A substância
da Substância

Tempo de leitura: 8 minutos

She’s a sinner in a side show
She feels at home when there’s nowhere left to go
She’s the devil, you understand
Break the man

Tears For Fears, “Break the Man” (2022)

TANTO A CANÇÃO ACIMA quanto A Substância (The Substance, EUA, 2024), filme de Coralie Fergeat estrelado por Demi Moore, parecem exprimir certa característica dos tempos em que vivemos. Fui longe, mas aproximo o foco: é que só agora, no streaming, assisto o filme ganhador do Oscar de melhor maquiagem, além de concorrer em mais quatro categorias, incluindo melhor atriz, direção, roteiro original e filme. A película já havia chamado minha atenção na premiação deste ano por exclusão, na cerimônia do Oscar, pois Demi Moore concorria com a brasuca Fernanda Torres (“nossa Fernanda” para os íntimos), por esse filme. No fim das contas, “nossa Fernanda” levou a estatueta — inédito feito verde e amarelo, diga-se — deixando a consagrada atriz americana na fila.

Bem, cá em minha choupana imaginei que veria no filme uma espécie de sessão da tarde, o que de certa forma é mesmo (apesar do nu corajosíssimo de Moore, em plenos – e ótimos – sessenta anos). A Substância conta a história de uma apresentadora de tevê, Elisabeth Sparkle (Demi Moore). Ela conduz um programa matutino de ginástica para donas de casa, na mesma emissora e por anos a fio. Tudo corre bem quando, num belo dia, ela vai ao camarim após a gravação e o banheiro feminino está em manutenção; resta como opção o banheiro masculino. Ela checa se há alguém, ninguém, tudo certo. Então ela usa o banheiro dos homens. Devidamente fechada na cabine, entra após ela o diretor de programação da emissora, Harvey, interpretado pelo velho Dennis Quaid. Guarde a palavra velho.

Então o tiozão Harvey (Quaid) fala ao celular enquanto urina e, com a maior indiscrição que só a macheza dá, esculacha Elisabeth pelas costas, sem saber que ela escuta escondida, chamando-a velha, ultrapassada e outras lindezas; na intimidade de um enorme banheiro vazio, o diretor revela a intenção procurar carne nova para o show matutino de ginástica, de preferência uma gata mais nova e gostosa.

Aos berros, o canastrão deixa o banheiro (detalhe: sem lavar as mãos), e Elisabeth Sparkle sai da cabine um pouco em choque, sem entender bem o que houve ali, mas aquilo mudará tudo: até então, ela ignorava que a achavam velha ou que a substituiriam em breve. Ainda tentaria conversar com o diretor num almoço, numa cena em que o chefão devora com as mãos um tacho de camarões e os engole de boca aberta, com a câmera em close máximo na boca nojenta de Harvey (Quaid) mascando a pasta triturada, após o que, de novo, ele não lava as mãos e sai aos berros, quando avista um velho amigo. O homem não é muito fã de água e sabão.

O fato é que aquele comentário de banheiro do macho-branco-escroto Harvey destrói a vida da pobre Elisabeth, o filme deixa entrever. Sim, foi ele. Curioso, pois até ali Elisabeth Sparkle era uma cinquentona bem resolvida, rica, empoderada, livre, emancipada; ela vive só e muito bem numa cobertura luxuosa de vidraça integral, e não dá mostras de precisar de machos para nada. Mesmo assim, isso não é suficiente para suplantar a fala infeliz do diretor escroto Harvey. Então não há empoderamento que possa com um comentário imbecil de um chefe desbocado?

Depois Elisabeth passa mal, vai ao hospital, e lá descobre com um enfermeiro meio efebo uma fórmula de rejuvenescimento chamada The Substance, a tal substância que dá nome ao filme. Na verdade, The Substance é um kit de tratamento que dura exatos sete dias (lembrou o Seven Day Diet dos anos 90), e permite, mediante o correto uso semanal, criar um novo eu mais jovem derivado do eu original, algo como um simbionte.

