Diálogo com Odeque

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Cesare Pavese escreveu Diálogos com Leucó, um clássico; eu arranho um Diálogo com Odeque, um pastiche. Antes, o dito-cujo: Odeque é O. de C., Olavo de Carvalho. À guisa de preâmbulo, autorizo-me a dialogar com este Odeque de minha criação mental, pois apesar de ter sido seu aluno durante uma década, o mestre propriamente dito não me conhecera em pessoa. Andei ali pela escolinha entre 2006 e 2015, meio às escondidas, num tempo em que o máximo de fascismo que um petista podia conceber encarnava-se na acabrunhada figura do dr. Geraldo Alckmin. Bons tempos.

Pois bem antes de o coisa-ruim Bolsonaro lançar gratuitamente o país num inferno astral, estava eu ali, cândido e oculto, na turma do fundão do olavismo cultural; daí que o professor jamais me conhecesse. Contudo, libertei-me e sobrevivi àquilo, vale dizer. Estou limpo. Entretanto, não estive no fundo da sala por ser um dos alunos arruaceiros, como reza a tradição dos fundões. Os alunos arruaceiros tornaram-se os queridinhos do mestre, soubemos depois, quando aqueles subiram ao palco e tomaram conta do show de 2018 em diante. O resultado está aí.

De minha parte, eu ficava lá acanhado, casmurro; aquele aluninho que até estuda um bocado mas guarda tudo consigo, não se projeta, não se manifesta; um esquisito que entra e vai ficando, inofensivo. Ninguém mexe com ele, ele não mexe com ninguém. Pois assim estive lá, a ouvir, anotar, refletir. Depois, debatia tudo intensamente com meus botões, com pedras e plantas.

Findo o preâmbulo, vamos ao assunto.

Em certa entrevista antiga, Odeque afirma com sarcasmo típico que o Brasil jamais teria um Dostoiévski, que nunca chegaríamos a tanto: o tipo da frase desmoralizante que leva o vira-latismo brasuca ao clímax, dado que não há esporte mais estimulante ao complexado vira-lata brasuca que amassar bem amassado a estima brasileira e condená-la ao fracasso antecipado, à frustração preventiva. Antes garantir a derrota líquida e certa que expor-se a lutas, a esforços ou a vãs competições. Leva o troféu, estrangeiro-qualquer-um, toma logo o que é teu. Gastar tempo com disciplinas e melhorias? Abrace logo o fracasso e seja infeliz, pensa o vira-lata. Dá menos trabalho.

Mas divago. O fato é que, mais uma vez, Odeque teve razão. Certamente ele folgaria em saber disso, por novamente diagnosticar a vida como ela é. Todavia, seu acerto deu-se por outra via, de um jeito que ele não esperava. Chutou torto e acertou sem querer. Claro, naquela entrevista — amarga à época, pois Lula acabava de vencer de novo as eleições — ele quis cumprir seu papel e missão de vida, qual seja, polemizar, espezinhar e ofender o brasileiro e a brasilidade, do qual tinha e ainda tem bronca até a medula, embora sirva-se dela. O intento original saiu pela culatra, porém.

De fato, nunca teremos um Dostoiévski porque já tivemos um Machado. Constatei isso na prática quando, em 2016, vi um mendigo na rua a sorrir e a fazer troça não sei de quê. Ao observar aquela cena singela tive um lampejo. Descobri ali certa substância brasileira, no mendigo que ri. Algo que escapa à lógica. Que pode haver de mais nosso que aquilo?

Evidente que, como na Rússia do Fiódor, não nos faltam humilhados e ofendidos; não obstante, nossos oprimidos guardam no lugar da melancolia uma esperança viva dentro de si. Constantemente os índices de felicidade colocam o Brasil numa posição de destaque, até com certo exagero. É comum repórteres da tevê chegarem a pessoas que tiveram a casinha alagada numa enchente, as quais perderam tudo do pouco que tinham e que, sabemos, ninguém irá ajudá-las, e elas dizerem, esperançosas, “podia ser pior, vamos em frente com fé em Deus”. Dia desses vi uma entrevista assim. Quase submerso, o homem sai de sua casinha alagada com documentos nas mãos e sorri: “consegui salvar o RG”. Um forte.

O caso é que o brasileiro não dá muito ibope a seus infortúnios, nem moral demais a estacas zero. Ele sorri — não por alienação nem irresponsabilidade, muito menos por insanidade. Naquele sorriso mora uma centelha, uma fagulha íntima a apontar que o pior já passou, passa, passará (salve, Nelson Ned). Deus há de ajudar. Ele sempre ajuda.

Daí que a escrita soturna de um Dostoiévski não caberia mesmo no Brasil, Odeque. Nossa natureza é outra. Nosso sofrimento foi sublimado pela ironia machadiana, que foi a forma elegante — do bruxo e a nossa, por extensão — de rir das mazelas todas. Rir e lutar, é claro. Com isso não digo que a melhor literatura daqui seja feita apenas de gargalhada e gozação. Temos drama de sobra na praça. Mas sempre sobra uma forcinha residual, um último fôlego guardado para o instante seguinte, para quando a tempestade acabar — e ela sempre acaba. Então, a fibra toma o lugar do desânimo e o brasileiro sobrevive para contar. Além disso, não descemos a subsolos; não nos entregamos a ridículos; não deixamos que o niilismo more em nós a ponto de matar velhinhas usurárias ou engendrar revoluções que traumatizem nosso destino por décadas. Até nossa violência é uma enorme brincadeira (embora de péssimo gosto, bem entendido). Em tudo somos lúdicos e crédulos.

