O inútil
do escrever

Tempo de leitura: 4 minutos

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

– João Cabral de Melo Neto, O artista inconfessável

Se uns sábios, ilustres e entendidos em geral me colocassem no centro de uma roda e, com veemência e gravidade peculiares, me apontassem seus dedos respeitáveis, dizendo: “você não tem razão, garoto; você está errado!”, eu, malgrado o susto que a assertiva coletiva me causasse no momento, me conformaria no instante seguinte. Não sofreria mal algum. Zero trauma.

E isso não porque, no fundo, eu os desprezasse com moralidade superior e quisesse, do alto de minha irrelevância semianônima, colocar-me como um profeta não reconhecido (como sói acontecer a profetas), alguém cujo fracasso lhe subiu à cabeça. Não. O caso é que não apenas concordaria com eles — vai ver não tenho razão alguma, mesmo — como não faria absolutamente nenhuma questão de desmenti-los. Não lutaria para estar certo e não estenderia os punhos em riste para soar convincente, aos perdigotos. Debates e embates me dão preguiça, Deus me livre. Toma, olha: é sua, fica com a razão todinha pra você. Faria assim.

Assumo, sou mais um dos muitos levados pela onda da liberdade de expressão digital. Esta fez e faz do mundo ocidental um lugar tagarela como nunca antes e amplia o “alcance” dos zés-manés formidavelmente. Daí que, entre as tantas vozes que se estapeiam para sobressair-se de algum modo da multidão e — glória das glórias — ainda faturam uns cobres por isso (bem-aventurado quem paga o leite e a gasolina com o que recebe por sua escrita hoje em dia), pois bem, em meio a tudo isso este serviçal esboça apenas alguma brincadeira literária enquanto armazena um romance não revisado na gaveta e planeja outros três faz um tempinho, já. A esperança é a última que morre.

De minha parte, respeito quem venda suas lindas razões da mesma forma que respeito quem venda churros ou pneus. Tudo é necessário de algum modo. Não sou exatamente contra o capitalismo. Mas, parece, quem vive de vender teses não aprecia muito que vez ou outra surjam engraçadinhos como este aqui, que se atrevam a escrever coisinhas algo curiosas e, como um camelô que monta a barraquinha na calçada e atrapalha o movimento da loja em frente, desviem parte da freguesia dela sem querer querendo: então, se aparece um gaiato, lá vai cascudo: “você está errado; você atrapalha!” Desista e vá embora, parecem dizer. Se conseguem espantar o pentelho, respiram aliviados. Menos um.

Mas este teimoso aqui escreve. Não sei bem porquê. Preciso, apenas. Clarice Lispector disse uma vez que escrevia para expulsar de si as histórias que lhe ocorriam. Expulsar, Clarice: perfeita colocação. Também expulso as caraminholas que me flutuam na cuca enquanto observo a vida passar. Há algo de terapêutico nisso de escrever. Ajuda a aliviar a carga. Pensamentos insistentes brotam, pesam; frases se formam e pedem a rua como o vira-lata deseja passear um pouco ao ver outros vira-latas com plena liberdade indo e vindo lá fora. Late, grunhe, se atira contra o portão — por também querer aquilo. Escrevo mais ou menos por isso: praticar a liberdade.

De modo que não preciso ser levado a sério, ó sábios e entendidos: descansai, pois. Porém, notem: até poderei. Não preciso ter razão, ó notáveis, mas vede: ocasionalmente a terei. E poderei também estar errado e dizer bobagens imensas as quais, uma vez reveladas, serão assumidas como tal. Passarei as vergonhas todas. Assumo: ao compartilhar nesta plataforma gratuita algumas linhas, quero obviamente ser lido por alguém além de mim mesmo. Não sou imune a vaidades, saibam — como tampouco os senhores o são, diz o pregador.

Por isso, nas pouquíssimas vezes em que sou confrontado pelo que escrevo, depois da surpresa e algum choque, acho graça. Porque falo do quê? Do que sinto, penso, observo, formulo. Escritores são assim, não? Expressam impressões autênticas (Benedetto Croce) e não há mesmo impressões erradas enquanto tal. No máximo, equivocadas. Ademais, não falo por apuds — “isto é aquilo conforme o teórico X cuja obra completa estudei, etc”. Respeito, mas de novo: não provo teses nem as elaboro a sério, não vendo certezas, não exponho fundamentos suculentos no varejão das ideias. Se querem saber, no fundo me acho um escritor vagabundo (não vagabundo escritor): desvinculado das rodas importantes, jamais cogitado para um chopp no bar dos bacanas do intelecto (porém, se um dia chamarem, aceito o convite.)

