Clarice e o
claricismo

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Por volta de 1975, por aí, chegou ao conhecimento de dona Clarice Lispector que três escritoras do território nacional inauguravam o gênero literário claricismo. O claricismo consistia numa escrita toda calcada em epifanias, porém de segunda mão, baseada nos livros da autora.

Epifanias em nada parecidas com as reais de dona Clarice, que à altura não era nenhuma mocinha e já andava meio irritada com tudo e mais um pouco (“cansaço”, mentia, se perguntada; no climatério, queria mesmo é que não lhe enchessem os pacovás).

Os tais livros de claricismo irritavam a autora, pois continham apenas anacolutos com pontuações de soluço e alegorias fracas (“minha dor não tem nome” etc). Dona Clarice, então, disseram, ficara tão pê da vida por tentarem imitá-la sofregamente — justo ela que detestava se ler, imagine ler cópias ruins de si —, então ela ficou tão pê-da-vida que decidiu sentar-se com sua Olivetti verdinha no sofá e escrever uma novela sem epifania de coisa nenhuma, uma novela de macho narrada por macho, uma novela bem da machista com final decepcionante, não só trágica como besta, ou trágica de um jeito besta.

Dona Clarice então criou um narrador fictício Rodrigo S. M., que contava a história de certa alagoana vinda ao Rio de Janeiro só para sofrer, menina bobinha de nome Macabéa. Dona Clarice mal coloca o ponto final e intitula seu livro A abestalhada, mas depois o editor lhe telefona, aconselhando para ser aquela mesma Clarice de sempre, pelo menos no título, posto que ela vendia bem e coisa e tal.

Então dona Clarice pensou “vou dar um título meloso e tapear essas fulanas da cópia barata”, e ela dá ao livro o título de A hora da estrela — que de estrela mesmo não tinha nada —, só para enganar as plagiárias, e este foi seu último livro publicado em vida.

Bem, essa história jamais existiu. Porém o claricismo existe e perdura até hoje. Inventei a lorota, inclusive para dizer que dona Clarice narrando como homem fez foi muito bem e, creio eu, melhor que muito homem com agá. Se viva, certamente ela faria mais do gênero e daria uma guinada na carreira, isso se antes a vida não lhe desse outra guinada logo à frente, guinada sorrateira, guinada traiçoeira e guinada lamentavelmente triste.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/07/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A lição de
João Cabral

Tempo de leitura: 5 minutos

Trabalhei na famigerada Faria Lima entre 2013-15, no departamento de marketing de um banco não muito famoso. Como minha hora de almoço fosse mais prolongada (1h30, mas se passasse um pouco não tinha problema), eu aproveitava o intervalo para, além de obviamente almoçar, caminhar um pouco.

Andar sozinho não era problema para mim, pelo contrário. Aproveitava a caminhada para refletir e observar ao redor, algo que adorava e adoro fazer. Foi assim que descobri a biblioteca Anne Frank, meio escondidinha ali no bairro: toda murada com tijolos aparentes, o predinho térreo tem uma bonita arquitetura dos anos 1960 e, com charme peculiar, resiste discreta aos espigões envidraçados das redondezas.

Pois ali repeti um feito da puberdade, aos 12 anos: fiz uma carteirinha da biblioteca pela segunda vez na vida (agora aos 34), não sem antes assinar a entrada no livro de presença da recepção. Aquilo me trouxe certa emoção do passado.

Eu pegava livros de poesia emprestados para ler no Parque do Povo, a poucos metros dali. Certo dia, resolvo levar uma antologia de poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto, cuja obra não conhecia até então, só ouvira falar o nome.

Quando me aproximo do balcão da recepção, lembro bem a cara de espanto do bibliotecário, um senhor de cabelos brancos chamado Sérgio, “Seu Sérgio”. Ele disfarça a surpresa — com toda razão, imagino —, pois nenhum farialimer, mesmo técnicos do baixo escalão como eu, costumava entrar naquela biblioteca pública municipal para levar emprestado qualquer livrinho, quanto mais um volume de poesias.

Mas lá estou eu a ler o João Cabral no parque, quando este breve poema chamou-me a atenção:

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Como tivesse de devolver o livro dali a uma semana, fotografei o poema com o smartphone e o guardei. Tenho até hoje a foto nas clouds da vida e ainda o releria outras vezes. Não sei, aquilo de certo modo ficou na minha cabeça, pelo seguinte: no período, eu começava a tomar umas notas que me vinham à mente — alguns versos de pé quebrado, umas reflexões; frases, epigramas, máximas; às vezes, anotava impressões a respeito de certas situações da vida e do cotidiano; tudo muito pessoal e subjetivo. Mantinha uma espécie de diálogo interno por meio daquelas anotações, também com a intenção de treinar a escrita.

Passado um tempinho, o material se avolumou, ganhou corpo; e eu ficava pensando se aquilo não serviria para algo mais sério, para publicar de algum jeito. Mas logo me retraía, pois lia gente bem melhor e mais experiente que eu a publicar ótimos textos em blogs e a ganhar popularidade nas redes sociais, com mérito justificado.

Embora chegasse a arriscar um bloguezinho de poesia e outro de prosa com aqueles textos, não dizia a ninguém, pois no fundo não me achava muito no direito de sair divulgando aquilo. Achava que fazer uns versos e uns textinhos pretensamente inspirados e sair compartilhando por aí só aborreceria aos outros, quase ninguém se interessaria pelas tentativas de um anônimo. O mundo não precisa de mais um diletante, pensava.

E não nego que ainda penso assim, vira e mexe o pensamento volta. Essas coisas nunca desaparecem totalmente. Aquele retraimento ainda ocorre hoje, embora de modo diferente. Varia de dia para dia, ora mais, ora menos, conforme o humor e o astral, digamos assim.

Voltando ao poema, imagino que o diplomata João Cabral — já imortal da ABL à altura da publicação, em 1975 — tivesse rabiscado aqueles versos em sua mesa de trabalho, como quem não quer nada; e, meio involuntário, fez uma peça importante (para mim, ao menos), enquanto aguardava na embaixada em Mauritânia um possível telex da capital federal — que decerto não mandavam tanto a terras tão ermas.

Mas que tem o poema de especial, em cujo sentido refleti depois de ler e reler algumas vezes?

Que toda arte ou mesmo tentativa de arte que fazemos, não importa o quão amadores sejamos, nunca será à toa, em vão; que aquilo que com sinceridade e entrega escrevemos — ou pintamos, desenhamos, compomos, cantamos, enfim —, tudo que expressamos artisticamente, uma vez divulgado, servirá de algum modo a alguém, nalgum momento e lugar; e que, justamente isso de chegar ao outro, ainda que somente a uma pessoa, valerá a pena este esforço do fazer, como diz o poeta recifense, mesmo que para criar algo tenhamos de abrir a fórceps o tempo diário e conjugar o trabalho criativo com outras tarefas a comprimir as horas do dia.

Pois costuma ser assim: de tantas prioridades aparentemente mais importantes que a criação artística livre e espontânea — sempre sujeita ao desânimo e ao abandono, pois demandada por absolutamente ninguém exceto nós mesmos —, deixamos de lado o registro de nossa expressão autêntica (que vale muito, mesmo que ninguém dê a menor pelota), e os anos passam, a vida passa… e deixamos o potencial artista em nós simplesmente morrer. É o caminho mais natural, que mais ocorre todos os dias com tanta gente, em variadas partes do Brasil. Tenho certeza.

O poema cabralino se dirige ao “artista inconfessável” — epíteto que o poeta atribuía a si, inclusive. Claro que, no nosso caso, embora quem sabe sejamos inconfessáveis por justas razões, não somos nem devíamos ser isentos de interesses. Temos em nós todos os sonhos do mundo, já dizia outro poema. Quem não gostaria de viver de sua arte, de sua criatividade e ofertá-la de bom grado a quem possa interessar? Quem não queria ver-se livre das contingências, da esterilizante responsabilidade diária, do trabalho alienado, e dedicar-se a algo belo, significativo, relevante?

Sim, queremos tudo isso. Sobretudo porque pouquíssimos nesta sombra do Ocidente podem viver da própria obra e dedicar seu tempo a ela, enquanto contempla a vista de sua bela casa campestre. No dito mundo civilizado, tal privilégio não costuma ser tão raro como aqui.

