Meus sete níveis
da prosa literária

Tempo de leitura: 8 minutos

Certo dia, pus-me a pensar na questão “o que é literatura?”. A palavra evoca certa erudição à primeira vista e há variadas definições para ela. Pessoalmente, diria à minha filha de seis anos que literatura é o mesmo que a arte da escrita. Não importa qual gênero textual. Por exemplo, é consabida a história dos famosos relatórios administrativos de um certo prefeito de uma cidadezinha do interior das Alagoas: um tal de Graciliano Ramos.

O alcaide teve o talento para a escrita descoberto por meio daqueles papéis burocráticos que relatavam a situação da administração do município. Ocorreu que a veia do artista já aparecia ali, em frases surpreendentemente interessantes. Numa palavra, aquilo tinha literatura, pois tinha arte. Chegado tal material ao conhecimento do sr. Augusto Frederico Schmidt — poeta e editor no Rio de Janeiro — fez-se o contato inicial e o ex-prefeito Graciliano foi alçado àquela que seria sua verdadeira vocação: escritor.

Quem dera tivéssemos mais Gracilianos e mais Schmidts.

Mas voltando ao assunto. Tudo que se publica é mesmo literatura, ao menos um pouquinho? Bem, críticos literários bocejariam nesse instante, pois sabem que tal pergunta já foi respondida de há muito. Minha intenção é mais modesta. Não sou crítico literário. Apenas rabisco um mapinha num guardanapo para a amiga e o amigo se encontrarem, de um jeito simples. Lúdico, até.

De modo que proponho um exercício prático. Imagine que você vai a um hipermercado e ali, antes da seção de pneus, esbarre num estandezinho de livros dispostos com desmazelo típico: vê uma autoajuda ali, o panfleto feminista acolá; um manifesto identitário e um Machado para constar; a biografia daquele ex-BBB; outro manifesto feminista e atrás dele, um livro de dieta. E o Torto Arado.

O que há de literatura ali?

“Machado, claro”, dirá o espertinho, sem titubear. Fácil demais. “Ah, Torto Arado!”, dirá a doce jovem que ama ler e que coleciona marca-páginas de crochê e assiste a booktubers. Hum, Torto Arado… ouço falar e uso de boa-fé. Mas enquanto a hipótese de visitar o sr. Itamar não me ocorre, seus leitores poderão saber se o bom baiano faz mesmo literatura, em qual nível; isto se minha classificação abaixo fizer algum sentido e conversar com a verdade.

Mas antes: não dogmatize, caridoso e eventual leitor; credo-em-cruz, Deus me livre e guarde. Sou leitor como tu, não autoridade no assunto. Ciente disso, posso inclusive abandonar esta classificação se me chegar uma melhor. Haverá melhores, seguramente. Dou-me por satisfeito se soar parecido aos mestres, se resvalar um tiquinho nos grandes. Embora deva dizer que jamais vi classificação parecida; logo, qualquer semelhança será mera coincidência.

Outra coisa importante (não vá embora!): a classificação serve apenas para prosa de ficção. Não entendo patavina de poema, de teoria poética. Este gênero está fora da consideração abaixo, exceto onde anotado. Também não trato de não-ficção (exceto no último nível, por pura necessidade). A arte da escrita está presente na prosa não-ficcional, evidentemente. Mas quanto a esta, limito-me a admirar os bons textos e rejeitar os ruins. Não me atrevo a classificar.

Sem mais delongas, enxergo a prosa em sete níveis por ordem de importância, a saber: Literatura de Tradição, Altíssima Literatura, Alta Literatura, Literatura Intermediária, Baixa Literatura, Subliteratura, Desliteratura.

Nível 1: Literatura de Tradição

Nela se baseiam as grandes religiões. Ela inicia civilizações, cria e mantém as grandes tradições; são a base da linguagem, mãe de idiomas. São os livros sagrados, as obras eternas, únicas, sem paralelo; mesmo o não-leitor tem contato ao menos indireto com elas, pois estão incorporadas ao espírito dos povos e de nações inteiras. É o nível mais alto da literatura, quase transcendente, pois separa o humano das demais criaturas, inventa sua Língua, estabelece seu espírito e dá forma a seu pensamento. Dela derivaram todas as demais expressões literárias, todas as manifestações culturais e tradições dos povos ao longo da História. Breves exemplos: os livros sagrados das grandes religiões; as peças gregas; os épicos; a Ilíada e a Odisséia; a Eneida; a Divina Comédia¹.