De modo que sou feliz assim, acho eu. Sigo levando — e o que vier é lucro. Eu disse lucro? Aí está, pode até ser… quem sabe um dia? Como disse, não sou exatamente contra o capitalismo. Ora essa. E algum camelô seria?




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Gorjeios literários

Tempo de leitura: 2 minutos

Antonio Abujamra costumava perguntar ao entrevistado, em seu extinto Provocações, ao saber que este lia com frequência: “qual é o autor que você já encontrou? E qual ainda não encontrou?”

O entrevistado nunca saía-se bem nessa questão. Natural. Quando lemos literatura com alguma frequência, nossos autores preferidos vão se afunilando, diminuindo, diminuindo… não raro, desgostamos de muitos clássicos que, sim, são obrigatórios, e nos afeiçoamos a outros nem tão clássicos assim, por vezes longe disso. Pessoalmente, dá-me uma pontinha de vaidade saber de autores muito bons e quase desconhecidos da maioria. Bobagem? Talvez. Como toda vaidade, ora essa.

Parece-me que leitores maduros prefiram a delicadeza à veemência. Bem, não generalizo; falo por mim. Busco na arte literária o captar do sutil no banal, do verdadeiro no corriqueiro. Me espanta a frase precisa sem a intencionalidade forçada de sê-lo e identifico o lirismo poético na prosa mais despretensiosa. Beletrismos, porém, logo saltam aos olhos e denunciam-se, enjoam, cansam. Na vida e na arte, veemências dão bocejos.

Depois de alguma vivência na leitura, fica fácil detectar truques e afetações. Ouvimos a música das frases. Gostamos da verdade, mas esta bem apresentada e não com a violência de carros colidindo em postes. A realidade é ao mesmo tempo trágica e bela — bela mesmo na tragédia, às vezes, inclusive.

No início da jornada ao mundo da literatura, bebemos dos grandes dramas da humanidade e desprezamos os sorrisos singelos. A imaturidade sempre busca a gravidade. Por isso, entendo quando velhos pensam mais progressivamente, modernamente, que moços em formação. Vai ver, aqueles aprenderam que nem tudo possui motivações muito racionais nem explicações tão fundamentadas e sedimentares. A lógica formal, quando muita, enlouquece. Acontecer faz parte do ser.

Viver é um fluir contínuo e incontrolável, imprevisível. A ordem racional, pura invenção. Feito o pássaro a gorjear de manhã: surge sem licença e faz o que lhe é natural. Canta, voa, vem e vai.

Assim é a vida, o real. Assim, a boa literatura.

No mais, diz o pregador, tudo é vaidade e correr atrás do vento.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O totalitarismo digital

Tempo de leitura: 4 minutos

O universo digital ainda acabará com a cultura humana. Em poucos anos não haverá mais registro histórico, memória. Não saberemos a estética de uma certa época, quais sabores tinham, que cores gostavam. Diários, hoje, são as redes sociais. Filmes? Dados, códigos binários. Música? Apps, streamings. Leitura? E-books (mas estes nem tanto, o papel ainda resiste; resta uma esperança). Mas é alarmante: em tudo hoje impera o todo-poderoso algoritmo. O que será das coisas, daquilo que se pode pegar com as mãos, coisas que abrem e fecham, que tocamos e guardamos conosco? O que será dos cinco sentidos corporais com esse totalitarismo digital?