Bem, mas nada de lamúrias: sonhemos, que sonhar não custa nada, diz o chavão. Como João Cabral e seu “artista inconfessável”, sejamos impelidos a criar e fazer, apenas por fazer, apenas porque sim; pois a obra nunca será vã ou dirigida a ninguém, diz o poeta. Ela será útil a alguém — ainda que se chame Ninguém —, e sempre chegará num lugarzinho diferente de onde partiu, mesmo que jamais saibamos disso.

Ora, a prova está bem aqui, não? O poeta-embaixador nunca pensaria que certo fulaninho leria seu poema no século vindouro, tirasse lições dele e tratasse dele no futuro, divulgando-o para mais gente, numa corrente de transmissão invisível e dinâmica. Pode não parecer, mas afinal isso denota um poder grandioso e sutil, o poder contido no simples ato de criar.

Logo, significa que não há arte verdadeira que seja inútil, pelo contrário; se impelido, se chamado, o artista inconfessável deve somente fazer e deixar o resto com Deus e com o destino.

Mãos à obra, pois.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/06/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Zé Lins ensina
a ironizar

Tempo de leitura: 5 minutos

Ainda leio jornal que suja a mão, no bom e velho papel. Faço isso desde guri, quando meu pai lia o Diario Popular (sem acento no “a”, mesmo) ou a Gazeta Esportiva, ambos de São Paulo, extintos. Pouco mais tarde, na adolescência, minha irmã mais velha encasquetou de ser jornalista e, em busca de referências, muniu-se de periódicos mais chiques: a Folha e o Estadão. Lembro especialmente das edições dominicais desses jornais, que pesavam por volta de um quilo cada exemplar. Era leitura para a semana toda. A partir de então, aprendi a ler colunistas, não sei porquê. Não parei mais. Eu devia ter o quê, uns onze, doze anos.

Leio colunistas hoje em dia: malgrado exceções muito honrosas, na maioria remanescentes do cenozóico, há uma entressafra no colunismo de dar dó. Dó do leitor. Sobe-me uns pudores por dizer o que direi, contudo é preciso: tem gente a assinar colunas que eu sinceramente não sei bem o que faz ali, para além do eventual ganho monetário. Não falo de concordância ou discordância de ideias: leio com frequência gente de quem discordo, desde que maneje bem a língua de Camões; aliás, ganham-me assim. Mas da tal entressafra, a imagino caída de paraquedas, encaixadas no veículo de imprensa por coincidências incríveis ou espertezas inimagináveis. Não sei bem.

Recentemente, dois desses privilegiados queixaram-se no Twitter de que fizeram colunas irônicas e foram mal interpretados. “Onde está a compreensão textual?”, pareciam dizer, expoentes da clareza e do bom estilo que são. Aham. A julgar pelas réplicas de leitores nervosinhos, diziam, o pessoal não entende uma simples ironia. Será? — pensei com meus botões. Porque, sendo ambos produtos da entressafra, eles não são lá muito hábeis na arte de ironizar. A figura de linguagem é coisa fina, reservada a mestres. Quero dizer: souberam eles trabalhar o recurso para que o pobre leitor entendesse, de bate-pronto? Porque, suspeito, o problema talvez fosse outro. Talvez fossem maus textos, aqueles. Eis a dura verdade.

Sustento a tese de que figuras de linguagem bem aplicadas, a ironia em especial, são captadas de imediato pelo leitor médio. Por avançados, nem se fala. Digo captados no efeito, não na definição semântica. Também quereria explicar que ironia não é sarcasmo — que é exagero carregado e amargo; nem galhofa, que é o atropelo da sutileza. Entretanto, não me dou a didatismos. Não sou professor de estilo, nem me arvoro a tal.

Para tirar a limpo, replico abaixo um texto do escritor José Lins do Rego, a que tive acesso recentemente. Não apontarei ironias: veja por si a gentil leitora, o gentil leitor, como o autor de Menino de Engenho, Fogo Morto, Riacho Doce e grande elenco maneja o idioma. E aproveite para deleitar-se com a verve do mestre, assaz melhor que a desta irrelevância, e elemento faltante à nova geração do colunismo. Volto em seguida:

Carta a Escorel

“Recebi, meu caro crítico, a sua carta onde volta a tratar de clássicos e românticos. É pena que eu não disponha de espaço para transcrevê-la, pois se trata de missiva muito bem escrita, embora não tanto bem pensada.

Em princípio não afirmei que as suas preocupações anti-românticas fossem caminho em rota batida para o reacionarismo político. Temi, somente. E temor de quem já vira outras grandes vocações como a sua tomarem por estradas perigosas. Sei de sua honestidade intelectual e me alegro em sentir em mocidade tão vibrante, e generosa, desejo de debater e, sobretudo, de compreender.

Agora, meu caro Escorel, vou lhe ser franco, muito franco: o seu horror ao romantismo, isto de querer colocar a questão entre liberdade e licença, isto de falar de anarquia, tudo isto não me agrada. Os déspotas sempre que se depararam com o problema fundamental da liberdade vinham logo com esta palavra de licença, para confundir e meter medo. Para todo aquele que se batia pela liberdade, o déspota tinha a chave: “estes que gritam pela liberdade só desejam a licença para destruir a ordem”. Confesso-lhe que não gostei de ver a sua mocidade com palavras de raposas sabidíssimas.

Outra coisa também, com que não me conformo, em sua carta, é querer você atribuir ao romantismo os crimes do nazismo. E querer botar em cima de Wagner e de Nietzsche as culpas desta guerra. Por que confundir o crime com o romantismo? O que existe no nazismo não é uma exasperação romântica como você diz, o que existe ali é somente fúria assassina. E fúria assassina ordenada, conduzida com o maior rigor, dentro de normas, ao compasso de marchas de gansos, tudo elaborado com a mais requintada gramática latina. Hitler é filho germânico de César, criação política de Roma. Wagner e os duendes da floresta negra são somente cenário para o sonho de mais um criador do império mundial. Mas isto é outro conto, como diria o inglês.

Cita você André Gide, fala de disciplina clássica como de conduta essencial à criação literária. Está tudo muito certo. Mas Gide fala para literaturas de maturidade, e nós no Brasil, meu caro Escorel, andamos em perigosa adolescência. O que é remédio para quem já deu um Montaigne não será dieta para quem carece de terra, de sol, de substâncias outras que organismos saturados repelem. Estamos nós brasileiros em tempo de muito precisar de viver, à grande. Para o homem que tem rios para atravessar, árvores para derrubar, terras virgens para lavrar, não se vai obrigar a tomar professor de ginástica sueca. A ginástica sueca fica para Gide, que cultiva rosas.

Em todo caso eu lhe diria, caro Escorel, é preciso não temer românticos. Fala o grande Valéry, tão da ordem clássica, que “toul classicisme suppose un romantisme antérieur”. E este mestre chega a estabelecer um quadro onde o romantismo aparece como o espírito pioneiro, a força que desbrava, a energia que conquista. E que, para completar esta obra, viria o clássico como a polícia de costumes, como a lei que impõe cartas de posturas, etc.

Sucede, meu caro Escorel, que nós no Brasil ainda estamos em plena selva. Ainda há muito trabalho para bandeirantes, para desbravadores, para gente dura e rude. Por isto, Escorel, eu ainda prefiro escutar os Sarmiento, os Euclides da Cunha, os Hernández, os Castro Alves. Estes sabem os segredos da mata, os perigos dos bichos, as asperezas da terra. E Gide, com todo o seu gênio de jardineiro, e Maurras, com toda a sua sabedoria da antigüidade, não saberiam nos conduzir na “bandeira”. É tudo quanto lhe diz o seu admirador.”¹

E então, ironias captadas? Se sim, minha tese há de estar certa: o bom leitor entende o bom texto; o mau escritor reclama do leitor. Possível objeção: “mas há gente que não entende mesmo, caspita! Você não sabe do analfabetismo funcional?” Sim, decerto. Mas ninguém que escreva profissionalmente o faz para incapazes de entender. Daí o problema dos moçoilos queixosos ser outro, com licença: falta muito Zé Lins e companhia limitada na cuca.