Nível 2: Altíssima Literatura

Esta é a categoria das obras mais importantes da prosa enquanto leitura. Não são apenas obras clássicas, mas referências máximas que modelam gêneros, justificam a existência destas e elevam a outro nível a arte literária. São matrizes quando se trata de ficção. Por exemplo: Dom Quixote, Moby Dick, Guerra e Paz, Os Irmãos Karamázov, o Fausto de Goethe, as peças de Shakespeare².

Nível 3: Alta Literatura

Esta é por excelência a seção dos maiores clássicos da literatura universal (e aqui adentra um brasileiro), especialmente os grandes romances dos séculos XIX e XX (mas não só): Madame Bovary, Crime e Castigo, Anna Karenina, Razão e Sensibilidade, Um Conto de Duas Cidades, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro etc. etc. etc. Impossível listar os mais importantes. O conjunto consta nos cânones.

Nível 4: Literatura Intermediária

Clássicas ou não, as obras intermediárias carregam adiante a tocha da literatura. Nada têm de medíocre — muito pelo contrário. São grandes livros: uns clássicos e outros não necessariamente, segundo a crítica. Podem figurar em listas importantes e não raro serem “clássicos pessoais”, a depender do gosto de quem os lê. De toda forma, são prosas feitas com tal arte que ultrapassa o mero prazer em ler. Dialogam com a existência humana e seus dramas. São obras importantes, pois nenhum leitor que se preze pode prescindir delas ou menosprezá-las. Alguns exemplos (dentre centenas): O Processo Maurizius, Servidão Humana, Mrs. Dalloway, A Montanha Mágica, Lolita, O Som e a Fúria. A lista é imensa, imensa…³

Nível 5: Baixa Literatura

Não se assuste com o “baixa”. Falamos ainda da arte e estamos protegidos pelas cercas do bom gosto. Ainda nos abrigamos na casa da literatura, mas fomos ao quintal para espairecer um pouco, tomar ar fresco. Por que este “baixa”? Algo pejorativo? Não, de maneira alguma. Pelo seguinte: embora ainda literatura, aqui estão obras mais comerciais, geralmente recentes do ponto de vista histórico, mas de qualidade indiscutível. São livros de ótimos e de bons autores, que dialogam com os grandes textos e grandes autores. Caracterizam a baixa literatura:

  1. a intenção de ser popular, porém com qualidade;
  2. transportar e preparar o leitor para literaturas mais elevadas (dos níveis acima, portanto), numa espiral ascendente. Aqui está sua maior atribuição.

Portanto, digamos que a baixa literatura cumpre uma função nobre e importante: apresentar o mundo dos bons livros ao leitor iniciante e ensiná-lo o gosto por ler. Não que seja coisa apenas de novatos, de maneira alguma. Pode ser que os livros desses autores tornem-se clássicos algum dia, embora seus autores não sejam clássicos no todo; o que não os afasta da apreciação mais que merecida. Exemplos (por autor): Morris West, Somerset Maugham (cujo Servidão Humana citado acima considera-se clássico), Truman Capote (A Sangue Frio, outro clássico), Georges Simenon, Agatha Christie, Isaac Bashevis Singer, Mario Vargas Llosa, Milan Kundera… entre centenas e centenas de outros.

Nível 6: Subliteratura

Aqui a coisa muda sensivelmente: fechamos a cara. Há um corte abrupto, uma mudança de cenário. Saímos da arte e entramos na caricatura da arte, logo, no engodo. Como o nome indica, a subliteratura está abaixo do fazer literário. Há uma subliteratura de iniciantes ou amadores inábeis, facilmente detectável e tolerável por motivos óbvios: o que não significa que todo estreante faça subliteratura, longe disso. Todo grande escritor começou um dia. A diferença se nota no teor. Quem fizer algo relevante irá adiante, cedo ou tarde.

Mas grassa aqui outro tipo de escrita, algo intencional. Seus autores escrevem por fórmulas fáceis de composição, tramam enredos esquemáticos, formulinhas que “funcionam”: começo, meio, fim, pá e pum. Não têm cuidado com chavões ou lugares comuns, pelo contrário.

