deveria manter-se a sete chaves, a qualquer preço.

Quando refletia com a fria racionalidade costumeira, Gregor Soros imaginava portar alguma anomalia rara em seu DNA, que alterara-lhe radicalmente o código genético. Em momentos de paranóia, porém, imaginava-se vítima de algum experimento científico secreto muito bem arquitetado por seus inimigos. Quem sabe envenenamento? Serviços secretos de certos países onde sua figura era indesejada eram peritos nisso. Puxava pela memória possíveis bebidas estranhas, almoços e jantares suspeitos, situações atípicas no passado recente. Buscava rostos e nomes, ciladas despercebidas e no entanto nada nem ninguém vinha-lhe à cabeça de que pudesse suspeitar. Como num quebra-cabeças incompleto, as peças do buraco em que se metera não se encaixavam de jeito nenhum.

*continua…

A metamorfoice
(parte 1)

NUMA MANHÃ, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Soros, também conhecido como George Samsa, encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado e marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual o negro edredon de seda chinesa deslizara ao chão, dada a falta de aderência de sua nova e asquerosa forma. Ante a visão surreal, ficou chocado; suas perninhas em vários pares mexiam-se incontrolavelmente, de uma forma bizarra e repugnante. “O que terá acontecido comigo?”, indagou-se, confuso. Ao mirar seu reflexo no enorme espelho veneziano da parede defronte, ficou estupefato com a aparência grotesca que assumira.

“É uma tragédia! Que horror!”, pensou. Estaria delirando? Seria um sonho dentro do sonho? Pois tivera pesadelos recorrentes nos últimos tempos, porém, com nada parecido. Permaneceu imobilizado na cama, sem saber em quê pensar, atônito, mudo. Dores agudas nunca sentidas percorriam-lhe o interior da carapaça rígida e oleosa, cuja estrutura mostrava-se lustrosa ao refletir a luz da janela.

“Mas… justo agora? Agora? I-isso é, é… horr-horrível”, gaguejou. Gregor S. tinha acessos de gagueira quando ficava tenso ou ansioso. Sua preocupação tinha motivo: caso aquilo fosse real e não um sonho trágico, podia tornar-se sua ruína, ele que acabara de sair na capa da última Forbes como o maior bilionário do mundo. Entrevistas coletivas estavam programadas. No dia seguinte seria entrevistado no mais prestigiado talk-show da televisão. Tornava-se a mais nova celebridade do mundo corporativo e não era por menos: naquela época haviam pouquíssimos bilionários no planeta, contavam-se todos nos dedos das mãos. E justamente ele tornava-se agora o maior de todos!

O que dizer? O que fazer? Seria uma desgraça, um escândalo monumental. As ações de suas companhias fatalmente desabariam se a notícia se espalhasse. Seus inimigos, que não eram poucos, teriam um trunfo espetacular nas mãos para levá-lo ao fracasso e eles não o poupariam de nenhuma maneira. Não era possível, só podia estar sonhando. Não podia, não podia ser real tudo aquilo!

*continua na parte 2

Corra,
Elisabeth, corra

ELISABETH era uma mulher que corria na esteira da academia, mas sua vida não se resumia a isso. Elisabeth fazia muito mais. Era jovem, independente e solteira. E bonita, não exatamente deslumbrante, mas atraente. Elisabeth era esforçada, dedicada e — para usar seu adjetivo preferido — “focada”. Sonhava ter uma sólida carreira, tornar-se profissional de respeito, referência em sua área, talvez executiva. Trabalhava e estudava e malhava para isso. Pertencia a uma nova geração de mulher, cosmopolita e empoderada, que sabe o que quer da vida, bem ao contrário da mãe, das tias, da avó.

Durante a faculdade, estagiara num importante escritório de advocacia e após a graduação foi efetivada, ali mesmo, pelo que recebia uma razoável quantia mensal. Ambiciosa, Elisabeth torrava (“investia”, dizia) uma grana preta em cursos de reciclagem e especialização. Igualmente, gastava muito em roupas e apetrechos elegantes, pois o escritório era chique, tinha rígido dress code e a concorrência das colegas, embora tácita, era intensa.