No fundo, nossa aparente fraqueza é um tipo diferente de força. Porque o Brasil é indomável, veja: tirano algum consegue manter nas mãos nossa índole escorregadia, sem aderência. Aqui está um segredo brasileiro. A inexatidão de nosso temperamento e a imprevisibilidade de nossas reações não permitem a ninguém um domínio perfeito e duradouro do país, como quem segura uma maleta pela alça. Ditadores desorientam-se conosco, cedo ou tarde. Nós sempre os driblamos, feito uns pelés.

A história comprova: quem tentou domar o país perdeu-o pouco depois e sempre de um modo estúpido em vez de sangrento. Mesmo na vigência daquele pretenso domínio, o tiranete da vez bambeia, segura-se para não estatelar no chão mole de nossa complexa indefinição e sofrer um vexame que o faça arrepender-se do golpe inicial. Ele queria nossa melancolia, nossa depressão; porém, consegue nosso humor. Assim enfrentamos os dissabores. Se o hoje é triste, o amanhã será diferente, sobretudo porque o tiranete está excluído de nosso amanhã. Saber disso o perturba desde já. Poder no Brasil é pau-de-sebo: tenta-se o topo, escorrega-se em seguida.

Portanto, sim: não temos um Dostoiévski, Odeque. Você está certo do jeito errado. E por tal ilogicidade provas que, embora a contragosto, também és mui brasileiro. Não que o Brasil faça lá muita questão disso. Fazemos questão de Machado e de Pelé. Quem não vive sem a gente é vossa senhoria.

De resto, é como bem disse outro escritor nosso que também não foi Fiódor: viva o povo brasileiro.

O outro
Crime e Castigo

Assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Mais sérias que o mero factual

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A respeito de Dostoiévski e sua obra-prima Crime e Castigo, leitores ilustres e críticos em geral são unânimes em apontar um ingrediente que admiram na obra: a redenção de Raskólnikov, depois de desferir suas machadadas na pobre velha usurária e em sua azarada irmã.

Entretanto, Raskólnikov não me desperta qualquer simpatia, malgrado sua suposta redenção no final (ai, spoiler! já foi). O sujeito permanece cínico e indiferente ao crime cometido por toda a trama— exceto pela irritação causada pelo noivado da irmã, reação que no fundo sugere algo de fundo incestuoso a meu ver, e pelo cerco psicológico a que o submete o inspetor de polícia Rostinikov, quando o enquadra a fim de obter sua confissão. Raskólnikov não se arrepende do crime, contudo. Queria tão somente ser deixado em paz na sua loucura eremita, a despeito dos assassinatos praticados.

Como todo clássico, há que ler e reler Crime e Castigo. Contudo, acho estranho como ninguém — até onde eu saiba — destaque uma passagem singela do livro a qual tocou-me profundamente: quando a família do beberrão Marmeladov passa por apuros após a morte idiota deste, depois de cair de bêbado no chão e ser pisoteado por um cavalo. Desamparada, a família se vê obrigada a esmolar para descolar uns cobres e não morrer de fome.

A viúva de Marmeladov, coitada, imagina que conseguirá uma audiência salvadora com o príncipe, já que teria ela um remoto título de nobreza ancestral. Talvez delirasse. Mas caso fosse verdade, teria tal título alguma validade, alguma relevância? Seu apelo urgente à distinção era fruto do desespero. O caso é que tal audiência jamais acontece; e a mulher, sem alternativa, bota o filho pequeno para dançar e fazer macaquices na rua, enquanto a filha mais velha, Sonia — mocinha que afinal será a responsável por redimir Raskólnikov — termina por prostituir-se para ajudar a família.

Uma tragédia familiar desnecessária, lamentável, estúpida. Como todas as tragédias familiares, quem sabe? Até oonde sei, o evento passa batido pela crítica, centrada no protagonista e na tal redenção. Um desperdício.

Pois aquela passagem me marcou pessoalmente. Imagino como algo do tipo poderia ocorrer a qualquer família. Fico a pensar na responsabilidade que pesa sobre mim: jamais brincar com a negligência, como fez Marmeladov, sob pena de minha própria família terminar feito a dele, humilhada nas ruas por gente mil vezes mais indigna que ele próprio.

Bem, de tantas camadas de significado possíveis, especialmente esta depreendi de Crime e Castigo na primeira leitura. Certamente a obra tem a revelar muito mais numa próxima visita, pois assim são as grandes obras de ficção: seríssimas. Não raro, mais sérias que o mero cotidiano factual.

Viva os 200 anos de Dostoiévski. Viva Crime e Castigo. Viva a grande ficção literária, que é coisa muito séria. No bom sentido.




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(Selo criado por Beth Spencer)