A subliteratura profissional busca vender muito e distrair. Não busca a reflexão. Não dialoga com a existência humana, dá-se apenas a melodramas rasos. Abusam da linguagem coloquial. São inverossímeis, e de umas situações tão escancaradamente vazias que por vezes são percebidos pelo próprio consumidor. Seus personagens são rasos, com nomes estranhos. As falas copiam os piores filmes.

Diferente da baixa literatura (nível 5), a subliteratura não quer leitores mas clientes. É o fast-food dos livros: enganam a “fome de ler” mas não nutrem. É o lugar dos best-sellers da hora (americanos em especial; geralmente de autores-franquias, com o nome gigantesco e padronizado nas capas): Tom Clancy, Jojo Moyes, John Green, Danielle Steel. A lista não acaba. Mas há como detectar: o nome do autor é maior que o título da obra? Eles tem um caminhão de títulos e lançam um novo a cada ano? Hum…

De resto, a liberdade. Um Big Mac de vez em quando não mata ninguém: consuma, se quiser. O dinheiro é seu. O tempo, também. A mente, etc.

Nível 7: Desliteratura

O pântano. O horror. Um atentado à inteligência popular. Sim, é possível baixar um pouco mais. Se a subliteratura está abaixo da arte e afasta o leitor-consumidor dos melhores textos, a desliteratura dedica-se a destruir qualquer arzinho de gosto literário. Picaretagem em forma de livro, feita de espertos para burros. Pega-trouxas. Aqui pousam os trapaceiros, os oportunistas, os caça-níqueis; apelativos de toda sorte. Puro desperdício de eucalipto, são todos escritos por ghostwriters de quarta categoria, sempre apressados, mal pagos, com muita preguiça ou tudo junto. Quando autorais (algo quase impossível), serão escritos por gente que se arvorou a escrever sabe Deus porquê, já que não gostam de ler, nunca leem nada na vida, sequer uma nota de jornal. Fácil comprovar: a ofensa ao idioma grita a cada linha.

Nesse ensopado cabe tudo: “biografia” de ex-BBB, confissões da youtuber com uma Espanha de seguidores; aquela capa que grita “Seja Foda” ou “Foda-se-Alguma-Coisa”: sabe que tipo de leitor se impressiona com uma palavra chocante na capa, a ponto de comprar o livro? Zero. Nenhum. Só o não-leitor e futuro nunca-mais-leitor.

Esqueça qualidade. O propósito da desliteratura é vender pelo choque, embarcar no timing e faturar. Quem a consome, suicida o próprio gosto pela leitura de imediato e incrementa a burrice — isso se ler mesmo. A esses, seria melhor assistir séries no streaming, ver rede social no smartphone. Poupar as árvores.

E a literatura brasileira?

Machado de Assis é nosso escritor universal. Diria universal aquele cuja obra o mundo devia conhecer, para seu próprio benefício. Nossos demais escritores clássicos, porém, não os vejo como universais. Suas obras habitariam da alta à média literatura (Níveis 3 e 4). Quanto aos contemporâneos, creio que fiquem pela baixa literatura (Nível 5): conduzem seus leitores à média e alta literatura. E fazem arte, em geral.

Então, pensei nos portugueses que nos deram o idioma, afinal. De cara, confesso minha ignorância além do básico que nos chega ao Brasil (para nosso azar!). Destes, universais indiscutíveis são Camões e Pessoa, eternos. Mas são poetas, e não trato aqui de poesia. Na prosa, Eça e Camilo estariam no Nível 3, Alta Literatura. Universais, também. Saramago foi Nobel de Literatura, mas temo classificá-lo: julguem seus leitores. Lobo Antunes estaria no Nível 4. José Luís Peixoto, Nível 5. Certamente cometo injustiças, sem intenção. Demais lusófonos, há que conhecê-los. Chegarei a eles conforme as indicações me constrangerem a ponto de não suportar o vexame de não lê-los.

Por fim

Toda literatura de todos os gêneros literários nos torna melhores na alma — em diferentes graus. Bons livros sempre levam a melhores livros. Livros ruins levam-nos para longe de todo e qualquer livro. De modo que é preciso educação literária: quando menos, alguma informação que ajude na tarefa. Tentei isso neste breve artigo, humildemente. Espero que com proveito para quem eventualmente o acessar e ler.


¹Nota – nível 1: Embora se apresentem em versos, portanto poéticos, é preciso considerar que a escrita antiga lançava mão da versificação como forma de passar da oralidade à textualidade. Não se trata de poema como conhecemos hoje, isto é, de gênero literário em separado. Ademais, a escrita em verso antecede a prosa tal como a conhecemos, por isso, Tradição.