Portanto, pessoal: treino e aprendizado. C’est fini. Sem caô.


¹ REGO, José Lins do. Dias Idos e Vividos (Antologia). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981. pp. 113–114.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Véio da Havan
no Museu do Prado

Tempo de leitura: 5 minutos

Horas depois de tomar a terceira dose da vacina contra a Covid-19 — o booster by Pfizer — sentei-me um pouco no sofá, pois o imunizante causara em mim o que na boa Bahia chama-se leseira. Reação à vacina. Mas tentei passar a leseira de um modo interessante, e então, ao bater os olhos numa velha coleção repousada na estante, intitulada Grandes Mestres da Pintura, puxei o volume 7 que trazia as obras de Diego Velázquez (1599–1660).

Inevitável ver a reprodução dos quadros do pintor espanhol e não sentir um enlevo na alma. Mergulhamos no indecifrável ao ver suas telas, saímos de onde estamos e como que adentramos no quadro, o qual torna-se vida, presença. Cada olhar enigmático captura nossa atenção como um ímã. Cada pessoa, cada cena retratada por Velázquez é como se o artista transportasse o fragmento vivo diante de si num instante longínquo e o trouxesse a nós, hoje. Então, abre-se como que um portal no tempo. Penso, contemplativo: se a arte existe, Deus existe. Velázquez pintava com a mão de Deus.

Fechado o volume, encerra a contemplação. E devagarinho vai-se a leseira by Pfizer.

No dia seguinte, vou ao supermercado. E naqueles corredores, tenho um flashback: vem-me à cabeça uma conversa que tivera em 2008, no corredor do cafezinho da empresa. A Mega-Sena acumulara, e a turma, ao combinar um bolão no escritório, pôs-se a sonhar e a dizer o que fariam se botassem a mão na dinheirama. Pergunta batida, respostas idem: carro, casa, viagem; ajudar os pais; chutar o patrão e trabalhar “pra mim”; arranjar uma gostosa; e companhia limitada.

Daí o zé papo-cabeça aqui não se segura. No meio do parlatório, olho para um colega que divagava bobamente à minha frente e digo: “se eu ganhasse aquela grana, em primeiro lugar aprenderia a ser rico”. Ele me olha meio espantado. “Que diabos esse aí tá falando?”, faz com a cara. Leio seus pensamentos e emendo, “de que adianta ter tanto dinheiro e não saber desfrutar? Mansão, carro, viagem? Ter avião, fazenda com pista de pouso? Depois, escutar breganejo universitário e entornar rabos-de-galo em frente à churrasqueira? Isso não é ser rico. É ser pobre com dinheiro. Rico pede um jeito de ser, um refinamento adequado, uma cultura de acordo.”

À evidente falta de interesse do colega, corto a argumentação. Pena. Sigo por aqui, anos depois, pois continuo com a mesma opinião fresquinha na mente; opinião aliás renascida e vitaminada, sobretudo desde que travei conhecimento com certa figura infeliz deste vigente Brasil do Bozo: o famigerado Véio da Havan.

A este senhor, cujas lojas macaqueiam a Casa Branca do Tio Sam sobre nosso barro vermelho, chamam também Zé Carioca. Algo injusto e impreciso. Primeiro porque, malgrado o paletó-fantasia, Véio da Havan não tem nada de carioca; segundo que nem de longe mostra a simpatia do papagaio boa-vida de Walt Disney. O sujeito está mais para Dr. Silvana, arqui-inimigo do Shazam. Com uma diferença: Dr. Silvana respeitava a ciência até demais, afinal era um cientista maluco. O Véio da Havan, nem um pingo: sonega o conhecimento acumulado pela humanidade até em delicados assuntos de família, como num caso que tristemente soubemos.

Mas o tipo é bilionário e orgulha-se em dizê-lo. E grava uns vídeos em smartphones – hábito deveras aristocrático. Pois num daqueles vídeos, põe-se ele a dizer “eu tenho dinheiro, tenho dinheiro, posso parar de trabalhar quando quiser, e você?”, por aí vai. No contexto, ele se colocava contra o isolamento social no início da pandemia de Covid-19, insinuando que essa história de pobre se isolar da doença é muito luxo. Em seguida, esfrega na cara do brasileiro médio a montanha de dinheiro que possui. Gesto nobre e magnânimo. Algo como Mike Tyson ir a uma creche, reunir uns pimpolhos em volta de si e dizer “ninguém aqui é páreo pra mim”, para depois enrijecer os bíceps e rosnar (Mr. Tyson jamais faria isso, quero crer).

Pois o lamentável senhor pode ter mesmo muito dinheiro, ninguém nega — o que prova que o capitalismo pode ser tudo, menos justo. Porque o Véio obviamente não aprendeu a ser rico conforme defendi na frustrada disputatio da firma, em 2008. Ele teria grana de sobra para degustar, sei lá, um canard au sang no La Tour d’Argent de Paris, por exemplo; ou quem sabe repousar à mesa um legítimo Pata Negra Juan Pedro Domecq; poderia ainda umedecer a goela com um Macallan in Lalique 50 Years, sem sobressaltos. Mas, por favor: consciente do que significam tais mimos, com detida atenção aos detalhes.

Enfim, ele poderia tudo isso e muito mais, não apenas porque “tem dinheiro”, mas porque a bufunfa possibilitaria ampliar horizontes, gozar a vida, admirar-se um pouco do bom e do belo que o mundo tem a oferecer. E quem sabe, com o coração enternecido pela sorte que tem (ninguém chega a bilionário trabalhando, pare com isso), bem, retribuir algo à nossa sociedade, uma nesga que seja. Bancar a Cinemateca Brasileira, por exemplo. Seria o mínimo.

E olha, para tanta experiência aprazível nem precisa bilhão. Uns milhões já são suficientes. Mas o bilionário certamente trocaria a Costa Amalfitana de Gore Vidal pela Disneylândia do Pateta, para comer hot-dog com ketchup e pipoca amanteigada no balde, todo faceiro e pimpão; tanto mais porque não há empregadas a dividir o vôo da United com ele, graças a Paulo Guedes, seu igual.

Mas deixe-me voltar ao livro de Velázquez. Na última página, consta a informação de que as principais obras do pintor ibérico encontram-se no Museu do Prado, na Espanha, perfazendo um total de 53 quadros expostos. Pergunto-me se o cara das estátuas americanas de fibra admiraria a autêntica galeria madrilenha. Duvido muito. “O quê? Museu? 53 quadros? Peraí, você disse 53?” Certamente daria logo um bypass, não sem antes indagar-se, meio apoplético, “pra quê isso? qual a serventia?”, enquanto baba na camiseta verde e amarela.

Ok, meio que pego pesado. Dirão que invejo o Véio. Óbvio que sim: quisera eu ter tanto dinheiro como o havânico, saibam os doutores. Ademais, que resta a nós, aprisionados nesta encarnação de pobre melhorzinho-esforçadinho, um degrauzinho e meio acima da pobreza e a brigar todo mês com o cheque especial; ora, que nos resta exceto menosprezar um pouco os ultra-endinheirados? Sobretudo os filisteus até a medula? Tivesse uma fraçãozinha daquele tutu, eu seria feliz como ele nem imagina.

Claro, claro: não precisa ser bi nem milionário para ir ao Museu do Prado ver Velázquez. Bastaria arranjarmos um Ministro da Fazenda decente, que arrumasse a economia e o câmbio, no plano macro; e no micro, trabalhar, juntar algum e programar a viagem. É, eu sei. Está nos planos. Ocorre que o calvo poderia fazê-lo na hora que quisesse, mas a hipótese muito provavelmente nem lhe ocorre. Em vez disso, o que faz? Come hambúrguer no Madero? Lê as obras completas de Carluxo no Zap? Financia estripulias golpistas a terças-livres et caterva? Quanto desperdício. Pfui.

Enfim, o Véio é daquelas figuras que nos ressecam a inspiração, de modo que é melhor não demorar-se muito nelas. Portanto, encerro este colóquio à guisa de desabafo com uma pérola do filósofo popular e jurado Pedro de Lara, dita a madame Elke Maravilha (referindo-se a Silvio Santos — pioneiro da mesma lavra filistina donde procedem havans e quejandos):

“Tem gente que é tão pobre, mas tão pobre, que a única coisa que tem é dinheiro.”

