Eu, o suspeito

SENDO homem e não sentindo nenhum incômodo por sê-lo, frequentemente sou vítima de olhares estranhos quando vou a certas lojas nos shopping centers. Não, os olhares não vêm de colegiais de blusas Gap com milkshakes em punho, exalando olor de cereja dos cabelos. O olhar, na verdade, vem de simpaticíssimos seguranças.

Por que raios se preocupariam comigo? Vejamos: não creio ter “cara de suspeito” — é escusado dizer o que vem a ser cara de suspeito; fiapos brancos me aparecem nas têmporas; ruguinhas surgem aqui e ali… embora não me vista como um fidalgo, não ando aos trapos, nem sou dado às sportswears típicas de suspeitos; meu pouco cabelo anda em relativa ordem, e para arrematar, uso óculos de grau.

Pois bem, preencho assim o quesito suspeito, à primeira vista? No entanto, basta entrar numa loja e lá está o guardinha a me vigiar, de longe, observando meus gestos, como se eu fosse um larápio em potencial. Não sei quais critérios usa para detectar gatunos. Como foi orientado? Disfarço, mas noto, não há como não notar: tem um nariz apontado em minha direção, desfocado pela visão periférica.

Evito encarar o sujeito de volta e trombar com sua cara desconfiada. Temo confirmar-lhe uma possível tese: a de que, se um sujeito volta-lhe os olhos quando é vigiado, é porque realmente intentava o furto e ele, vigilante atento, impediu o ato. Ironicamente, se roubasse mesmo, não deixaria de fazer minha boa ação do dia: tornaria o infeliz útil uma vez na vida e ele teria alguma história para contar no botequim. Mas não lhe faço a caridade. De maneira que fico lá, olhando a prateleira, incomodado com minha liberdade de consumidor cerceada. Dividido entre não me importar com a observação excessiva ou sair sem comprar nada, opto pela segunda opção. Par délicatesse J’ai perdu ma vie.

Quando estou acompanhado por minha mulher, eles nem me olham assim. Viro um sujeito de família, vai ver. Talvez agrave o problema o fato de eu preferir ir às minhas (raras) compras sozinho, e antes de escolher um produto, examinar bem as opções: gasto tempo mesmo, sou um comprador indeciso a princípio. O esforço compensa. Após a escolha, costumo gostar muito de minhas aquisições, bem pensadas que são. Mas meu ritual particular deve perturbar os carinhas. “O cara demora muito, olha daqui, escolhe dali… quem demora, quer roubar”. Será? Imagino o oposto: ladrões costumam agir rapidamente. Ou não?

Às vezes, encaro os sujeitos de volta. Geralmente desviam a cara, para despistar. Tarde demais, eu percebi. E quando os vejo, constato: eles, sim, têm cara de suspeito. Se os visse na rua, sem paletó amarrotado com embleminha, certamente esconderia a carteira. Então, por que tanta desconfiança? Pensariam algo como “essezinho aí, de óculos. Hmmm, sei. Essa carinha de quem passou vinte anos estudando, nerdezinho do carai. Não me engana não, nesse suéter.”

Perguntaria você: que raio de lojas são essas, repletas de seguranças tão desconfiados que você freqüenta? Uma livraria, veja só. Não bem uma livraria; aquelas megastores, que nos anos 90 chamavam-se shoppings culturais, que vendem de gibis a eletrônicos. E eu, o suspeito injustificado, ignorando games e apetrechos apple, vou direto aos livros.

Vou à estante de literatura, olho as contracapas, pulo à de filosofia… vejo ali um Marco Túlio Cícero: edição cara que namoro há tempos, capa dura bacana, tradução portuguesa direta do latim. Coisa fina. Folheio um pouco. Ergo as sobrancelhas num trecho, rio discretamente em outro… o livro está meio empoeiradinho, ninguém se importa com ele: os clientes estão concentrados ali no stand do novo Samsung de cinco mil reais. Mas o vigia me estuda: “por que esse cara pegou o livro? Por que esse livro? Por que ri?”

Pensando bem, o problema não deve ser meu look timberland + calça de sarja + óculos. Não. Deve ser estranheza, pura e simplesmente. O sujeito me estranha: “não tem caras assim na quebrada, tem coisa errada aí. Olho nele.” Copia, central?

Pobre segurança. Elevado pelos bons conselhos de Cícero, perdôo-lhe o constrangimento a que me faz passar, estoicamente. Afinal, jamais foi treinado para lidar com um estranhíssimo, suspeitíssimo, perigosíssimo… leitor.