²Nota – nível 2: Estas duas últimas (Shakespeare e Goethe), embora em verso, foram escritas para o teatro. Goethe também escreveu em prosa. Quanto à versificação, de certa forma, aplica-se o mesmo caso da nota anterior.

³Nota – nível 4: Talvez haja dissenso aqui; certamente haverá. Por isso, reitero: sem dogmas. São apenas percepções pessoais, passíveis de equívoco. De toda forma, mesmo quando não clássicos absolutos, todas as obras são de muito alto nível aqui. A diferença reside justamente na ausência do “cânone” consensual entre a crítica, esta que pode variar muito, pois não se trata de ciência exata.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 29/01/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Bicho romancista,
filhote romance

Tempo de leitura: 3 minutos

O bicho romancista não é apenas um contador de histórias. Seu ofício não deve ser visto como qualquer coisa menor, como se não passasse de inventar uns quantos causos razoavelmente elaborados ou conversa fiada na forma de livro. O bicho romancista pode ser também um artista do idioma, filósofo, historiador, psicólogo, profeta, (santo não digo). E até mais.

Bicho é modo de dizer, pois ele é estranho à primeira vista. No entanto, pode ser mais gente que a gente. O romancista penetra no tecido da realidade, por entre as tramas, com sensibilidade e argúcia. Ele enxerga a alma humana com olho clínico. Alimenta-se da verdade oculta nas coisas, nas pessoas e situações do mundo, para depois metabolizar tudo de um jeito singular. Feito outro bicho, a águia, ele vê o senso comum desde as altitudes e o recria, o retrabalha.

O romancista é feroz e calmo, veemente e sutil, a um só tempo. Ele articula extremos, ata as pontas, sintetiza complicações, comprime e expande. Abre as percepções como quem abre a janela de um quarto escuro, e nesse simples gesto dissipa as trevas da incompreensão.

O filhote do bicho romancista é o romance. Sem prejuízo dos demais gêneros literários, o romance representa a maturidade da literatura enquanto tal. Por exemplo, muita gente já ouviu o elogio que se faz à natação, “esporte completo, que trabalha todo o corpo”. Pois bem: o romance é gênero completo que trabalha toda a imaginação. Afinal, onde mais se pode descrever tantas faces da existência — faces por vezes caleidoscópicas — , reunidas numas poucas personagens e situações?

As demais artes não são capazes de tal, tampouco se propõem a tal. Pois o romance serve a burocratas, sociólogos, atores, faxineiros, médicos, clérigos; a pobres e a ricos. A toda gente. É nobre criação, da qual o romancista é artífice habilidoso.

Mas, e quanto ao leitor? Descendo ao rés do chão, não vejo com bons olhos quem leia de tudo exceto romances. Tudo bem: pode ser que, para alguns, ainda não tenha ocorrido um encontro feliz com o gênero; haverá tempo e oportunidade se houver disposição. Contudo, refiro-me àqueles que por ignorância desdenham da ficção literária em geral; ou dela façam leituras protocolares, de exceção, para fins de repertório livresco. Agem como se pairassem acima da arte, com suas seriedades comezinhas e estúpidas. Uns filisteus.

Por outro lado, consumir livros de afirmação — a não-ficção propriamente dita, com suas variadas ramificações; voltar-se apenas a teses rígidas e pré-digeridas pelos autores, repletas de conceituações ou análises áridas do cotidiano — , obviamente tem seu valor e utilidade. Não obstante, somente o romance dará ao leitor uma massa maleável e informe a ser moldada por sua própria imaginação. E a imaginação é o dínamo da inteligência.

Quer liberdade maior para o pensamento? Que outro gênero oferece tanto? O romance constrói, amplia e enriquece a visão da vida e das coisas. Depois de lido, a própria não-ficção deriva-se também, ultrapassa as inculcações superficiais, os dogmatismos esterilizantes. Romances educam o ato de ler, treinam a compreensão. Fazem os demais textos ficarem claros, discerníveis. Inclusive os textos ruins, ao denunciá-los como ruins.