Ó, sábio homem. Ó, injusto mundo.

Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 5/2/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Meus sete níveis
da prosa literária

Tempo de leitura: 8 minutos

Certo dia, pus-me a pensar na questão “o que é literatura?”. A palavra evoca certa erudição à primeira vista e há variadas definições para ela. Pessoalmente, diria à minha filha de seis anos que literatura é o mesmo que a arte da escrita. Não importa qual gênero textual. Por exemplo, é consabida a história dos famosos relatórios administrativos de um certo prefeito de uma cidadezinha do interior das Alagoas: um tal de Graciliano Ramos.

O alcaide teve o talento para a escrita descoberto por meio daqueles papéis burocráticos que relatavam a situação da administração do município. Ocorreu que a veia do artista já aparecia ali, em frases surpreendentemente interessantes. Numa palavra, aquilo tinha literatura, pois tinha arte. Chegado tal material ao conhecimento do sr. Augusto Frederico Schmidt — poeta e editor no Rio de Janeiro — fez-se o contato inicial e o ex-prefeito Graciliano foi alçado àquela que seria sua verdadeira vocação: escritor.

Quem dera tivéssemos mais Gracilianos e mais Schmidts.

Mas voltando ao assunto. Tudo que se publica é mesmo literatura, ao menos um pouquinho? Bem, críticos literários bocejariam nesse instante, pois sabem que tal pergunta já foi respondida de há muito. Minha intenção é mais modesta. Não sou crítico literário. Apenas rabisco um mapinha num guardanapo para a amiga e o amigo se encontrarem, de um jeito simples. Lúdico, até.

De modo que proponho um exercício prático. Imagine que você vai a um hipermercado e ali, antes da seção de pneus, esbarre num estandezinho de livros dispostos com desmazelo típico: vê uma autoajuda ali, o panfleto feminista acolá; um manifesto identitário e um Machado para constar; a biografia daquele ex-BBB; outro manifesto feminista e atrás dele, um livro de dieta. E o Torto Arado.

O que há de literatura ali?

“Machado, claro”, dirá o espertinho, sem titubear. Fácil demais. “Ah, Torto Arado!”, dirá a doce jovem que ama ler e que coleciona marca-páginas de crochê e assiste a booktubers. Hum, Torto Arado… ouço falar e uso de boa-fé. Mas enquanto a hipótese de visitar o sr. Itamar não me ocorre, seus leitores poderão saber se o bom baiano faz mesmo literatura, em qual nível; isto se minha classificação abaixo fizer algum sentido e conversar com a verdade.

Mas antes: não dogmatize, caridoso e eventual leitor; credo-em-cruz, Deus me livre e guarde. Sou leitor como tu, não autoridade no assunto. Ciente disso, posso inclusive abandonar esta classificação se me chegar uma melhor. Haverá melhores, seguramente. Dou-me por satisfeito se soar parecido aos mestres, se resvalar um tiquinho nos grandes. Embora deva dizer que jamais vi classificação parecida; logo, qualquer semelhança será mera coincidência.

Outra coisa importante (não vá embora!): a classificação serve apenas para prosa de ficção. Não entendo patavina de poema, de teoria poética. Este gênero está fora da consideração abaixo, exceto onde anotado. Também não trato de não-ficção (exceto no último nível, por pura necessidade). A arte da escrita está presente na prosa não-ficcional, evidentemente. Mas quanto a esta, limito-me a admirar os bons textos e rejeitar os ruins. Não me atrevo a classificar.

Sem mais delongas, enxergo a prosa em sete níveis por ordem de importância, a saber: Literatura de Tradição, Altíssima Literatura, Alta Literatura, Literatura Intermediária, Baixa Literatura, Subliteratura, Desliteratura.

Nível 1: Literatura de Tradição

Nela se baseiam as grandes religiões. Ela inicia civilizações, cria e mantém as grandes tradições; são a base da linguagem, mãe de idiomas. São os livros sagrados, as obras eternas, únicas, sem paralelo; mesmo o não-leitor tem contato ao menos indireto com elas, pois estão incorporadas ao espírito dos povos e de nações inteiras. É o nível mais alto da literatura, quase transcendente, pois separa o humano das demais criaturas, inventa sua Língua, estabelece seu espírito e dá forma a seu pensamento. Dela derivaram todas as demais expressões literárias, todas as manifestações culturais e tradições dos povos ao longo da História. Breves exemplos: os livros sagrados das grandes religiões; as peças gregas; os épicos; a Ilíada e a Odisséia; a Eneida; a Divina Comédia¹.

Nível 2: Altíssima Literatura

Esta é a categoria das obras mais importantes da prosa enquanto leitura. Não são apenas obras clássicas, mas referências máximas que modelam gêneros, justificam a existência destas e elevam a outro nível a arte literária. São matrizes quando se trata de ficção. Por exemplo: Dom Quixote, Moby Dick, Guerra e Paz, Os Irmãos Karamázov, o Fausto de Goethe, as peças de Shakespeare².

Nível 3: Alta Literatura

Esta é por excelência a seção dos maiores clássicos da literatura universal (e aqui adentra um brasileiro), especialmente os grandes romances dos séculos XIX e XX (mas não só): Madame Bovary, Crime e Castigo, Anna Karenina, Razão e Sensibilidade, Um Conto de Duas Cidades, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro etc. etc. etc. Impossível listar os mais importantes. O conjunto consta nos cânones.

Nível 4: Literatura Intermediária

Clássicas ou não, as obras intermediárias carregam adiante a tocha da literatura. Nada têm de medíocre — muito pelo contrário. São grandes livros: uns clássicos e outros não necessariamente, segundo a crítica. Podem figurar em listas importantes e não raro serem “clássicos pessoais”, a depender do gosto de quem os lê. De toda forma, são prosas feitas com tal arte que ultrapassa o mero prazer em ler. Dialogam com a existência humana e seus dramas. São obras importantes, pois nenhum leitor que se preze pode prescindir delas ou menosprezá-las. Alguns exemplos (dentre centenas): O Processo Maurizius, Servidão Humana, Mrs. Dalloway, A Montanha Mágica, Lolita, O Som e a Fúria. A lista é imensa, imensa…³

Nível 5: Baixa Literatura

Não se assuste com o “baixa”. Falamos ainda da arte e estamos protegidos pelas cercas do bom gosto. Ainda nos abrigamos na casa da literatura, mas fomos ao quintal para espairecer um pouco, tomar ar fresco. Por que este “baixa”? Algo pejorativo? Não, de maneira alguma. Pelo seguinte: embora ainda literatura, aqui estão obras mais comerciais, geralmente recentes do ponto de vista histórico, mas de qualidade indiscutível. São livros de ótimos e de bons autores, que dialogam com os grandes textos e grandes autores. Caracterizam a baixa literatura:

  1. a intenção de ser popular, porém com qualidade;
  2. transportar e preparar o leitor para literaturas mais elevadas (dos níveis acima, portanto), numa espiral ascendente. Aqui está sua maior atribuição.

Portanto, digamos que a baixa literatura cumpre uma função nobre e importante: apresentar o mundo dos bons livros ao leitor iniciante e ensiná-lo o gosto por ler. Não que seja coisa apenas de novatos, de maneira alguma. Pode ser que os livros desses autores tornem-se clássicos algum dia, embora seus autores não sejam clássicos no todo; o que não os afasta da apreciação mais que merecida. Exemplos (por autor): Morris West, Somerset Maugham (cujo Servidão Humana citado acima considera-se clássico), Truman Capote (A Sangue Frio, outro clássico), Georges Simenon, Agatha Christie, Isaac Bashevis Singer, Mario Vargas Llosa, Milan Kundera… entre centenas e centenas de outros.

Nível 6: Subliteratura

Aqui a coisa muda sensivelmente: fechamos a cara. Há um corte abrupto, uma mudança de cenário. Saímos da arte e entramos na caricatura da arte, logo, no engodo. Como o nome indica, a subliteratura está abaixo do fazer literário. Há uma subliteratura de iniciantes ou amadores inábeis, facilmente detectável e tolerável por motivos óbvios: o que não significa que todo estreante faça subliteratura, longe disso. Todo grande escritor começou um dia. A diferença se nota no teor. Quem fizer algo relevante irá adiante, cedo ou tarde.