Minha geração, a terceira de trás para frente (nasci em 1979), passou por várias transições tecnológicas. Pulamos do puro material físico e analógico para a convergência digital e vimos suas derivações ao longo do tempo, em como estes dois — o físico e o digital — foram se imiscuindo aos poucos, desde o advento da computação e da internet. Como não lembrar do disco de vinil, sucedido pelo CD, depois pelo mp3, agora o streaming…

No início da internet, eu acreditava que o meio digital fosse um complemento, uma extensão do produto físico, mas que este jamais tornaria-se superado — e aliás não foi superado. As companhias globais da internet estão nos apartando do físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos, cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso. Confesso: sinto uma certo vacuidade hoje em dia, talvez uma orfandade na alma, não sei; um desalento interior quando noto que tudo converge a galope para as malditas “nuvens”, para clouds da vida, que ninguém sabe onde fica, embora nelas confiem cegamente, sem questionar. São pura abstração, ilusão; até mesmo as nuvens reais, aquelas do céu, ao menos pode-se ainda vê-las e apontar para elas. As nuvens digitais, porém, nem isso se pode fazer.

E antes tínhamos coisas de verdade, que existiam nalgum lugar. Dizíamos meu disco, meu livro. Num dia, olhávamos para elas, guardávamos, depois pegávamos de volta tempos depois. Ou nos livrávamos delas. Mas, hoje? Gastamos dinheiro virtual com códigos binários, luzinhas numa tela enquanto códigos de programação rodam em segundo plano desde servidores nalgum ponto do planeta. Aposto: todo mundo saberia listar pelo menos três discos que ouviu na infância, talvez os dois CDs preferidos na adolescência. Agora, digam-me lá: qual filme você viu em streaming no início de 2016? De qual série mais gostou em 2015? Um milhão de dólares para quem acertar de cabeça, sem esforço de memória nem consulta ao Google.


As companhias globais da internet nos apartam do mundo físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso


Entendem meu ponto? Nossa memória cultural se esvai e se esvai. Sem contar o mais grave: fornecemos a robôs invisíveis nossas intimidades, nosso endereço, nossos hábitos pessoais. Eles sabem a que hora vamos dormir, quando acordamos, o que fazemos, o que deixamos de fazer. Acompanham nossos passos, por onde andamos durante o dia.

Falava algo disso com um conhecido no trabalho. Comentávamos a respeito da Netflix, por exemplo. O que é a Netflix, exatamente? À primeira vista, uma plataforma digital de exibição de vídeos: filmes, séries, documentários. Certo? Mais ou menos. Esta é a parte boa. A parte ruim e não contada é que a Netflix não passa de um ladrão voraz e ditatorial de tempo. Do meu e do seu tempo. A companhia Netflix trabalha, e muito, para comer (não encontro verbo mais apropriado), para devorar todo nosso tempo, nossa atenção. Nem o pior dos ditadores do passado jamais pensara em algo assim.

E pensar que nossos avós nos alertavam a respeito da televisão… agora, a tevê é meio dos mais inocentes: não possui algoritmos, mapas faciais, controles de acesso, “stats” plotadas num gráfico.

Tenho pensado muito nisso nos últimos dias. E aos poucos, decidi voltar-me cada vez mais ao bom e velho analógico, ao material físico. Discos, filmes, livros, revistas, jornal… de maneira que deixo essa proposta: voltemos às coisas palpáveis, tridimensionais, materiais. Coisas com cheiro, com cor e textura. Coisas feitas por e para seres humanos. Resistamos, docemente. Geraremos mais empregos, ajudaremos mais gente assim. A transformação da matéria em produto final requer toda uma cadeia produtiva, algo que quase não acontece no meio digital.

Parece bobagem? Talvez, mas pense melhor, com mais calma. As coisas físicas sempre nos serviram. Qual o problema com elas? Nós as usamos quando quisermos, sem assinatura mensal, sem conexão, sem wi-fi. Dispomos delas sempre. Quanto a essas companhias do mundo digital e seus produtos ilusórios numa tela de smartphone, a mercadoria é você, sua própria existência. Pelo menos, é isso o que elas pretendem fazer.

Vale a pena dedicar nossa vida e intimidade a esse totalitarismo digital? Não creio. Acho que ainda podemos dar meia-volta e repensar os caminhos que estamos trilhando. A escolha é toda nossa, por enquanto. Por enquanto: talvez amanhã seja tarde demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O drama da
alma inteligente

Tempo de leitura: 3 minutos

O sonho de toda alma inteligente é encontrar outras almas inteligentes. Escrevo alma, e uso inteligente para adjetivá-la; poderia simplesmente dizer inteligente, o substantivo; mas a distinção é intencional e necessária.