Além disso, não vendem certezas. As teses do romance são sutis. Não fazem a cabeça, pelo contrário; por vezes questionam as convicções, como se postassem um espelho diante de nossa vaidade autoindulgente, a nos dizer: “olha como é você, como somos, de que é feita nossa humanidade”. Chegam a confundir-nos, de modo benfazejo; amadurecem-nos, desenvolvem nossa consciência moral e abrem perspectivas, varrendo pré-julgamentos.

Claro: refiro-me ao melhor produto e aos melhores produtores do gênero. O bicho romancista e o filhote romance não se deixam confundir, não admitem impostores. Antes, os desmascaram.

A primeira impressão
é a que fica?

Tempo de leitura: 4 minutos

“Axe. A primeira impressão é a que fica.”

O famoso slogan data dos anos 1980, quando os comerciais de tevê não desfrutavam dos atuais recursos de computação gráfica, de imagens em 4K HDR a 60 frames por segundo e outros recursos tecnológicos da atualidade. Naquele tempo, a limitação visual da publicidade era compensada criativamente pelo texto publicitário, e há toda uma galeria de propagandas daquele período que se tornaram marcantes, inesquecíveis: o dilema de Tostines, o efeito Orloff, e tantos outros.

Embora ótimo, o slogan “a primeira impressão é a que fica” talvez caísse bem para o desodorante, não para o gosto literário. Bem, assim julgo eu, a partir de minha própria vivência de leitor até agora. Passo à primeira pessoa do plural, pois imagino que a experiência nos seja comum: no início, quando se abre a caixa mágica da grande literatura para nós, logo elegemos nosso autor preferido e nada mais importa nessa vida. Essa é a primeira impressão. Que não fica, porém.

Conforme descobrimos e mergulhamos na leitura, o leque de afinidades se amplia ou até muda completamente. Não significa que o autor preferido de ontem será o desprezado de amanhã, pif-paf, como se o gosto literário fosse algo bipolar. Não. Ocorre que, quanto mais o repertório de obras aumenta, mais descobrimos aqueles autores que se adequam não apenas ao nosso paladar textual de momento, digamos, mas ao nosso temperamento, à nossa personalidade, circunstância, maturidade. Numa palavra, à nossa afeição.

No meu caso, um escritor que de início deixou-me embasbacado foi Flaubert. Li Madame Bovary e fiquei não apenas fascinado com a história enquanto tal, mas também com a precisão vocabular, o acerto meticuloso de cada parágrafo, como se ele escolhesse cada palavra com esmero, para não estar ali à toa. De fato foi intencional, descubro depois. Achei genial.

Depois ainda leria de Flaubert seus Três Contos¹ (Um Coração Simples, A Lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade) e então não tive dúvidas: o melhor romancista era também o melhor contista. Achei meu lugar. Demais autores que me perdoassem, mas meu coração de leitor pertenceria ao mestre francês. Ainda leria depois seu Educação Sentimental e minha predileção só aumentou.

Mas a fila andou, sem que eu desse por isso. Guardei em bom lugar a ternura que senti por Flaubert e fui acessando outros textos e escritores. Sem intenção alguma. Não quis trocar de autor preferido a princípio. Por exemplo, mais à frente conheceria Tolstói. Colossal, monumental, o maior de todos. Assim entendi Tolstói: um totem para ser admirado com distanciamento reverencial e certo assombro. Grandioso demais para ser autor de cabeceira. Sua voz representa a universalidade do drama humano de todos os tempos, não de um leitor específico (embora possa, claro).

Contudo, não são os monumentos que trazemos ao coração, via de regra. Nosso autor preferido fala ao nosso íntimo, à nossa particularidade subjetiva, para além de suas histórias cativantes. Traz-nos uma identificação pessoal. De sorte que continuei fiel a Flaubert, até que por acaso tomei conhecimento de um tal Philip Carey, protagonista de uma obra chamada Servidão Humana, escrita por certo William Somerset Maugham.

Para além da obra em si — espetacular — a maneira de Somerset Maugham narrar inspirou-me não apenas a ler com gosto, mas a escrever. Quer dizer, quando li Servidão Humana² tive um estalo e disse a mim mesmo, não me pergunte como: quero fazer isto aqui, desse jeito (o dedo indicador direito batendo na página). Escrever ficção. Depois iria a outras obras suas, e a sensação permaneceu. De novo, não se tratou de um aspecto comparativo, de maior este-menor aquele. Maugham tornou-se melhor que Flaubert para mim? Não. Ocorreu a identificação, espontaneamente. Se um dia eu escrevesse, seria aquele meu norte. Não como cópia ou imitação; de fato, não sei se o ‘som’ do meu texto é semelhante ao de Maugham (para azar meu).