Elisabeth gastava (“investia”, de novo) no cabelo e nas unhas, aos fins de semana, para chegar impecável na segunda-feira. Não frequentava salão chinfrim, mas os bacanas. Depois do pit stop de beleza, ia ao shopping center renovar o guarda-roupas. Incomodava-a muito repetir o look no escritório.

Fazia tudo isso em nome da carreira. O mercado de trabalho é exigente e ela não podia se acomodar. Entendia que todo aquele custo teria afinal uma compensação. Seu esforço não se limitava ao visual, porém. Malhava três vezes por semana, para manter a cinturinha na medida, as pernas torneadas, o bumbum ok, e para adequar-se fisicamente à indumentária: horrorizava-lhe a possibilidade de engordar e aumentar o número do manequim. Aumento, talvez, somente no número do sutiã, via silicone — estudava a hipótese, mas não estava bem certa se faria a cirurgia. Por onde andava, Elisabeth transmitia uma elegante sensualidade endereçada ao éter, coisa que lhe conferia sensação de poder e “agregava valor”, conforme imaginava.

A sonhada promoção exigia sacrifícios: proficiência em idiomas, oratória em público, postura, aparência, linguagem corporal. Cada reunião demandava estudadas performances. Contudo, algo ainda lhe faltava: um carro. Perdia tempo e paciência com táxis, metrô, Uber, sem contar eventuais caronas — coisa chata, desagradável. Adquiriu então o lançamento que passava no comercial da novela, financiado, na versão intermediária confort line com pintura perolizada. O carro não servia apenas para trabalhar: cumpria o papel de não fazer feio no estacionamento da empresa.

Claro que a vida de Elisabeth não se resumia a trabalhar. Viajava nas férias, para fugir da rotina. Mochileira, abrigava-se em hostels pelos EUA e Europa e postava o diário de viagem no Instagram, no modo público, com legendas em inglês e muitas hashtags. Recebia curtidas e comentários do pessoal do escritório e depois, na volta, incluía as experiências no currículo e no perfil do LinkedIn, no item experiências e interesses — ser viajada era quesito que também “agregava valor” à carreira, afinal de contas.

No alto de seus trinta e dois anos, Elisabeth buscava evoluir. Se bem que a desejada promoção, mesmo, não vinha, o que às vezes lhe desanimava. Mas superava, esperançosa: acreditava na meritocracia, lembrava-se de que ainda era jovem e estava apenas no começo, havia muito pela frente. O desejado namoro firme viria algum dia, decerto, e ter filho estava no horizonte. Às vezes, temia a janela biológica dos trinta: preocupava-se, naturalmente. No entanto, a medicina moderna estava aí, então nada de pensar muito nisso: o lema era “focar na carreira”, e era o que ela fazia.

Fracassar, para Elisabeth, seria viver como a mãe: ser do lar, dona de casa. A vida da mãe foi só cuidar dos filhos e praticar o arcaico tripé lavar, passar e cozinhar. O pouco lazer da mãe resumia-se em ir à chácara da família nos feriados e finais de ano, para descansar um pouco. “Vidinha estúpida”, que Elisabeth repelia de si: ela não seria daquele jeito, ah, não seria mesmo.

Estava determinada a ser diferente. Verdade, não tinha ainda família, casa própria, chácara e tal e coisa: faltavam-lhe realizações. Por outro lado, tinha um currículo invejável, intercâmbios e diplomas, ótimo networking, roupas e bolsas e sapatos espetaculares, recentíssimos e bem decididos 300ml em cada mama, um bonito carro zero e muito potencial.

No entanto, sem perceber, Elisabeth esquecia de si, do futuro, do legado e do significado. Vez ou outra lhe surgia o assunto casamento. Marido, vê se pode, quem precisa deles? Obedecer e servir, feito a mãe? Nem morta. Elisabeth tinha um patrão, no entanto, a quem ela fazia tudo aquilo docilmente, sem se dar conta.