Ao aplicar em si mesma a fórmula, Elisabeth (Demi Moore) cria e expele sua réplica jovem. Surge então Sue, apenas Sue (Margaret Qualley), que eclode das costas de Elisabeth, rasgando suas carnes para vir à luz (a inspiração em Alien é óbvia). Libertada do corpo de Elisabeth, a formosa Sue continua sua parte do tratamento e, num teste de elenco, é aprovada para a vaga da hospedeira original. Ninguém sabe, no entanto, que Sue é a versão jovem da mesma Elisabeth, agora duplicada graças à dita substância.

Enquanto isso, o velho corpo de Elisabeth Sparkle permanece nu, rasgado e prostrado no banheiro da cobertura, enquanto a versão jovem e cheia de vida vai à luta, faz charme e rebola para a delícia dos marmanjos (do macho-branco Harvey, especialmente). O que se seguirá é a luta pela fama entre a jovem Sue contra a velha Elisabeth, duas partes de uma só pessoa, e resta saber quem ganhará a parada.

Escrito e dirigido pela francesa Coralie Fargeat, A Substância revela, por baixo do enredo, uma visão intencionalmente provocativa do homem e da mulher, com vantagem para esta. A proposta passa longe da sutileza. No longa, complexidade humana é assunto feminino: o departamento homem, aqui, é somente composto de escrotos ou perdedores. Não há nuance ou meio-termo, nem possibilidade de bom caráter neles. Já as mulheres, mesmo as coadjuvantes e figurantes, são plenas, funcionais e sãs, ainda que sempre submetidas, coitadinhas, a se desnudarem sob os mandos pretensamente artísticos de tipos como Harvey mais um bando de manda-chuvas velhos.

Considerado um filme de body horror (confesso que desconhecia o gênero), o filme tenta discutir – com não poucos buracos no roteiro –, o drama da feminilidade sob o tacão de um machismo dominante, tudo a partir do corpo. Quer dizer, se o tal Harvey não dissesse aquilo no banheiro, ou talvez se Elisabeth Sparkle não ouvisse a abobrinha, não haveria nenhuma substância, nenhuma Sue, e tudo ficaria bem. A culpa, então, foi dele e toda dele.

Culpa dele e deles, sempre assim: o mal da mulher é o homem, é o que a obra diz ou grita. No filme, homem algum é poupado e não há sequer o clichê amigo-gay-sensível para amparar Elizabeth Sparkle um tico que seja. Mas ela também não tem amigas (um dos buracos do roteiro; que mulher não tem sequer uma coleguinha para jogar conversa fora?), e vive completamente só, sem sequer uma companhia eventual que seja. Impensável para uma consagrada apresentadora de tevê, mas o roteiro deixa o buraco lá.

Na hora, tive a impressão de que a diretora Coralie Fargeat fez o seu A Substância como uma espécie de filme-vingança contra o homem. Sei lá, ela precisava desafogar. Depois confirmei: militante feminista, ela deu entrevistas parecendo divertir-se muito com a repercussão da obra (sempre muito positiva na imprensa, diga-se), ao mesmo tempo em que furtou-se a fazer concessões na história, como se um desagravo de séculos não permitisse luxos do tipo. Além disso, a francesa disse ter escrito mesmo o filme “com raiva”¹. De quê, exatamente? Ou de quem? Ela não deixa claro.

Entretanto, a resposta parece óbvia: a masculinidade inteira. Nas entrelinhas, o filme parece indicar o tempo todo “o mundo seria melhor se tivesse apenas nós, filhas de Vênus”; isso enquanto machos providenciais certamente empunhavam câmeras, cabos e luzes no set; ou quando montavam e editavam a película, ajudando o filme a faturar os gordos 77 milhões de dólares mundo afora. Mas isso é bobagem.