Nem todo inteligente, convencionalmente falando, possui uma alma inteligente. Existem indivíduos notavelmente cultos que no entanto são precários em matéria de sensibilidade, de discernimento. Também não me refiro àquela tal inteligência emocional tão propalada nos anos 1990.

Como defino a alma inteligente: aquela aberta à percepção sutil, que pode sim se valer da cultura, não na epiderme ou protocolarmente, mas na substância, para assim enxergar o mundo que a rodeia como se tudo estivesse translúcido (embora não totalmente transparente, que seria a invisibilidade pura e simples). Almas inteligentes percebem o que há por debaixo das coisas, captam o mistério, observam um entre nas diferentes proposições, um between, sempre, mesmo nas questões mais antagônicas.

Tais almas podem incorrer em erros, claro, pois são humanas. Tem um fraco por conjecturar demais e viciar-se em si mesmas, nos próprios pensamentos. Correm o risco do solipsismo. Serão almas saudáveis somente se não confiarem demais nas formulações imediatas e se souberem guardar suas percepções pré-verbais para o futuro. Soa metafísico, mas nem tanto.

O caso é que almas inteligentes sentem algo a mais no ar, detectam causas e antecipam consequências; isto faz com que sejam previsíveis na rotina, embora muitas vezes surpreendentes nas opiniões. Frequentemente, mudam de parecer de modo inesperado, quando a massa ainda mal assimilou um novo senso comum. Costumam entrar primeiro e sair antes de todos, ou nem mesmo entram: enxergam quando o bem lentamente torna-se mal, lêem os sinais ainda em germe. Não agem como ovelhas ingênuas rumo ao matadouro, mas observam com serena perspicácia o movimento da realidade, e se resguardam.

Almas inteligentes não são compreendidas pelo vulgo. Almas inteligentes buscam seus pares, seus iguais, mas raramente os encontram porque elas não se dão às amizades. Desconfiam demais, reservam-se demais. A presença constante dos outros as entedia ou as atemoriza de alguma maneira, como se o contato com a parte alheia lhes retirasse algo de sua seiva, e assim abandonam ou desprezam, sem motivo, aquilo que justamente as poderia fortalecer: as amizades. Talvez esteja aqui sua maior contradição.

Almas inteligentes não são compreendidas pelo vulgo. Almas inteligentes buscam seus pares, seus iguais, mas raramente os encontram porque elas não se dão às amizades.

Enquanto isso, lá fora grassa uma velha maioria: as alminhas medíocres, a massa, sempre a satisfazer-se cada vez mais e com mais motivos para fazê-lo; saboreiam o mundo como uma deliciosa sobremesa. Nunca não lhes falta motivo para permanecer exatamente no estado em que estão, tampouco lhes falta companhia, para o bem ou para o mal. Medíocres são maioria, e o são por um único motivo: é facílimo ser medíocre.

Almas inteligentes, por outro lado, não importa o tamanho de suas angústias ou o peso de suas dificuldades, recusam terminantemente a mediocridade. São auto-disciplinadas e carregam algo da Eternidade em si. Elas possuem asas invisíveis que, por alguma razão misteriosa, não lhes permitem levantar vôo. Não nesta vida, ao menos.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A “morte” do
amor romântico

O ROMANTISMO morreu no Ocidente. Mataram o romantismo no Ocidente. A hipervalorização do sexo e da sexualidade em si mesma, o culto deliberado do prazer corporal e de orgasmos como direito político-ideológico sufocaram o romantismo, estrangularam-no pouco a pouco, a ponto de hoje este transformar-se numa caricatura distante, cuja expressão é sistematicamente sonegada nas representações artísticas, nos filmes, na música (especialmente nesta), nos programas televisivos e nas propagandas em geral.

Ao mesmo tempo, a cada dia que passa erige-se uma espécie de culto pagão, não ao amor romântico, mas ao resultado final abstraído deste mesmo amor: a relação sexual. Funciona mais ou menos como raspar a cobertura do bolo, comer a cereja que o confeita e jogar o resto fora. O bolo, o conjunto inteiro, não é mais importante. O gesto e o símbolo que ele celebra, tampouco: raspa-se a cobertura, come-se a cereja, descarta-se a massa, e basta.