E daí? Nada de mais. Elisabeth era uma mulher decidida e independente que corria na esteira da academia: corria e corria, percorria milhares de quilômetros sem sair do lugar. Na esteira da vida ela também corria, rumo ao sonhado futuro, à sonhada carreira, ou quem sabe a lugar nenhum.

O missionário
e a tribo

UM MISSIONÁRIO chegou a uma tribo distante, quase isolada e que não constava no mapa. Instalou sua cabana perto dali e passou a observar os nativos, aprendendo sua língua e costumes, para enfim catequizá-los de uma maneira que eles pudessem entender, de acordo com sua cultura.

Todos os dias o missionário, com a bênção do pajé (ou o seu equivalente), observava os costumes da tribo: como era sua rotina, como caçavam, como pescavam, o quê comiam.

E nessas observações o missionário, a cada coisa que aprendia, tomava notas a fim de registrar o modo de viver dos nativos. Anotava minuciosamente, registrava cada detalhe para assim poder entendê-los e quem sabe ajudá-los numa dificuldade.

Assim permaneceu por aproximadamente seis meses. Após esse período, o missionário já se comunicava razoavelmente com a tribo, particularmente com o chefe, que lhe explicava as tradições do seu povo quando o missionário lhe perguntava.

Um hábito tribal que o missionário observou e que lhe deu uma baita dor de cabeça foi o costume que os nativos tinham de comer certa raiz com a qual preparavam um ensopado, e que, diziam, dava-lhes força e os revigorava para as tarefas. A tal raiz desconhecida compunha a dieta deles desde sempre, porém, o missionário notou que esta causava um terrível efeito colateral: mulheres grávidas que dela experimentavam sofriam aborto espontâneo. Da mesma forma, quando o ensopado daquela raiz era servida a crianças pequenas, muitas morriam após febres terríveis.

A raiz só podia ser venenosa, concluiu o missionário. Ele enviou amostras para laboratórios no seu país de origem, e depois de longos dois meses o laudo trazia em detalhes todos os componentes da planta. De fato continha substâncias altamente tóxicas, que se por um lado revigorava aos adultos, por outro lado podia ser mortal a bebês em gestação e a crianças pequenas que não tivessem resistência física para consumir a planta.

Ciente dos dados, o missionário procurou o pajé para informar-lhe os perigos que a sua tribo corria. Fez-lhe muitas advertências, explicou da forma mais didática possível o mal que acometia a tribo ao consumir o ensopado. O pajé a princípio fez pouco caso, disse que as crianças morriam por vontade dos deuses e que não havia com que se preocupar.

Após a insistência incansável do missionário, que tratava a situação uma questão de vida ou morte, o pajé contrariado e prestes a proibir a entrada do missionário na tribo, lhe disse o que havia, na sua língua:

— Homem branco dizer que raiz é raiz má. Homem branco cansar pajé dia e noite com reclamação da planta. Pajé irritado com homem branco, tribo irritada também, reclama com pajé.

— O senhor não entende — respondeu o missionário — já lhe expliquei que a raiz tem veneno mortal. Pode acabar com o futuro da tribo porque mata muitas crianças. O senhor não se preocupa?

— Pajé não ser mau, pajé não ser burro. Pajé entender homem branco. Homem branco dizer “raiz ruim, raiz venenosa” mas não mostra raiz boa pra tribo de pajé. Então tribo ainda comer raiz venenosa mas homem branco não mostra raiz boa pra comer.

Moral da história: não adianta somente apontar o ruim, é preciso oferecer opção melhor.

Pós-modernidade
on the rocks

QUINTA-FEIRA, final de tarde. Faz frio. Entro no bar que acaba de abrir. Salão vazio, escuro: dia de pouco movimento, somente funcionários arrumando toalhas nas mesas. Sento-me ao fundo, num cantinho próximo à vidraça. Ouço o arrastar das cadeiras, aqui e ali. Barulho irritante.