Mas grassa aqui outro tipo de escrita, algo intencional. Seus autores escrevem por fórmulas fáceis de composição, tramam enredos esquemáticos, formulinhas que “funcionam”: começo, meio, fim, pá e pum. Não têm cuidado com chavões ou lugares comuns, pelo contrário.

A subliteratura profissional busca vender muito e distrair. Não busca a reflexão. Não dialoga com a existência humana, dá-se apenas a melodramas rasos. Abusam da linguagem coloquial. São inverossímeis, e de umas situações tão escancaradamente vazias que por vezes são percebidos pelo próprio consumidor. Seus personagens são rasos, com nomes estranhos. As falas copiam os piores filmes.

Diferente da baixa literatura (nível 5), a subliteratura não quer leitores mas clientes. É o fast-food dos livros: enganam a “fome de ler” mas não nutrem. É o lugar dos best-sellers da hora (americanos em especial; geralmente de autores-franquias, com o nome gigantesco e padronizado nas capas): Tom Clancy, Jojo Moyes, John Green, Danielle Steel. A lista não acaba. Mas há como detectar: o nome do autor é maior que o título da obra? Eles tem um caminhão de títulos e lançam um novo a cada ano? Hum…

De resto, a liberdade. Um Big Mac de vez em quando não mata ninguém: consuma, se quiser. O dinheiro é seu. O tempo, também. A mente, etc.

Nível 7: Desliteratura

O pântano. O horror. Um atentado à inteligência popular. Sim, é possível baixar um pouco mais. Se a subliteratura está abaixo da arte e afasta o leitor-consumidor dos melhores textos, a desliteratura dedica-se a destruir qualquer arzinho de gosto literário. Picaretagem em forma de livro, feita de espertos para burros. Pega-trouxas. Aqui pousam os trapaceiros, os oportunistas, os caça-níqueis; apelativos de toda sorte. Puro desperdício de eucalipto, são todos escritos por ghostwriters de quarta categoria, sempre apressados, mal pagos, com muita preguiça ou tudo junto. Quando autorais (algo quase impossível), serão escritos por gente que se arvorou a escrever sabe Deus porquê, já que não gostam de ler, nunca leem nada na vida, sequer uma nota de jornal. Fácil comprovar: a ofensa ao idioma grita a cada linha.

Nesse ensopado cabe tudo: “biografia” de ex-BBB, confissões da youtuber com uma Espanha de seguidores; aquela capa que grita “Seja Foda” ou “Foda-se-Alguma-Coisa”: sabe que tipo de leitor se impressiona com uma palavra chocante na capa, a ponto de comprar o livro? Zero. Nenhum. Só o não-leitor e futuro nunca-mais-leitor.

Esqueça qualidade. O propósito da desliteratura é vender pelo choque, embarcar no timing e faturar. Quem a consome, suicida o próprio gosto pela leitura de imediato e incrementa a burrice — isso se ler mesmo. A esses, seria melhor assistir séries no streaming, ver rede social no smartphone. Poupar as árvores.

E a literatura brasileira?

Machado de Assis é nosso escritor universal. Diria universal aquele cuja obra o mundo devia conhecer, para seu próprio benefício. Nossos demais escritores clássicos, porém, não os vejo como universais. Suas obras habitariam da alta à média literatura (Níveis 3 e 4). Quanto aos contemporâneos, creio que fiquem pela baixa literatura (Nível 5): conduzem seus leitores à média e alta literatura. E fazem arte, em geral.

Então, pensei nos portugueses que nos deram o idioma, afinal. De cara, confesso minha ignorância além do básico que nos chega ao Brasil (para nosso azar!). Destes, universais indiscutíveis são Camões e Pessoa, eternos. Mas são poetas, e não trato aqui de poesia. Na prosa, Eça e Camilo estariam no Nível 3, Alta Literatura. Universais, também. Saramago foi Nobel de Literatura, mas temo classificá-lo: julguem seus leitores. Lobo Antunes estaria no Nível 4. José Luís Peixoto, Nível 5. Certamente cometo injustiças, sem intenção. Demais lusófonos, há que conhecê-los. Chegarei a eles conforme as indicações me constrangerem a ponto de não suportar o vexame de não lê-los.

Por fim

Toda literatura de todos os gêneros literários nos torna melhores na alma — em diferentes graus. Bons livros sempre levam a melhores livros. Livros ruins levam-nos para longe de todo e qualquer livro. De modo que é preciso educação literária: quando menos, alguma informação que ajude na tarefa. Tentei isso neste breve artigo, humildemente. Espero que com proveito para quem eventualmente o acessar e ler.


¹Nota – nível 1: Embora se apresentem em versos, portanto poéticos, é preciso considerar que a escrita antiga lançava mão da versificação como forma de passar da oralidade à textualidade. Não se trata de poema como conhecemos hoje, isto é, de gênero literário em separado. Ademais, a escrita em verso antecede a prosa tal como a conhecemos, por isso, Tradição.

²Nota – nível 2: Estas duas últimas (Shakespeare e Goethe), embora em verso, foram escritas para o teatro. Goethe também escreveu em prosa. Quanto à versificação, de certa forma, aplica-se o mesmo caso da nota anterior.

³Nota – nível 4: Talvez haja dissenso aqui; certamente haverá. Por isso, reitero: sem dogmas. São apenas percepções pessoais, passíveis de equívoco. De toda forma, mesmo quando não clássicos absolutos, todas as obras são de muito alto nível aqui. A diferença reside justamente na ausência do “cânone” consensual entre a crítica, esta que pode variar muito, pois não se trata de ciência exata.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 29/01/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A alma sensível

Tempo de leitura: 4 minutos

Para além da inteligência, há quem possua uma força invisível que vivifica e impele sempre adiante e acima. Uma gente inconformada, no sentido de não se encaixar em formas predefinidas nem em camisas de força. Não são renegados nem rebeldes, mas espíritos elevados, movidos por virtudes afirmativas e não por oposições e implicâncias. São poucos, entretanto. Não há designação única e definitiva para personalidades assim. José Ingenieros chamou tal disposição de “o idealista”. Ernst Hello, de “homem superior”. O profeta Daniel designa tal caráter como “espírito excelente”. Há outros exemplos.

A essa força motriz, a esse ímpeto provindo de fonte desconhecida e inexplicável chamarei alma sensível. Trata-se da mesma substância descrita acima e, em todo caso, tais personalidades — não importam quais pequenas variações as diferenciem — , opõem-se preliminarmente a dois defeitos da humanidade: a maldade e a mediocridade. A luta desta alma sensível consiste em combater malignos e medíocres, antes de tudo dentro de si. Mas não somente.

Mais frequente que a malignidade é a mediocridade. Produto social, ela normaliza nos indivíduos os vícios da coletividade até o ponto de não serem mais percebidos como vícios. O medíocre — não confundir com o equilibrado e portanto virtuoso — acomoda-se às convenções do momento por um cálculo a um só tempo astuto e defensivo. Sua alegria é rasa e seus lemas de vida estúpidos, sempre obtidos por repetição. Vive de emblemas superficiais e não o incomoda a própria imperfeição. Se chamado a se examinar e a se modificar, o medíocre se ofende e reage, pois, refratário, faz de seus sentimentos confusos e impressões vagas escudos contra toda luz nova e diferente. Evita porquês a todo custo e, passivamente satisfeito, detesta grandezas. Do ponto de vista do intelecto, medíocres são como mortos em vida.

Por outro lado, a sensibilidade interior jamais se nota à primeira vista. Há quem aparente ser alguém absolutamente comum, sem qualquer atrativo imediato, cuja alma é sensível. E existem indivíduos notavelmente cultos e eruditos que, opacos por dentro e por fora, são precários em matéria de espírito.