Humor
inteligente?

DUVIDO que alguém realmente inteligente goste de humor inteligente. Inteligentes buscam inteligência em muitas coisas, exceto em comédias.

Humor é fazer graça: o mais pastelão, o mais mambembe, o mais escrachado: se fez rir, cumpriu bem seu papel.

Humor é espontaneidade, um golpe de surpresa que explode em risos. Nada cômico é sugerido de antemão, programado: “olhe, este humor é diferente, ok? para rir diferentemente”. Qual é o objetivo do humor inteligente? Gargalhadas intelectuais? Isso existe?

Os grandes humoristas nunca foram presunçosos. Que exista humor inusitado, vá lá; mas, humor inteligente?

Nem humor, nem inteligente: apenas uma boa desculpa de quem não consegue ser engraçado.

Resistência
à vergonha

NENHUMA condição humana intrínseca dá orgulho. Quem é feliz consigo mesmo não alardeia de punhos em riste, antes adota uma postura leve e ao mesmo tempo magnânima, sem afetação. Ao invés de orgulhosa, gente feliz é autoconfiante e serena. E é bem-resolvida: não briga por algo já conquistado e estabelecido em si. Quem tem a personalidade assentada não busca convencer outros daquilo que é; age naturalmente, com simplicidade.

Uma boa ilustração é a diferença entre o nobre e o novo-rico: o nobre pode ter Ferraris se quiser; pode ter jóias caras e outros símbolos de riqueza. Mas não as têm, necessariamente; não faz questão, porque não precisa provar nada a ninguém. Sabe quem é, conhece o poder que tem. Já o novo-rico, recém-chegado ao universo dos seletos – embora sem sobrenome nem lastro – logo aparece em carros luxuosos, a ostentar sua riqueza recente com itens chamativos, por onde vai. Dentro de si, no entanto, ele sabe que é um filisteu, um neófito; sente a sombra da inferioridade de anteontem a lhe aterrorizar e precisa de todo modo expulsá-la. Daí tenta se impor aos demais, artificialmente: a partir do que exterioriza, busca convencer-se retroativamente da nobreza que não possui.

O mesmo se dá com os tão propagados “orgulhos” que se vêem hoje, aos quatro cantos: de gênero, de tom da pele, da forma de transar, etc. Embora seus paladinos o alardeiem com tanta marra e até agressividade, por um lado, ou projetem uma alegria inabalável de sorrisos forçados, por outro, eles não enganam a si mesmos. Sabem que se enganam na exata medida em que são bajulados pela mídia e pela indústria do consumo, e fracassam interiormente.

Por baixo desse cardápio de falsos orgulhos há outra coisa, latente, lá no fundo: a desesperada resistência à própria vergonha que sentem. Conforme ensina Alfred Adler, psicólogo hoje proibidíssimo: complexo de inferioridade gera complexo de superioridade.

Não os condeno, de maneira alguma. Viver assim — afirmar para convencer-se, convencer para afirmar-se — no final das contas, deve ser uma coisa angustiante. Uma verdadeira miséria.

A voz do Brasil

QUANDO o padrão moral abaixa, tudo o mais abaixa. Sinal claro disso é a maneira como soa a voz brasileira na atualidade. No Brasil de hoje, quando se presta atenção, é espantoso como as falas soam artificiais, arrastadas, enjoativas, etc. Irrita a forma como as pessoas falam. Conhece aquele tom típico das reuniões de departamento? É disso que se trata. A afetação estúpida na voz dos homens, o vício das mulheres em falar para ouvirem a si mesmas. Quem ainda consegue conversar com alguém por cinco minutos no Brasil?

A fala masculina – quando de fato é masculina, algo cada vez mais raro – soa histriônica, cansativa, imbecil; a fala feminina soa imitativa, histérica, desagradável ou, em geral, destoa da aparência como um todo. Sem contar a modulação, em ambos: volumes inadequados, sem harmonia, com oscilações desordenadas e ênfases deslocadas.

O problema não é falta de treinamento fonoaudiológico, mas de sinceridade: toda conversa é calculada para produzir certo efeito no ouvinte, nunca para transparecer o coração. As pessoas têm medo de revelar o que pensam, intimidadas por um milhão de códigos de etiqueta que forçam-nas à falsidade. A fala é um dos componentes afetados nesse processo.