Chamo o garçom. Ele vem de-va-gar em minha direção e me atende sem olhar nos olhos. Pela expressão, pareço incomodá-lo com minha presença, como se fosse um intruso ali. Vai ver cheguei na hora errada. Pode ser. Peço uma garrafa de pós-modernidade, com gelo no copo.

O rapaz traz a bebida. Não, não vou comer nada. Primeira dose. Sorvo a pós-modernidade, sinto a textura na língua, lentamente: não por qualquer ritual, nem porque a bebida custe muita coisa. É que gosto de apreciá-la sem pressa.

Esse bar é famoso por vender muita pós-modernidade para clientes notívagos, insones que aparecem tarde da noite. Quem os vê, não sabe se o que os desinibe é a bebida ou a própria conversa — frequentemente frenética, com frases entrecortadas — ou o cigarro, tabaco ou cannabis, que lhes desperta o frenesi. Foram alguns deles que me apresentaram a pós-modernidade, exatamente aqui, há exatos dois anos. Experimentei, gostei, e não parei mais.

Mas voltando ao presente. Eu, nesse bar que mal acaba de abrir, não sou o tipo costumeiro de freguês. Venho aqui de vez em quando, sou praticamente um estranho na casa, daí que os garçons não me dêem muita atenção. Passam esbarrando entre as mesas, como se eu nem estivesse aqui. Feito esses dois aqui ao lado, rapaz e moça, reclamando do patrão que ainda não chegou. Riem alto, atrapalham meu pensamento. Agora, falam de um certo cliente meio viado. Estão nem aí. Será que também falam de mim pelas costas?

Tudo bem. Penso no barato que a pós-modernidade me dá ao bebê-la. Olho pro copo, remexo o líquido… detalhe curioso, a pós-modernidade líquida. Sei lá, lembro daquele velhinho comuna dos livros, como é mesmo? Bauman. Alguma coisa Bauman. Os livros dele não têm sempre qualquer coisa líquida, líquida como adjetivo? Tsc, besteira. Que viagem… tá subindo isso aqui. Rapaz…

Uau. A pós-modernidade invade meus sentidos, aos poucos, ainda não o suficiente para me embriagar. Tô consciente. Mas já sinto o efeito. Meus membros relaxam um pouco. Minha mente embaralha e volta, as luzes giram lá fora, caleidoscópicas; as buzinas dos carros soam como notas musicais sem harmonia; cores contrastam, intensificam-se, misturam-se, gradativamente: me invade uma sensação de liberdade. Viro mais um copo. Ah…

Dá vontade de gritar. Qualquer coisa. Porra, de repente dá uma raiva súbita desse salão, desses garçons tudo arrumadinho, essa organização geométrica, acho tudo de um mau gosto aqui (menos aquela gostosa ali, caramba…). Sei lá, e se rolasse um caos aqui, uma baguncinha que seja? E se eu chutasse as cadeiras agora, puxasse as toalhas, quebrasse uns copos? Ia ser uma farra, puta história depois. Ih, olha lá o dono chegando, aquele careca alemão… pela cara, com certeza montou este lugar com aquela logiquinha burguesa típica de quem quer ficar rico. Agora, esse asseio profilático todo, porra, num bar! Deve ser pra agradar aquele bando de mauricinhos playboys e aquelas menininhas “de família” que gostam mesmo é de, eu sei bem do que elas gostam, aquele bando de…

Chegaram uns caras num SUV gordo, gigante. É o quê, aquilo? Range Rover. Cara, olha só… esses cabelinhos, puta merda. Vidinhas pequeno-burguesas, patéticas. Escravos do capital, seus otários, é isso que vocês são: trabalham igual uma mula prum ricaço e depois vêm aqui, com esses terninhos pra… tsc, foda-se. Não adianta, não sabem, sabem de porra nenhuma, não podem saber. Consumo, a vida é consumir, eles vivem pra isso. Babacas alienados. É tudo errado, tudo errado, sei lá. Merda. É… mas nem é culpa deles, é que… a questão é o sistema… isso… é o sistema que… é foda…

. . .