Este culto ao sexo não se refere apenas às relações sexuais propriamente ditas, mas a um sexo “ideologizado”, reivindicado nas ruas por manifestantes revoltosos, com cartazes erguidos e punhos cerrados em riste; um sexo sem “seiva”, feio, grosseiro, propositalmente vulgar e desejado por ninguém, produzido em massa nas cátedras universitárias e defendido em sisudas teses acadêmicas; um sexo exigido como “direito político” ou, na mais concreta das hipóteses, como mera promoção dum ato biomecânico entre dois ou mais (!) seres humanos, nos quais as respectivas funções genitais são empregadas com a finalidade de se obter prazer físico e sensorial, verter e trocar fluidos corporais, e só.

Como o entorpecente ao viciado, este sexo que substituiu o amor romântico funciona como um estimulante qualquer, cujo único objetivo é a busca da mera “sensação” instantânea: de preferência, devidamente carimbada, oficializada pelos órgãos do Estado e garantida por lei.

Então, tem-se de um lado este “sexo político” de ensandecidas intelligentsias e militâncias, charmoso como um paquiderme; e paralelo a este, oferece-se às massas um sexo “mecânico”, mero “estimulante sensorial”, desumanizado e cínico que as mídias em geral retratam. E lá fora, bem à margem, vagueia o amor romântico, existente apenas como nostalgia de quem viveu noutros tempos e que, para reencontrá-lo, precisa-se garimpá-lo em filmes antigos ou em antigas canções disponíveis no YouTube, por exemplo.

Mas, e quanto às novas gerações, que já nasceram alijadas deste amor romântico sem eco no mundo à sua volta? Para cultivarem o romantismo naturalmente percebido em si e sufocado por mil barreiras, elas dependem também de uma espécie de “paraeducação clandestina”, clandestina posto que ausente dos meios oficiais e escamoteada propositalmente dos entretenimentos de massa.

As novas gerações, para dar vida ao romantismo presente em si, dependem de um necessário cultivo pessoal e oculto obtido por esforço, já que não existe mais nada que expresse e alimente o amor romântico na cultura vigente, tal como outrora. Eis aqui uma opressão que nenhum grupo organizado se dispõe a denunciar. Nada mais sintomático.

Do preconceito

ACUSAR alguém de ser preconceituoso confere ao acusador, no mesmo instante em que acusa, a condição de juiz da moral alheia. Ao acusar isto é preconceito!, o acusador autoriza-se no mesmo instante a praticar o seu próprio preconceito contra o acusado, enquanto fica isento de receber a mesma acusação de volta.

Quando aponta preconceitos alheios, o acusador estabelece instantaneamente uma hierarquia moral na qual ele está acima e o outro, submetido a seu julgamento, está abaixo. Tal hierarquia moral dá ao acusador uma primazia desde a qual ninguém poderá julgá-lo: afinal de contas, réus julgarem juízes como forma de retaliação ao julgamento que recebem não tem nenhum cabimento.

Ao acusar, o acusador entende por preconceito aquilo que seu senso comum, sua “lei” moral particular determina. Esta “lei” do senso comum — obscura e amorfa, definida por valores verbais e não-verbais recebidos desde fora e internalizado no próprio acusador — variará de acordo com o humor, o sentimento ou a conveniência que ele carregue em si: ao ser acusado, o “réu” tachado de preconceituoso é julgado num tribunal de exceção — o tribunal do discurso moralizante do acusador de preconceitos.

Se existem preconceitos e preconceituosos — e de fato os há, sem dúvida — ninguém deveria possuir a prerrogativa de apontá-los, se fosse honesto com sua própria consciência; pois no mesmo ato de acusar um preconceito alheio, o acusador pratica ele mesmo preconceito contra o acusado. Logo, preconceituoso será antes de tudo aquele que denuncia o preconceito alheio, necessariamente.

Até aqui, refiro-me à esfera particular da sociedade, na qual vigem códigos não-escritos de adequação social, convenções transmitidas de pessoa a pessoa. Entretanto, se transpormos estas regras sociais para as esferas legislativa e jurídica, todo um corpo de leis e códigos podem ser estabelecidos a fim de se definir o que seja ou não preconceito, tipificando crimes e determinando punições. E é precisamente o que se pretende hoje em dia nos parlamentos mundo afora, não por iniciativa da sociedade civil, de pessoas comuns, mas por pressão de grupos e ativistas representantes de ninguém exceto de si próprios, e das entidades que representam.