Eis o busílis: A Substância é um filme identitário, woke de corpo e de alma (detesto a palavra, confesso); no caso, pela bandeira feminista. Aliás, alma não, só corpo: o woke lida apenas com corpos enquanto entes de razão, e nem chega ao nível da pessoa: reduzindo sempre a existência humana à mera corporalidade – cabeça, tronco e membros, carnes ambulantes sem vida interior ou qualquer subjetividade pessoal.

Filhote caçula do progressismo – o esquerdismo pós-modernista –, o woke não considera nada para além da aparência material e das relações de dominação entre opressores (no caso do filme, machos brancos e velhos) e oprimidos (mulheres de todos os tipos). Esqueci uma concessão: há ali um homem negro, apresentador, que Elisabeth Sparkle assiste pela tevê enquanto, ó coincidência, prepara uns chouriços na hora. Homem negro, chouriço: única sutileza dispensada ao macho em A Substância.

O filme é também identitário quando segue o receituário típico: há uma tese axiomática e inescapável (opressor e oprimido, homem e mulher, branco e preto, pif e paf); resta à historinha apenas escancarar a verdade inquestionável. No caso de A Substância, os males do machismo e seus promotores diretos, os machos de toda sorte. Eis a tese posta. Se a mulher se destrói, se fica paranóica com o corpo até a mutilação, se chega a injetar uma droga esquisita e suicida no corpo, é tudo por culpa pura e simplesmente deles, porque eles falam aquelas coisas delas. Quanto poder tem o empoderamento… Já elas, apesar de fortes e independentes, não podem responder pelas próprias escolhas já que o patriarcado é atmosférico.

Por falar em patriarcado, a figura do macho-branco-velho (fenótipo de patriarca, certo?), perpassa o filme: eles mandam sempre, da alta diretoria aos moços da técnica. Resta às mulheres, coitadinhas, obedecerem e aceitarem; de preferência, com roupa mínimas ou despidas. Nenhuma mulher é dona de si em A Substância: tudo é dos homens e para os homens; elas inclusive.

Pessoalmente, embora involuntariamente homem-macho (culpem papai do céu), tive alguma sensibilidade para ver em A Substância outra questão (ou questões), tudo importante de se discutir e levantar, sem dúvida: a pressão imensa que a mulher enfrenta para estar sempre linda, perfeita e em forma, e os consequentes males em muitos níveis que isso acarreta; também como essa mesma pressão pela beleza interdita e anula o natural amadurecimento de uma mulher (embora, meu Deus, Sparkle-Moore podiam se sentir feias em algum momento? Enfim…). Além disso, há sim uma imagem (diria velha e demodé para uma denúncia tão veemente) de homens de certa geração que dividem as mulheres em gostosas cá fora, senhoras lá em casa. Mas isso é velho como esses sujeitos, e tal disposição beira a decrepitude tanto quanto eles.

Também é possível pensar, se o filme fosse um tiquinho mais honesto, o quanto a própria mulher (no caso de Sue, ou de Elizabeth que injeta qualquer coisa no corpo para ser Sue), o quanto a própria mulher não deseja precisamente esse olhar de machos escrotos, e além disso, folga muito em saber que agrada, provoca e se beneficia disso? De novo, elas nunca se responsabilizam? Mas elas não são dotadas de vontade própria, não podem simplesmente medir um pouco as consequências e recusar?

Há muito não é assim na vida real. Sobram mulheres mandando e desmandando em tudo por aí. Digamos, a própria Coralie Fargeat, a diretora. Ela fez o filme sob as ordens de algum macho ou de moto próprio? De resto, é contar o número de mulheres e homens num escritório qualquer e confirmar: quem é maioria ali? Ou simplesmente olhar os vagões do metrô ou trem, as filas dos aeroportos. Se o macho manda tanto no mundo, se é assim tão dominante, ultimamente ele até que tem andado bem discreto e recolhido.