Soma-se a tudo isso o vocabulário. Duvido que alguém use mais de duzentas palavras da língua portuguesa atualmente — para ser generoso. Mesmo o palavreado típico de Jornal Nacional, presente nos elevadores e corredores das empresas, embora passe por elegante e apropriado, é medíocre. Demonstra a falta de um nível cultural mínimo que ultrapasse o linguajar da mídia. Bem falar no Brasil de hoje é falar como a Globo ensina.

Como não se pode voltar no tempo e observar de perto como eram os diálogos no passado, basta observar, para efeito de contraste, a sonoridade vocal nos filmes e radionovelas de antigamente: ainda que os atores recitassem textos decorados, é nítido que as mulheres soavam mais agradáveis, doces e musicais, e os homens soavam graves na medida certa, breves, formais, seguros de si. O ritmo era completamente diferente.

A transformação ao longo do tempo foi gritante. Não se trata mais do mesmo país, nem do mesmo povo. Algo grave aconteceu. Sacudir os ombros e dizer “é, mas os tempos mudaram” acomoda o fenômeno, mas não o explica.

A devastação cultural no Brasil é profunda, muito além do que se imagina. Quando o padrão moral abaixa, a primeira a voar pelas janelas é a naturalidade.

Querem
sua cabeça

NÃO se engane: o seu pensamento está em disputa. Querem escravizá-lo mentalmente e subjugar seu cérebro. É preciso cuidado: novos padrões aparecem o tempo todo, sabe-se lá de quais buracos. Ninguém estranha, só assimila. Comem a ração que lhes dão. Adesão tácita e dócil: é com isso mesmo que eles, os engenheiros sociais, contam.

Pseudo-problemas, eis a tática. Um milhão deles: você mal assimila um, lhe atiram outro. Para isso, utilizam a mídia, as redes sociais. Simultaneamente. As vozes são unânimes: ninguém diverge, ninguém coça a cabeça um pouco, ninguém pergunta “será?” Não faltam notícias e cases em tom comprobatório, atrelados a teorias malucas, com toda uma nomenclatura própria cujo objetivo é paralisar seu juízo, parasitar seus miolos, acampar em sua alma, moldar suas reações. Pressionado e inerme, finalmente, pensa você: deve ser verdade, isso aí.

Toda uma sorte de subculturas esquisitas, bizarras ao senso comum espocam do nada e despencam feito bosta de pombo em cima das nossas cabeças. Quem escolheu isso? Você? Eu? Ele? Ninguém. Ninguém pediu, mas você dorme, acorda, e lá vem o novo discurso: uniforme, padronizado, enlatado, onipresente. Tudo é classificado, categorizado, coletivo, nunca particular, nunca isolado. E não adianta zapear no controle remoto: todo jornalista, todo apresentador repete e repete, a mesma coisa, sem parar. Parece um pesadelo, um labirinto infernal.

Não cheira a coisa fabricada em laboratório? Sim e de fato, é. E os ratinhos, as cobaias, somos eu e você. Para os engenheiros sociais, tudo é permitido, exceto ser normal. Eles odeiam o equilíbrio.

Entretanto, ninguém se incomoda, ninguém questiona, ninguém recusa a ração do pensamento. Ninguém sequer esboça um “por quê? por que eu deveria pensar nisso?”. Bastaria um simples “não, obrigado” e problema resolvido, sem mais pseudo-problemas para atormentar. Só que não: as pessoas aceitam os problemas de laboratório, metem-no na cabeça, falam nisso e embalam-no como um bebê de colo. Levam-no para casa. E os engenheiros sociais contam com isso mesmo.

Que pseudo-problemas feitos em laboratório são esses? Fácil identificar, especialmente quando tiver o sufixo -ismo: racismo, feminismo, machismo, elitismo etc. etc. Se vier com essa terminação -ismo pendurada na palavra, esqueça, jogue fora, rejeite, não consuma. Desligue a televisão. Saia da rede social. Melhor assistir um filme com a Audrey Hepburn (preferia dizer leia um livro: mas ninguém substitui entretenimento algum por livros, bobagem).

Destruir a sanidade mental. Os engenheiros sociais trabalham dia e noite para isso. Este sim é um problema de verdade para se preocupar.

Tenha em mente, a mídia quer te enlouquecer. Melhor evitá-la. A dica para a sanidade mental é: tudo que não era problema social em 1950, não o é ainda hoje, não se preocupe. Alimentar a alma, preservar a paz de espírito e viver bem é tudo que importa. O resto é resto.