Mas eis que surge um problema: se preconceito é no fundo uma opinião, cometerá este preconceituoso um crime de opinião? Opiniões — sem comprovado prejuízo moral de outrem, o que caraterizaria prejuízo efetivo e verificável já preconizado em lei — poderiam ser considerados crimes? Meras opiniões, crimes? E quanto à liberdade de expressão, um dos pilares da democracia?

O enquadramento de determinadas opiniões ou posturas na categoria de preconceito torna o hipotético ente definidor de preconceitos — digamos assim, seja pessoa ou instituição, pouco importa — um ser divino e incontestável, quando arroga ser o definidor máximo de certos e errados dos cidadãos. Mas como tal ente definidor de preconceitos se faria obedecer e respeitar?

Para tanto seria necessário implantar todo um novo imperativo categórico na mentalidade coletiva, um código moral imperceptível arraigado na alma. E como implantar tal imperativo categórico? Quanto tempo leva tal operação e em quê implica sua efetividade? Lobotomia? Uma nova religião civilizatória? Mas como produzir isto? Para fazer sua lei moral ser totalmente internalizada, será necessário que o ente definidor de preconceitos não admita divergências de nenhuma ordem durante a implantação, sob as penas de perder a eficácia, esvaziar a autoridade e assim não conseguir mais submeter ninguém àquela “verdade” que detém e pretende tornar funcional.

Levando em conta que para um imperativo categórico social tornar-se senso comum demora séculos, a tarefa de implementação urgente deverá ser necessariamente artificial. Tal imperativo categórico não existirá se não for imposto verticalmente, psicologicamente, na formação dos cidadãos desde a tenra infância; contudo, não imagino maior violência moral. Se isto não for a própria definição de tirania e totalitarismo, não sei mais o que é.

Entretanto, esta implementação induzida e forçada de códigos morais artificiais — que não penetram o senso comum como imperativo categórico, mas aparecem desde fora por entes não identificados, algo como um chefe invisível a quem todos devem obedecer — nos é familiar. Sim, tudo isto acontece neste exato instante, em que supostamente vivemos numa democracia e acreditamos ser cidadãos livres. Novos imperativos categóricos são criados todos os dias a fim de aprisionar-nos a mente, tolher nossos comportamentos: somos uma pessoa dentro das nossas mentes e em nossos círculos mais íntimos, talvez nem mesmo neles; porém, na convivência social, somos pressionados por todo um código moral externo, “alienígena” que não habita nosso coração. Somos vigiados por um enorme olho invisível, e o policiamento íntimo ou público aos supostos preconceitos talvez seja a maior evidência desta vigilância, cujos controladores desconhecemos completamente.

O rebanho
cultural

NÃO EXISTE moda que brote espontaneamente: toda e qualquer moda é sempre criada por alguém, visando um determinado fim. Este, aliás, é o objetivo de todo modismo: abolir ou transformar certos valores vigentes e substitui-los por outros, conforme os interesses daqueles que conduzem — ou pretendem conduzir — a sociedade. Ao mencionar moda ou modismo, não refiro-me apenas à vestimenta, mas a toda cultura de massas, algo abrangente, que vai da estética corporal ao estilo arquitetônico das cidades, da música popular aos valores morais em geral.

Ao seguir modismos, as pessoas não o fazem apenas por gosto ou prazer, mas antes de tudo por uma espécie de disciplina imitativa do subconsciente: miméticas, elas “forçam” seu hábito aos ditames da moda que lhes chega ao conhecimento, e esta adoção lhes parece boa e adequada; afinal, “todos fazem o mesmo”.

O ser humano, parece, tem necessidade de inserção, de sentir-se encaixado no presente, daí porque faz-lhe sentido embarcar na última onda: essa atitude confere pertencimento, segurança mental e bem-estar aparente. Nada mais óbvio, é confortável nadar a favor da correnteza.