Na premiação do Oscar, comentou-se que A Substância seria a última chance de Demi Moore conquistar um inédito Oscar de melhor atriz, após décadas de bons serviços prestados à telona. Perdeu para Fernanda Torres, mas principalmente, creio, teve a infelicidade de não disputar a estatueta com um filme melhorzinho. Ela merecia pela carreira, mas fazer o quê? Vai ver, foi culpa de algum macho escroto.


¹Realizadora Coralie Fargeat fala da paridade de género: “Está na altura de uma verdadeira mudança” (Euro News)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O ringue

Tempo de leitura: 11 minutos

1

A composição despejava as trabalhadoras, às centenas, em horário comercial. Apressadas, elas desembarcavam afoitas, com mochila ou bolsa atracada ao corpo e aglomeravam-se em frente às escadas de saída. Nos semblantes, a impressão de uma vida de suplícios para faturar algum dinheiro.

O bairro da estação final era repleto de galpões com tijolos aparentes, todos castigados pelo tempo e escurecidos pela fuligem e a poluição; construções que remontavam ao início do século passado, de tijolos ingleses, muito resistentes. Diversas fábricas funcionaram ali, onde hoje companhias de telemarketing alugavam a bom preço aqueles paredões arruinados.

Embora exibissem por fora um visual decadente e de certa forma hostil, por dentro havia tecnologia de ponta e ótima estrutura naqueles locais. Todos os que visitavam os galpões de call center diziam como fachada e entorno apenas enganavam a vista, e que bastaria entrar para conferir as modernas instalações, todas bem adaptadas sob o fortíssimo frio do ar condicionado.

Além disso, diferente das escaldantes fundições de outrora — todas então dominadas por machos da espécie —, agora o que se ouvia não era mais o martelar nas bigornas mas o tlec tlec dos teclados e o coro feminino; uma população de moças perfilava-se nas baias dispostas em fileiras enormes. Uma parte atendia aos clientes queixosos dos bancos e outra parte oferecia empréstimos a aposentados – único corte da população a manter telefone fixo em casa e a levar a sério a oferta das moças. Ainda um bom negócio, com efeito.

As atendentes provinham das rebarbas da cidade e praticamente todas eram mães, muito embora só uma ou outra fosse casada, sobretudo as crentes pentecostais. As demais tinham filho e um certo pai do meu filho de quem costumavam reclamar.

Às cinco em ponto, elas deixavam os galpões. Exaustas, partiam novamente à estação final, sempre a desabafar no caminho indignações contra as chefes perfumadas e de salto alto que iam de carro para casa. Algumas se consolavam e compravam um pequeno prêmio para coroar o dia: um pacote roliço de biscoito recheado sabor morango ou chocolate. Mastigavam o petisco no vagão e alternavam reclamações e piadas internas, disparando resíduos da massa triturada na boca, os quais choviam sobre passageiros sentados. Elas se desculpavam pela distração (ai, desculpa moço); não obstante, não se esqueciam de levar um pacote a mais ao filho que aguardava junto a avó, lá muito longe onde moravam.

Eis a rotina do velho bairro fabril, de segunda a sexta em horário comercial. Mas havia um daqueles galpões que recebia outra leva de trabalhadoras no período noturno. Não muitas, é verdade, e há certa indelicadeza em descrevê-las fisicamente; porém, faz-se necessário para o entendimento do que virá adiante, pois o padrão das fisionomias chamava muito a atenção.

Tratava-se de moças robustas e fortes, umas muito fortes, enormes: uns quadris em redoma, uns braços parrudos e troncos atarracados. Outras eram altas, com pernas compridas e cabeleira florestal. Todas com cara de poucos amigos — embora fossem amigas entre si e andassem aos pares: desembarcavam no início do anoitecer e dirigiam-se ao branco.