Nem toda pessoa sensível no sentido comum do termo possui esta alma contemplativa, introspectiva. Seu traço marcante está na abertura às percepções sutis e, ao se valer da cultura — em geral o faz — , não a traz na epiderme mas no íntimo, internaliza seus significados mais elevados. Almas sensíveis captam o movimento dos mistérios, como se todo oculto não fosse invisível mas translúcido, diáfano; discernem o que há por baixo das coisas, captam segredos, notam detalhes por entre as proposições antagônicas. Elas intuem e antecipam.

Humanas, tais almas podem incorrer em erros, claro. Têm um fraco por conjecturar demais e não raro viciam-se em si mesmas, nos próprios pensamentos e teorizações. Também correm o risco do solipsismo. Serão espíritos saudáveis se não confiarem muito nas formulações a que chegam e deixarem a realidade educá-las, falar por si. Com a maturidade, a alma sensível aprende a trabalhar a intuição e a formular conforme as impressões tomam corpo e se definem. Enquanto isso, é magnânima, compassiva. Não age feito juiz ou moralista — exceto se a falha for intencionalmente má.


“Se você é dos que orientam a proa visionária para uma estrela e estendem a asa para a sublimação inatingível, desejoso de perfeição e rebelde à mediocridade, leva dentro de si o impulso misterioso de um Ideal. […] Você só vive por essa partícula de sonho que o eleva sobre a realidade.”
— José Ingenieros¹


Soa algo metafísico, com efeito. Almas sensíveis realmente sentem algo a mais no ar, detectam causas e consequências; taciturnas, são previsíveis na rotina e surpreendentes nas opiniões. Contudo, podem equivocar-se também. A ser assim, refazem o parecer inicial quando a massa mal assimila o senso comum de anteontem. Saem do equívoco antes de consumar seu efeito ou nem mesmo entram: sabem quando o bem torna-se mal; leem sinais difusos ainda em germe no horizonte; recusam-se a ser ovelhas rumo ao matadouro ou mosquitos que, hipnotizados pela luz, voam ao redor da lâmpada para a morte.

Almas sensíveis são reconhecidas por outras almas sensíveis, jamais pelo vulgo. Elas buscam seus pares, seus iguais, porém raramente os encontram, pois não se dão às amizades. Desconfiam muito, reservam-se demais. A presença constante dos outros as deixam aturdidas e irritadiças, como se o contato lhes sugasse a seiva, a energia espiritual. De maneira que se fecham àquilo que justamente as poderia fortalecer: os amigos. Talvez esteja aqui sua maior fraqueza.

Como se vê, ninguém é perfeito. Mas as almas sensíveis anelam a perfeição. Embora seja impossível alcançá-la, a jornada vale por si. Seus padrões são elevados. Para com fortes, alternam admiração e desprezo; e dos fracos sentem compaixão. Sua marca pessoal é a solidão, mesmo em meio às multidões.

Enquanto isso, grassa o vulgo lá fora, sempre em busca de satisfação imediata e entorpecimentos variados; saboreiam o mundo como uma sobremesa, incham e esparramam. Não faltam motivos para permanecer no ponto em que estão, no plano interior. Tampouco faltam companhias. Medíocres existem em maior número por um único motivo: facílimo é ser medíocre.

Almas sensíveis, por outro lado, não importa o tamanho de suas angústias ou o peso de suas dificuldades, recusam o nivelamento. Adaptam-se socialmente por necessidade, caridade ou prudência, e só. No mais, são autodisciplinadas e carregam algo da Eternidade em si. Possuem como que asas invisíveis, embora, para não serem tomadas pela soberba para depois caírem como anjos rebelados, não levantam voo diante do próximo. Enquanto presos a esta vida, a elas resta escapar do chão de outra maneira: por meio de realizações edificantes, a si e ao próximo.


¹ INGENIEROS, José. O Homem Medíocre. Curitiba: Editora do Chain, 2011


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 22/01/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Diálogo com Odeque

Tempo de leitura: 4 minutos

Cesare Pavese escreveu Diálogos com Leucó, um clássico; eu arranho um Diálogo com Odeque, um pastiche. Antes, o dito-cujo: Odeque é O. de C., Olavo de Carvalho. À guisa de preâmbulo, autorizo-me a dialogar com este Odeque de minha criação mental, pois apesar de ter sido seu aluno durante uma década, o mestre propriamente dito não me conhecera em pessoa. Andei ali pela escolinha entre 2006 e 2015, meio às escondidas, num tempo em que o máximo de fascismo que um petista podia conceber encarnava-se na acabrunhada figura do dr. Geraldo Alckmin. Bons tempos.

Pois bem antes de o coisa-ruim Bolsonaro lançar gratuitamente o país num inferno astral, estava eu ali, cândido e oculto, na turma do fundão do olavismo cultural; daí que o professor jamais me conhecesse. Contudo, libertei-me e sobrevivi àquilo, vale dizer. Estou limpo. Entretanto, não estive no fundo da sala por ser um dos alunos arruaceiros, como reza a tradição dos fundões. Os alunos arruaceiros tornaram-se os queridinhos do mestre, soubemos depois, quando aqueles subiram ao palco e tomaram conta do show de 2018 em diante. O resultado está aí.

De minha parte, eu ficava lá acanhado, casmurro; aquele aluninho que até estuda um bocado mas guarda tudo consigo, não se projeta, não se manifesta; um esquisito que entra e vai ficando, inofensivo. Ninguém mexe com ele, ele não mexe com ninguém. Pois assim estive lá, a ouvir, anotar, refletir. Depois, debatia tudo intensamente com meus botões, com pedras e plantas.

Findo o preâmbulo, vamos ao assunto.

Em certa entrevista antiga, Odeque afirma com sarcasmo típico que o Brasil jamais teria um Dostoiévski, que nunca chegaríamos a tanto: o tipo da frase desmoralizante que leva o vira-latismo brasuca ao clímax, dado que não há esporte mais estimulante ao complexado vira-lata brasuca que amassar bem amassado a estima brasileira e condená-la ao fracasso antecipado, à frustração preventiva. Antes garantir a derrota líquida e certa que expor-se a lutas, a esforços ou a vãs competições. Leva o troféu, estrangeiro-qualquer-um, toma logo o que é teu. Gastar tempo com disciplinas e melhorias? Abrace logo o fracasso e seja infeliz, pensa o vira-lata. Dá menos trabalho.

Mas divago. O fato é que, mais uma vez, Odeque teve razão. Certamente ele folgaria em saber disso, por novamente diagnosticar a vida como ela é. Todavia, seu acerto deu-se por outra via, de um jeito que ele não esperava. Chutou torto e acertou sem querer. Claro, naquela entrevista — amarga à época, pois Lula acabava de vencer de novo as eleições — ele quis cumprir seu papel e missão de vida, qual seja, polemizar, espezinhar e ofender o brasileiro e a brasilidade, do qual tinha e ainda tem bronca até a medula, embora sirva-se dela. O intento original saiu pela culatra, porém.

De fato, nunca teremos um Dostoiévski porque já tivemos um Machado. Constatei isso na prática quando, em 2016, vi um mendigo na rua a sorrir e a fazer troça não sei de quê. Ao observar aquela cena singela tive um lampejo. Descobri ali certa substância brasileira, no mendigo que ri. Algo que escapa à lógica. Que pode haver de mais nosso que aquilo?

Evidente que, como na Rússia do Fiódor, não nos faltam humilhados e ofendidos; não obstante, nossos oprimidos guardam no lugar da melancolia uma esperança viva dentro de si. Constantemente os índices de felicidade colocam o Brasil numa posição de destaque, até com certo exagero. É comum repórteres da tevê chegarem a pessoas que tiveram a casinha alagada numa enchente, as quais perderam tudo do pouco que tinham e que, sabemos, ninguém irá ajudá-las, e elas dizerem, esperançosas, “podia ser pior, vamos em frente com fé em Deus”. Dia desses vi uma entrevista assim. Quase submerso, o homem sai de sua casinha alagada com documentos nas mãos e sorri: “consegui salvar o RG”. Um forte.

O caso é que o brasileiro não dá muito ibope a seus infortúnios, nem moral demais a estacas zero. Ele sorri — não por alienação nem irresponsabilidade, muito menos por insanidade. Naquele sorriso mora uma centelha, uma fagulha íntima a apontar que o pior já passou, passa, passará (salve, Nelson Ned). Deus há de ajudar. Ele sempre ajuda.