Tal se dá com o rebanho cultural: jovens na maioria, adolescentes ou adultos recentes, gente que busca marcar posição e afirmar-se na vida. Em geral, jovens acreditam que é preciso estar adaptado aos costumes em voga e eles se agarram a esta idéia sem nada filtrar, voluntariamente. Certos adultos também agem assim, em especial adultescentes, um recente fenômeno urbano.

Cientes da inclinação juvenil por “beber novidades”, a indústria cultural forja seus produtos culturais estrategicamente, de modo a introduzir na mentalidade coletiva toda uma série de novos costumes e modos de ser, a fim de induzir novos comportamentos, valores, pensamentos e opiniões na sociedade. Todo um imaginário substituto é moldado aos poucos nas novas gerações, por vezes rompendo o que não deveria romper e acarretando consequências desastrosas ao próprio indivíduo e à sociedade. Eis o trabalho do progressismo, ideologia a qual oculta, por trás da nomenclatura presunçosa, o projeto maléfico que tenciona realizar.

Todavia, tudo é recoberto por camadas de positividade e bons sentimentos, por estéticas atraentes, por high technology; e quem porventura se opõe a este novíssimo e estranho padrão de bom, belo e justo da modernidade, será considerado um sujeito louco, intolerante, reacionário, mau, entre outros adjetivos. Afinal, se o progressismo monopoliza para si o bem, qualquer vento contrário representará necessariamente o atraso e o obscurantismo, não é mesmo?

A palavra de ordem dos “inventores de modismos” é romper padrões. Por outro lado, eles não discutem a sério suas propostas, não permitem quaisquer exames à luz da realidade, nem aceitam comparar os efeitos dos novos comportamentos que impõem aos dos hábitos tradicionais, jamais; a tática é criar rupturas, divulgá-las maciçamente na mídia que lhes é subserviente e, assim, raptar as vontades, corações e mentes suscetíveis, a fim de plantar e espalhar as sementes do projeto. O resto corre por si.

Dá-se então o encontro da fome com a vontade de comer: as (nocivas) novidades criadas chegam ao rebanho cultural, que por sua vez está ávido por consumir novidades. Eis o modus operandi da engenharia social aplicado à cultura. A eficácia da operação se dá exatamente pela predisposição juvenil — incauta, cheia de si, resistente a admoestações — pronta a tratar acriticamente toda novidade como coisa boa e desejável.

A moldagem artificial da sociedade — fenômeno surgido no século XX, proporcionada pelo estudo da psicologia das massas — sempre teve nos jovens as suas cobaias e, não por acaso, as suas principais vítimas. O natural orgulho juvenil embota a percepção, a impetuosidade rebelde gira as rodas do moinho, e as mudanças projetadas acontecem. É um mecanismo formidável, e quem controlar as engrenagens do processo controlará o imaginário das nações; na menor das hipóteses, lhes farão um belo estrago, coisa de que os vigaristas intelectuais sempre souberam (imagino frankfurtianos dando risinhos entre os dentes neste momento, em meio às labaredas).

Entretanto, e quanto ao rebanho cultural? Ouvirá tais advertências? Pensará algo a respeito? Mudará a postura de algum modo? Infelizmente não, pois rebanhos não mudam por si mesmos. Se existir uma solução possível, há de ser esta: mudar os pastores que conduzem esses rebanhos.

O cínico

É CONFORTÁVEL ser cínico, à primeira vista. O cínico olha para uma pessoa, situação ou idéia, e lança sobre elas sua suspicácia corrosiva, sempre pronto a enxergar malignidades ocultas no objeto de seu cinismo, malignidades as quais, imagina, os demais não notaram.

O cínico sente prazer na insinuação maliciosa. Atribui dolo a qualquer um, exceto a si mesmo: se houver qualquer hipótese de erro alheio, ainda que remota ou não comprovada, o cínico não titubeia: delirante, aponta mil maldades, na máxima extensão possível, envolvendo seu acusado num poço de sujeira imaginária. Para o cínico, erro não é acidente, não pode ser; é sempre algo deliberado e proposital.