Então, o que houve?

Para além do estilo adorável, notei que a prosa de Maugham não deixa o leitor perdido, flutuando na narrativa. Com peculiar sutileza, ele situa o leitor no espaço, no tempo e na situação; muda o cenário, ele te situa. Talvez esse cuidado decorresse de sua carreira de teatrólogo que ele também foi, e dos grandes. Mas ele faz aquilo de maneira gentil, captando com antenas sensibilíssimas tudo que acontece ao redor: cada levantar de sobrancelha, cada rubor disfarçado, cada olhar de soslaio, cada expressão corporal a expressar secretamente pensamentos e as reações íntimas que os engendram. Maugham descreve com argúcia ímpar cada, como direi, microrreação dos personagens (não sei se existe o termo, perdão).

E faz tudo isso com uma clareza fascinante, direta, não de maneira labiríntica. Pessoalmente, admiro esse tipo de fluência textual escorreita, o qual, sem abrir mão da elegância, não abusa das frases intercaladas. Não sou exatamente inimigo da intercalação, note. Considero o recurso como um dressing gastronômico, um toque, uma pimentinha no bobó de camarão. Um efeito sonoro no espetáculo da clareza.

Além disso, em sua maneira de narrar, Maugham é um cavalheiro, trata com educação seus personagens, não como se fossem estúpidos (a menos que sejam mesmo). E sua voz autoral não faz questão de se exibir, esconde seu conhecimento. Faz isso por modéstia, acho, por temer o cabotinismo e a afetação. Maugham não se pavoneia, talvez por timidez ou delicadeza. Troca o julgamento pelo espanto e admira as personalidades que retrata. Escreve como quem pinta um retrato, com pinceladas suaves e precisas, estudando cada tonalidade, cada nuance. Gosto disso. Quero ser assim.

De maneira que não abandonei Flaubert, por favor. Ainda somos bons amigos e eu não ousaria desmerecê-lo nem um pouquinho (mas vê se pode!). Confesso, porém, que não o visito há um certo tempo e, para ser sincero, temo que tal distância não nos esfrie a amizade, resultando em mera simpatia distante. Admito o risco. Isso não significa também que doutor Maugham possa se gabar de algum monopólio afetivo-literário por aqui. Não obstante, como ainda há muito em sua obra por descobrir, diria que por enquanto até pode, um pouquinho; tanto mais porque nutro por ela interesse e curiosidade, ingredientes essenciais de um relacionamento literário duradouro.

E de qualquer relacionamento, aliás.



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Alma de explorador

Tempo de leitura: 2 minutos

Sou um grande explorador. Grande não, minto: um pequeno explorador. Do tipo que vai e vê, capta a substância e volta. Mas vou, pois necessito. Preservo a lucidez, contudo. E Deus como porto seguro.

Como se diz, “confiar desconfiando”. Discreto, entro e capto os sons, atento-me aos movimentos: de modo que não sou um homem do subsolo mas outro, que pára ao meio da escada que leva ao porão e dali estuda o ambiente. Se a escuridão é muita lá embaixo e o cheiro de mofo arde-me as narinas, volto, antes que me fechem a porta e não haja retorno possível.

(Dostoiévski chamaria a isso covardia? Não sei. Eu chamo de prudência.)

O caso é que me atrai o diferente que a manada rejeita, por isso mesmo: manadas adoram consensos e o consenso me aborrece. Quando todos repetem mantras em coro, tatuam as mentes, volto-me e parto em busca do Verdadeiro dentro da suposta mentira rejeitada; por vezes, encontro ali outra verdade, sutil e profunda, ocultada qual um tesouro sob montanhas de mistificações, sofismas e preconceitos burros (passe a redundância).

Não raro, a mentira é só uma verdade mal explicada e a verdade, uma mentira bem contada.

Pois lá vou eu rumo ao diferente. Todavia, não me entrego às cegas nem me lanço de corpo e alma. Não: quieto, apenas aproximo-me, paro e observo à média distância. Deixo que ele se mostre e fale enquanto calo, durante o tempo necessário.

Assim minha alma aprende o bem e o mal, se vale ou não vale a pena. De todo modo ela aprende, ela evolui. Sem escapar de mim, porém.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)