Branco era apelido: referiam-se à cor do único galpão deste matiz, que ficava no fim da quadra principal, o último da rua anexa à estação. Àquela hora, de noitinha, os demais galpões estavam fechados para reabrirem apenas na manhã seguinte. Não o branco, que funcionava após o expediente regular e recebia as outras trabalhadoras, daquele jeito e naquele padrão.

Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Não só pelo pouco movimento de populares mas, ora essa, eram galpões de telemarketing: se moças ali chegam com bolsas e mochilas e adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.

Do outro lado do galpão branco, oposto à entrada de pedestres por onde as moças entravam, ficava o estacionamento. Já era noite quando furgões na cor branca e sem identificação encostavam ali. Os utilitários tinham aquelas janelas apenas na frente para motorista e ajudante. Chegavam e buzinavam, apressados. O porteiro oculto na guarita fumê abria e liberava a passagem. Os veículos desciam à garagem subterrânea enquanto o enorme portão de aço se fechava, ruidoso. De novo, tudo normal: no início da noite os carros de entrega são recolhidos às firmas; alguns se atrasam devido ao trânsito e à distância de onde retornam, naturalmente.

Somente por volta da meia-noite, quando a estação final estava prestes a fechar, as moças robustas retornavam a casa. A maioria parecia se banhar ainda no galpão branco, pois o vagão vazio era inundado pela mistura dos cheiros de xampu a evaporarem das cabeças.


Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Ora, galpões de telemarketing: se moças chegam com bolsas e mochilas e ali adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.


2

O branco funcionava todas as noites, exceto aos finais de semana. Nas sextas, uma empresa terceirizada de manobristas organizava um cinturão na quadra do galpão, posicionando setas e placas indicativas em pontos estratégicos.

Então, carros de luxo encostam e são recebidos por manobristas à porta, que abrem gentilmente para damas e cavalheiros. O motorista da vez deixa a chave do bólido de um jeito desdenhoso e arrogante. Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se travasse uma conversa despretensiosa.

Lá dentro, os convidados são conduzidos aos seus lugares. Há camarotes vip para sócios e toda a disposição das cadeiras é circular e dividida em setores, e nos corredores moças longilíneas conduzem os que chegam. Por dentro, o galpão branco é uma arena. Quem olhasse de fora jamais poderia supor.

Todos acomodados, uma imponente voz feminina anuncia as lutas da noite no alto-falante. Destaque para a última, com as principais lutadoras do evento. As luzes giram pela nave escurecida. No centro e no alto, quatro telões exibem cards com as lutas da noite, os nomes e os rostos das combatentes.

No centro iluminado está o ringue em formato octogonal. Antes do match, a tela exibe o logotipo do principal patrocinador do evento, um banco simpático cujo slogan é “mudar o mundo”.

De repente, as luzes se apagam: tudo escuro. Depois, piscam frenéticas como raios multidirecionais. Em seguida, apagam-se de novo, suspense imediato. Retorna uma iluminação vermelho-sangue, e o galpão se avermelha completamente. Apaga. Depois, um facho branquíssimo de cegar surge do alto, bem ao centro do ringue. Há um garoto franzino, quase fantasmagórico sob a luz. Pesa 50 quilos no máximo e aparenta ser adolescente, uns dezesseis anos. Traja uma cuequinha e meias escolares.

A narradora anuncia as lutadoras do primeiro confronto da noite. Elas vão ao ringue. A juíza autoriza “lutem” e elas partem, giram pelo octógono. A primeira desfere um cruzado de esquerda no garoto, que não vê o golpe: vai estonteado às cordas, trança as pernas mas não cai completamente. A segunda o surpreende e desfere um murro na região do fígado antes que o garoto recobre o equilíbrio anterior. Ele tomba em posição fetal. A narradora grita o nome das lutadoras e a plateia vai junto, vibra, assobia.