Antes de emitir suas sentenças, o cínico não dá-se o trabalho de examinar caso a caso, conhecer as circunstâncias e as particularidades, fazer distinções entre coisa e coisa, pesar atenuantes, considerar contradições e aceitar que, para compor a narrativa que formula, podem faltar dados fundamentais. Caso dados faltantes apareçam, é possível que a tese do cínico evapore-se, se esfarele completamente, como sopro num punhado de farinha. Por isso, o mais rápido possível o cínico constrói uma montanha de calúnias, associações comprometedoras, insinuações levianas e irresponsáveis, de modo que o acusado, mesmo se comprovar sua inocência depois, não possa recuperar a reputação prejudicada.

Se, à luz dos fatos, a narrativa falhar por completo, o recurso do cínico será pinçar do ocorrido aquilo que ele pretensamente alertara. Além de apelar ao sarcasmo — a vingança dos impotentes e ressentidos. Usará o sarcasmo, nunca a ironia: esta é fina arte, recurso superior utilizado por quem, sereno, domina as impressões sutis e brinca com elas; o sarcasmo, ao contrário, oculta um sentimento mordaz de raiva ou amargura por baixo do tom satírico.

Cinismo é o efeito colateral das expectativas frustradas, do desapontamento com pessoas e situações. Quando algo que se esperava, ingenuamente e de boa vontade, não se concretiza ou se transforma para pior, cria um ranço no indivíduo que o leva à malícia ostensiva. É um mecanismo de defesa. Dá à pessoa a sensação de agora estar no controle de suas emoções: basta despejar hipotéticas maldades aqui e acolá, e pronto. Constrói-se uma fortaleza nas muralhas do coração, como nos castelos medievais, e um largo fosso pantanoso ao redor do castelo. O fosso pantanoso é o cinismo.

A angústia do cínico é que ele teme perder o sentimento ferido, a coisa que mais valoriza. Vive num estado permanente de desconfiança. Não esquece esperanças não atendidas, nem fatos negativos que desencadearam o problema. O cínico não perdoa a si próprio por ter sido ludibriado. Tem raiva de si por ter sido ingênuo, feito de bobo ou passado para trás. Ou, ainda, fere-o a humilhação de ter sofrido um vexame — como se só ele no mundo passasse por vexames. Se abandonasse a lembrança dolorida e simplesmente transformasse a experiência em aprendizado, poderia fortalecer-se.

Por trás do cinismo, há uma personalidade perfeccionista — quem sabe demasiadamente cobrada na infância — e que aprendeu a cobrar-se muito, também. O cínico imagina que todos os outros devem se portar da mesma maneira que ele: se renega um prazer a si próprio, detesta que outro se dê este mesmo prazer; se faz sacrifícios para alcançar um objetivo, não admite que outro possa alcançar esse objetivo sem aquele mesmo sacrifício; se participa de um doloroso ou concorrido ritual de iniciação para fazer parte de um grupo, requer o mesmo ritual a outros, e assim por diante.

A acidez e a mordacidade do cínico, se constantes, fará mal aos demais. Se bem que o cínico nunca se entende por tal; imagina-se alguém sábio, perspicaz, com discernimento agudo das personalidades e intenções. As injustiças do cotidiano parecem confirmar suas suspeições insistentes. Ele não é capaz de perceber bondade ao redor, exceto em idéias remotas, ou em fatos e figuras idealizadas do passado. Para ele, nada no presente jamais será verdadeiro, sincero e desinteressado. E esta sensação, a da inexistência da bondade, faz do cínico alguém egocêntrico, amargo e infeliz. Contudo, ele pode disfarçar a tristeza com tiradas de humor ferino que eventualmente divirtam as pessoas em torno, que o perceberão como um sujeito irreverente ou falastrão.

Entretanto, o cínico não é incurável. Está num estado intermediário entre a frustração passada e a realização futura. O cinismo é superado quando a experiência negativa, inerente à existência, é absorvida: quando conscientiza-se de que entre os extremos mal, de um lado, e o bem, de outro, há percalços inevitáveis na vida. Um pouco de cautela e ceticismo sempre é útil, obviamente. Mas no caso do cínico, baixar as defesas e as prevenções exageradas, rejeitar a malícia e notar a bondade, a beleza e a singeleza dos pequenos gestos pode ser reparador. Ingenuidade consciente é o remédio: faz brotar na alma a semente da magnanimidade, que é o extremo oposto do cinismo.

*Ilustração: Matt Cunningham