Daí que a escrita soturna de um Dostoiévski não caberia mesmo no Brasil, Odeque. Nossa natureza é outra. Nosso sofrimento foi sublimado pela ironia machadiana, que foi a forma elegante — do bruxo e a nossa, por extensão — de rir das mazelas todas. Rir e lutar, é claro. Com isso não digo que a melhor literatura daqui seja feita apenas de gargalhada e gozação. Temos drama de sobra na praça. Mas sempre sobra uma forcinha residual, um último fôlego guardado para o instante seguinte, para quando a tempestade acabar — e ela sempre acaba. Então, a fibra toma o lugar do desânimo e o brasileiro sobrevive para contar. Além disso, não descemos a subsolos; não nos entregamos a ridículos; não deixamos que o niilismo more em nós a ponto de matar velhinhas usurárias ou engendrar revoluções que traumatizem nosso destino por décadas. Até nossa violência é uma enorme brincadeira (embora de péssimo gosto, bem entendido). Em tudo somos lúdicos e crédulos.

No fundo, nossa aparente fraqueza é um tipo diferente de força. Porque o Brasil é indomável, veja: tirano algum consegue manter nas mãos nossa índole escorregadia, sem aderência. Aqui está um segredo brasileiro. A inexatidão de nosso temperamento e a imprevisibilidade de nossas reações não permitem a ninguém um domínio perfeito e duradouro do país, como quem segura uma maleta pela alça. Ditadores desorientam-se conosco, cedo ou tarde. Nós sempre os driblamos, feito uns pelés.

A história comprova: quem tentou domar o país perdeu-o pouco depois e sempre de um modo estúpido em vez de sangrento. Mesmo na vigência daquele pretenso domínio, o tiranete da vez bambeia, segura-se para não estatelar no chão mole de nossa complexa indefinição e sofrer um vexame que o faça arrepender-se do golpe inicial. Ele queria nossa melancolia, nossa depressão; porém, consegue nosso humor. Assim enfrentamos os dissabores. Se o hoje é triste, o amanhã será diferente, sobretudo porque o tiranete está excluído de nosso amanhã. Saber disso o perturba desde já. Poder no Brasil é pau-de-sebo: tenta-se o topo, escorrega-se em seguida.

Portanto, sim: não temos um Dostoiévski, Odeque. Você está certo do jeito errado. E por tal ilogicidade provas que, embora a contragosto, também és mui brasileiro. Não que o Brasil faça lá muita questão disso. Fazemos questão de Machado e de Pelé. Quem não vive sem a gente é vossa senhoria.

De resto, é como bem disse outro escritor nosso que também não foi Fiódor: viva o povo brasileiro.

Bicho romancista,
filhote romance

Tempo de leitura: 3 minutos

O bicho romancista não é apenas um contador de histórias. Seu ofício não deve ser visto como qualquer coisa menor, como se não passasse de inventar uns quantos causos razoavelmente elaborados ou conversa fiada na forma de livro. O bicho romancista pode ser também um artista do idioma, filósofo, historiador, psicólogo, profeta, (santo não digo). E até mais.

Bicho é modo de dizer, pois ele é estranho à primeira vista. No entanto, pode ser mais gente que a gente. O romancista penetra no tecido da realidade, por entre as tramas, com sensibilidade e argúcia. Ele enxerga a alma humana com olho clínico. Alimenta-se da verdade oculta nas coisas, nas pessoas e situações do mundo, para depois metabolizar tudo de um jeito singular. Feito outro bicho, a águia, ele vê o senso comum desde as altitudes e o recria, o retrabalha.

O romancista é feroz e calmo, veemente e sutil, a um só tempo. Ele articula extremos, ata as pontas, sintetiza complicações, comprime e expande. Abre as percepções como quem abre a janela de um quarto escuro, e nesse simples gesto dissipa as trevas da incompreensão.

O filhote do bicho romancista é o romance. Sem prejuízo dos demais gêneros literários, o romance representa a maturidade da literatura enquanto tal. Por exemplo, muita gente já ouviu o elogio que se faz à natação, “esporte completo, que trabalha todo o corpo”. Pois bem: o romance é gênero completo que trabalha toda a imaginação. Afinal, onde mais se pode descrever tantas faces da existência — faces por vezes caleidoscópicas — , reunidas numas poucas personagens e situações?

As demais artes não são capazes de tal, tampouco se propõem a tal. Pois o romance serve a burocratas, sociólogos, atores, faxineiros, médicos, clérigos; a pobres e a ricos. A toda gente. É nobre criação, da qual o romancista é artífice habilidoso.

Mas, e quanto ao leitor? Descendo ao rés do chão, não vejo com bons olhos quem leia de tudo exceto romances. Tudo bem: pode ser que, para alguns, ainda não tenha ocorrido um encontro feliz com o gênero; haverá tempo e oportunidade se houver disposição. Contudo, refiro-me àqueles que por ignorância desdenham da ficção literária em geral; ou dela façam leituras protocolares, de exceção, para fins de repertório livresco. Agem como se pairassem acima da arte, com suas seriedades comezinhas e estúpidas. Uns filisteus.

Por outro lado, consumir livros de afirmação — a não-ficção propriamente dita, com suas variadas ramificações; voltar-se apenas a teses rígidas e pré-digeridas pelos autores, repletas de conceituações ou análises áridas do cotidiano — , obviamente tem seu valor e utilidade. Não obstante, somente o romance dará ao leitor uma massa maleável e informe a ser moldada por sua própria imaginação. E a imaginação é o dínamo da inteligência.

Quer liberdade maior para o pensamento? Que outro gênero oferece tanto? O romance constrói, amplia e enriquece a visão da vida e das coisas. Depois de lido, a própria não-ficção deriva-se também, ultrapassa as inculcações superficiais, os dogmatismos esterilizantes. Romances educam o ato de ler, treinam a compreensão. Fazem os demais textos ficarem claros, discerníveis. Inclusive os textos ruins, ao denunciá-los como ruins.

Além disso, não vendem certezas. As teses do romance são sutis. Não fazem a cabeça, pelo contrário; por vezes questionam as convicções, como se postassem um espelho diante de nossa vaidade autoindulgente, a nos dizer: “olha como é você, como somos, de que é feita nossa humanidade”. Chegam a confundir-nos, de modo benfazejo; amadurecem-nos, desenvolvem nossa consciência moral e abrem perspectivas, varrendo pré-julgamentos.

Claro: refiro-me ao melhor produto e aos melhores produtores do gênero. O bicho romancista e o filhote romance não se deixam confundir, não admitem impostores. Antes, os desmascaram.

O gentil-homem

Tempo de leitura: 2 minutos

Em tempo de minorias e identitarismos mil, ninguém fala dele: do gentil-homem. Não do homem pura e simplesmente, por favor. Homem é coisa (sim, coisa) detestável per se hoje em dia, categoria condenada por sábios e entendidos de gêneros e temas afins. Falo do gentil-homem, outro papo.

Gentil-homem é aquele tipo boa praça, razoável ou minimamente culto, um pouco tímido, um bocado acanhado, sempre contido. Trabalhador, estudioso, vai por aí. Obviamente honesto e invariavelmente bondoso; jovem ou nem tão jovem. Um tipo de quem a vovó quando moça chamaria bom partido. Aquele a quem Baltasar Gracián dedicou toda uma obra, intitulada El Discreto.

O gentil-homem é tipo raro atualmente, um Quixote sem Dulcinéia, repleto de virtudes ocultas e portanto desperdiçadas. Ele não estará nas noites da cidade. Ele não pegará ninguém. Ele é romântico e atencioso sem ser gay, fique bem entendido.

Ninguém espere que o gentil-homem saia pelas ruas empunhando cartazes em sua defesa, reivindicando direitos, exigindo representações. Seu pudor jamais o permitiria. Quando feministas montam em seus rolos compressores verbais, asfaltando tudo que é masculino, os exemplares canalhas e cafajestes do grêmio macho nada sentem, pelo contrário; mas no seu canto, o gentil-homem enrubesce e se recolhe. Acha que é tudo com ele, coitado. Se responsabiliza, se culpa. Porque ele vê algo de sagrado no feminino: a sua própria mãezinha, a Virgem Maria Mãe de Deus.