Última dose. Zerei a garrafa de pós-modernidade. Sobe rápido isso aqui, vou te falar. O barato passa rápido, também. Ah, mas foi bom, eu achei. Levanto me equilibrando, zonzo ainda. Pago a conta, já meio sem graça. Preciso mijar… começa uma dor de cabeça, latejante. O estômago embrulhando. Merda… pra quê vim beber aquele troço? Puta coisa sem sentido… quanta estupidez…

O homem-cápsula

UM TIPO comum na cidade é o homem-cápsula.

Todo dia ele acorda em seu apartamento-cápsula. Veste-se e sai para trabalhar, tomando o elevador-cápsula do prédio-cápsula onde mora, até o estacionamento. Entra em seu veículo-cápsula e dirige-se ao trabalho.

Uma hora depois (se não chover, se chover leva mais tempo), o homem-cápsula adentra o moderno edifício-cápsula para acessar seu escritório-cápsula todo envidraçado e sem janelas. Meio-dia ele almoça na copa-cápsula, após receber o almoço delivery: homens-cápsula são muito ocupados, não têm tempo a perder.

Às seis da tarde, o homem-cápsula deixa o escritório-cápsula. Aguarda o elevador-cápsula aparecer no hall, lotado; desce ao subsolo; entra novamente no veículo-cápsula e retorna em direção ao prédio-cápsula residencial. Lá, sobe, via elevador-cápsula, de volta ao apartamento-cápsula. Ufa, finalmente! Exausto, resolve pedir comida pelo aplicativo, direto do aparelho-cápsula. O homem-cápsula está sem saco para cozinhar, hoje. O dia foi extenuante. Talvez amanhã.

Ah, mas não pensem que o homem-cápsula não é feliz! Ele até se distrai, ele até se diverte. Ás quartas e sextas, ele malha na academia-cápsula e aos sábados, vai à balada-cápsula com a namorada-cápsula que mora numa cobertura-cápsula perto dali. Aos domingos, dorme até tarde e fica de pijamas: não sai do apartamento-cápsula por nada, porque ninguém é de ferro. “Meu filho, até Deus descansou”, justifica a si próprio, repetindo a frase da avó — que nunca foi cápsula.

E então é segunda-feira. A rotina recomeça.

A fábula
da mercearia
e a moça

UM HOMEM tinha uma mercearia especializada em queijos. Havia-os de toda sorte, e muitas pessoas vinham ao comércio unicamente para comprá-los, de modo que a fama do recinto espalhou-se pela cidade.

O comerciante sempre dispunha, à frente de cada queijo, uma gamela com um bocado do sabor respectivo para que os fregueses experimentassem e, após a escolha, pedissem sua porção.

Todo dia aparecia por lá um rapazinho que degustava as amostras, com voracidade. Quase não sobrava nada para a freguesia! O comerciante percebia, mas fazia vistas grossas ao comilão que devorava, devorava, e nada comprava. E a prática continuou por muito tempo.

Após alguns anos, a paciência do vendedor finalmente esgotou-se. Um dia, quando viu o rapaz chegar para a comilança gratuita, logo o censurou:

“Ei, rapaz, sei bem o que pretendes! Como sempre, vens à minha mercearia, prova de meus queijos com gosto, mas nunca os adquire! Por muito tempo tolerei-te, pois eras jovenzinho. Contudo, já estás barbado, trabalhas e teu vistoso carro ali à porta demonstra que tens muito bem com quê pagar. Portanto, basta: compra hoje um dos queijos ou varre-te daqui.”

Ante a reprimenda, o jovem retorquiu, zombeteiro:

“Tens toda razão, senhor: há anos venho à tua loja degustar de teus queijos. Com efeito, de tanto saboreá-los, conheci-os todos muito bem e, para dizer-te a verdade, estou farto deles. De maneira que não pretendo comprar nada: fica, pois, com tua mercadoria. Sairei por aí a buscar outras vendas, há muitos queijos por degustar!”

Assim é o rapaz que te namora por anos a fio mas nunca casa contigo, moça. Prova-o, e saberás quem ele realmente é.