Diálogo entre moças

— IMAGINA só, menina! Deus me livre! Não nasci pra isso, não! E tem mais, é um negócio pro resto da vida, não quero me comprometer assim! E se eu não quiser mais, depois de uns anos? Já pensou? Só de imaginar que eu vou ficar velhinha presa nisso aí… Mesmo que eu queira sair, recomeçar do zero, sempre ficam marcas profundas. Olha, não é pra mim, não. Prefiro ficar longe disso, estou bem assim.

— Casamento?

— Não. Tatuagem.

Sobre a moda

A MODA surgiu para destacar a individualidade. Bem, ao menos no início foi assim. Nos dias made in china em que vivemos, porém, ela tornou-se o oposto: hoje não há nada mais nivelador que a moda. Quando inova, apenas troca uniformidades do presente por uniformidades do futuro. A isto chamam tendência.

Curiosamente, isso em nada incomoda o consumidor. Ele sequer percebe o que acontece. E não incomoda precisamente porque, sendo humano, no fundo, ele não busca singularidade, mas homogeneidade; quer parecer e pertencer, sente prazer no mimetismo. É um processo inconsciente, na maioria das vezes: estar na moda é ser igual a alguém. Quando não se imita o gosto da sociedade em geral, imita-se um grupo de referência, talvez a atriz da novela. Mas imita-se, o tempo todo.

A indústria da moda não quer dar autenticidade, de fato, a ninguém; por isso mesmo, gasta milhões para vender a ilusão de autenticidade, e a vende muito bem, por sinal. É seu maior triunfo.

Se as pessoas buscassem uma marca singular no vestir, retornariam aos costureiros, como antigamente. Passariam longe de lojas e shopping centers. Liquidação? Bateriam na madeira.

O homem-cápsula

Um tipo comum na cidade é o homem-cápsula.

Todo dia ele acorda em seu apartamento-cápsula. Veste-se e sai para trabalhar, tomando o elevador-cápsula do prédio-cápsula onde mora, até o estacionamento. Entra em seu veículo-cápsula e dirige-se ao trabalho.

Uma hora depois (se não chover, se chover leva mais tempo), o homem-cápsula adentra o moderno edifício-cápsula para acessar seu escritório-cápsula todo envidraçado e sem janelas. Meio-dia ele almoça na copa-cápsula, após receber o almoço delivery: homens-cápsula são muito ocupados, não têm tempo a perder.

Às seis da tarde, o homem-cápsula deixa o escritório-cápsula. Aguarda o elevador-cápsula aparecer no hall, lotado; desce ao subsolo; entra novamente no veículo-cápsula e retorna em direção ao prédio-cápsula residencial. Lá, sobe, via elevador-cápsula, de volta ao apartamento-cápsula. Ufa, finalmente! Exausto, resolve pedir comida pelo aplicativo, direto do aparelho-cápsula. O homem-cápsula está sem saco para cozinhar, hoje. O dia foi extenuante. Talvez amanhã.

Ah, mas não pensem que o homem-cápsula não é feliz! Ele até se distrai, ele até se diverte. Às quartas e sextas, ele malha na academia-cápsula e aos sábados, vai à balada-cápsula com a namorada-cápsula que mora numa cobertura-cápsula perto dali. Aos domingos, dorme até tarde e fica de pijamas: não sai do apartamento-cápsula por nada, porque ninguém é de ferro. “Meu filho, até Deus descansou” — justifica a si próprio, repetindo a frase da avó. Que nunca foi cápsula.

Então, é segunda-feira. A rotina-cápsula recomeça.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Pensando bem…
(vol. II)

O MEDÍOCRE só admira gênios mortos. São inofensivos.

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Ser do contra: a teimosia da impotência.

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Idiotas nunca mudam de opinião.

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Mentiras eficazes contém um pouco de verdade.

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Relativizar a beleza: a vingança elegante da feiura.

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Curioso: a verdade não irrita ao mentiroso, mas ao idiota.

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Inexistem: 1. unicórnios 2. pessoas que mudam de opinião mediante argumentos contrários.

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Gente alegre busca a agitação; gente feliz, a calma.

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Homossexualidade, ou solidariedade amorosa entre similares.

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Acolheu a mentira por conveniência? A verdade se imporá pelo trauma.

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Não é realmente inteligente se não lê poesia.