É mais fácil que gentis-homens empunhem livros clássicos nos espaços públicos — talvez num Kindle se for jovem — que montar em motos com coletes de couro e ir a motociatas do Bolsonaro para xingar comunistas. Ninguém os verá em barbershops de macho a tomar cerveja artesanal, arrotar e falar de bunda feminina. (Gostam de ambas, sim; com discrição e cortesia, porém.)

Não esperem que programas de sofá da tevê debatam a segregação do gentil-homem, que reúnam cases emblemáticos, depoimentos de vítimas do preconceito contra eles. Tal não ocorrerá, pelo simples motivo de que ninguém sabe o que é um gentil-homem. Hoje em dia, ninguém sabe. Principalmente — e infelizmente — as moças e suas sonhadas futuras famílias (pois sim, há ainda as que desejam tê-las, embora o artigo esteja fora de moda), elas não se dão conta da existência deles, deixam-se levar pelo barulho. De modo que ambos se desencontram na vida e nada lá fora ajuda na tarefa de aproximá-los.

Pois o mundo ainda sofrerá por desdenhar o gentil-homem, anotem. Ele, comedido — e quem sabe agora mesmo um tanto ruborizado ao ler estas linhas modestas, um tanto tocado por essa lembrança singela — , ele terá pudores de avisar em público a sua utilidade. Embora saiba disso. Embora saiba um bocado de coisas.

De sorte que, se a sociedade os ignora, ó moça valorosa, despertai! Se és realmente inteligente e de boa cepa, não dê sopa! Gentil-homem é o nome: procurai, observai, notai! — porque eles existem e estão a vagar por aí, asseguro.

A primeira impressão
é a que fica?

Tempo de leitura: 4 minutos

“Axe. A primeira impressão é a que fica.”

O famoso slogan data dos anos 1980, quando os comerciais de tevê não desfrutavam dos atuais recursos de computação gráfica, de imagens em 4K HDR a 60 frames por segundo e outros recursos tecnológicos da atualidade. Naquele tempo, a limitação visual da publicidade era compensada criativamente pelo texto publicitário, e há toda uma galeria de propagandas daquele período que se tornaram marcantes, inesquecíveis: o dilema de Tostines, o efeito Orloff, e tantos outros.

Embora ótimo, o slogan “a primeira impressão é a que fica” talvez caísse bem para o desodorante, não para o gosto literário. Bem, assim julgo eu, a partir de minha própria vivência de leitor até agora. Passo à primeira pessoa do plural, pois imagino que a experiência nos seja comum: no início, quando se abre a caixa mágica da grande literatura para nós, logo elegemos nosso autor preferido e nada mais importa nessa vida. Essa é a primeira impressão. Que não fica, porém.

Conforme descobrimos e mergulhamos na leitura, o leque de afinidades se amplia ou até muda completamente. Não significa que o autor preferido de ontem será o desprezado de amanhã, pif-paf, como se o gosto literário fosse algo bipolar. Não. Ocorre que, quanto mais o repertório de obras aumenta, mais descobrimos aqueles autores que se adequam não apenas ao nosso paladar textual de momento, digamos, mas ao nosso temperamento, à nossa personalidade, circunstância, maturidade. Numa palavra, à nossa afeição.

No meu caso, um escritor que de início deixou-me embasbacado foi Flaubert. Li Madame Bovary e fiquei não apenas fascinado com a história enquanto tal, mas também com a precisão vocabular, o acerto meticuloso de cada parágrafo, como se ele escolhesse cada palavra com esmero, para não estar ali à toa. De fato foi intencional, descubro depois. Achei genial.

Depois ainda leria de Flaubert seus Três Contos¹ (Um Coração Simples, A Lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade) e então não tive dúvidas: o melhor romancista era também o melhor contista. Achei meu lugar. Demais autores que me perdoassem, mas meu coração de leitor pertenceria ao mestre francês. Ainda leria depois seu Educação Sentimental e minha predileção só aumentou.

Mas a fila andou, sem que eu desse por isso. Guardei em bom lugar a ternura que senti por Flaubert e fui acessando outros textos e escritores. Sem intenção alguma. Não quis trocar de autor preferido a princípio. Por exemplo, mais à frente conheceria Tolstói. Colossal, monumental, o maior de todos. Assim entendi Tolstói: um totem para ser admirado com distanciamento reverencial e certo assombro. Grandioso demais para ser autor de cabeceira. Sua voz representa a universalidade do drama humano de todos os tempos, não de um leitor específico (embora possa, claro).

Contudo, não são os monumentos que trazemos ao coração, via de regra. Nosso autor preferido fala ao nosso íntimo, à nossa particularidade subjetiva, para além de suas histórias cativantes. Traz-nos uma identificação pessoal. De sorte que continuei fiel a Flaubert, até que por acaso tomei conhecimento de um tal Philip Carey, protagonista de uma obra chamada Servidão Humana, escrita por certo William Somerset Maugham.

Para além da obra em si — espetacular — a maneira de Somerset Maugham narrar inspirou-me não apenas a ler com gosto, mas a escrever. Quer dizer, quando li Servidão Humana² tive um estalo e disse a mim mesmo, não me pergunte como: quero fazer isto aqui, desse jeito (o dedo indicador direito batendo na página). Escrever ficção. Depois iria a outras obras suas, e a sensação permaneceu. De novo, não se tratou de um aspecto comparativo, de maior este-menor aquele. Maugham tornou-se melhor que Flaubert para mim? Não. Ocorreu a identificação, espontaneamente. Se um dia eu escrevesse, seria aquele meu norte. Não como cópia ou imitação; de fato, não sei se o ‘som’ do meu texto é semelhante ao de Maugham (para azar meu).

Então, o que houve?

Para além do estilo adorável, notei que a prosa de Maugham não deixa o leitor perdido, flutuando na narrativa. Com peculiar sutileza, ele situa o leitor no espaço, no tempo e na situação; muda o cenário, ele te situa. Talvez esse cuidado decorresse de sua carreira de teatrólogo que ele também foi, e dos grandes. Mas ele faz aquilo de maneira gentil, captando com antenas sensibilíssimas tudo que acontece ao redor: cada levantar de sobrancelha, cada rubor disfarçado, cada olhar de soslaio, cada expressão corporal a expressar secretamente pensamentos e as reações íntimas que os engendram. Maugham descreve com argúcia ímpar cada, como direi, microrreação dos personagens (não sei se existe o termo, perdão).

E faz tudo isso com uma clareza fascinante, direta, não de maneira labiríntica. Pessoalmente, admiro esse tipo de fluência textual escorreita, o qual, sem abrir mão da elegância, não abusa das frases intercaladas. Não sou exatamente inimigo da intercalação, note. Considero o recurso como um dressing gastronômico, um toque, uma pimentinha no bobó de camarão. Um efeito sonoro no espetáculo da clareza.

Além disso, em sua maneira de narrar, Maugham é um cavalheiro, trata com educação seus personagens, não como se fossem estúpidos (a menos que sejam mesmo). E sua voz autoral não faz questão de se exibir, esconde seu conhecimento. Faz isso por modéstia, acho, por temer o cabotinismo e a afetação. Maugham não se pavoneia, talvez por timidez ou delicadeza. Troca o julgamento pelo espanto e admira as personalidades que retrata. Escreve como quem pinta um retrato, com pinceladas suaves e precisas, estudando cada tonalidade, cada nuance. Gosto disso. Quero ser assim.

De maneira que não abandonei Flaubert, por favor. Ainda somos bons amigos e eu não ousaria desmerecê-lo nem um pouquinho (mas vê se pode!). Confesso, porém, que não o visito há um certo tempo e, para ser sincero, temo que tal distância não nos esfrie a amizade, resultando em mera simpatia distante. Admito o risco. Isso não significa também que doutor Maugham possa se gabar de algum monopólio afetivo-literário por aqui. Não obstante, como ainda há muito em sua obra por descobrir, diria que por enquanto até pode, um pouquinho; tanto mais porque nutro por ela interesse e curiosidade, ingredientes essenciais de um relacionamento literário duradouro.

E de qualquer relacionamento, aliás.



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