O menino se ergue e hesita, quer reagir mas teme, algo o impede. Evita bater em mulher, como se a voz da mãe ressurgisse na mente, um eco distante. Decide apenas se proteger com os antebraços. A primeira lutadora puxa seu bracinho franzino e o traz ao centro do ringue. A segunda se atraca a seu pescoço e o sufoca contra os enormes seios.

“Assédio! Assédio!”, grita a plateia, como se pedisse pelo golpe a seguir. Uma lutadora vem pelas costas do rapazinho e lhe desfere um chute de coturno, em cheio. Suas costas claras exibem a marca da sola à luz. Cai de frente. Tenta se erguer. A outra lutadora senta em suas costas e diverte-se, domina-o pelas orelhas. A juíza a repreende, manda se afastar. O garoto tomba no tatame, rendido. A juíza conta até dez e a primeira luta está encerrada.

“O homem perdeu! O homem perdeu!”, grita a plateia. Soa o gongo.


Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se quisesse travar uma conversa alegre e despretensiosa.


3

Segunda luta da noite. São duas capoeiristas de ossatura robusta, altas e magras. Usam um traje branquíssimo composto de calça de algodão cru e camiseta cropped com cortes rústicos. Uma corda preta ata a calça à cintura. As duas se assemelham a uma dupla de percussionistas de axé music.

No centro do octógono empurram um rapazinho de seus dezessete anos, ruivinho, daqueles que existem graças à variabilidade genética nacional. O jovem parece apreensivo na cuequinha de helanca com abertura frontal, peça única que trajava.

A locutora diz os nomes e anuncia o início da luta, faz efeito com a voz. A plateia vibra, grita, assobia alto e prolongado. Embaixo do ringue, um sujeito alto e corpulento com cor de azeviche começa a planger um berimbau com chocalho, ao que imediatamente as duas, depois de um cumprimento de santo, começam a gingar, perna pra lá, braço pra cá, vem e vai.

Elas dançam em sincronia em volta do garoto. Um pé passa rente ao rosto do menino, golpe de ar que o assusta. Se esquiva por reflexo: desvia-se de um lado e vem susto de outro, passa perto; a segunda capoeirista é ágil e ele desvia, se atrapalha. As duas giram e gingam, circundam, confundem, o impedem de sair da roda. Ele esboça um passinho e leva uma rasteira humilhante. “Caiu de bunda!”, a locutora descreve, para delírio da plateia.

O garoto se levanta e assume uma frágil posição de defesa, arqueando as costas e levantando os punhos, como nos filmes. Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino. Ele urra surdo e vai para trás em direção às cordas. O berimbau continua, mais forte e mais rápido, como a ensejar mais ação e movimento.

A segunda sacoleja a cabeleira e dá três estrelas em sequência; na última, baixa com um dos pés a minúscula peça de roupa do garoto que, envergonhado, encobre a genitália com os antebraços. A primeira faz um símbolo com o indicador e o polegar da mão direita, como se indicasse algo pequeno. A plateia gargalha. O garoto vai ao canto do ringue e se encolhe, como a tentar se esconder e esquecer que está ali.

A dupla recebe uma punição pelo golpe proibido e está encerrada a segunda disputa da noite. São desclassificadas. Humilhado, o garoto não se mexe. Permanece agachado, quando um braço imenso o puxa com força desproporcional pelas pernas e o retira por baixo das cordas. O menino berra um ai de dor e a plateia ganha um bônus: gargalha com alguma piada da locutora, um chiste rápido que mal se pôde entender. Talvez ela não devesse dizer aquilo, mas não se conteve.

No fim, outro homem perde. Soa o gongo.


Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino.


4

Na principal luta da noite, as duas lutadoras retiram o manto brilhante e acetinado que as envolve: são Lady B e Mel Massa. Elas sobem ao ringue num pulo e se penduram nos postes: exibem fluorescentes collants como num telecatch: não se sabe a arte marcial que cada uma domina, mas, pelo porte, é fácil presumir que qualquer golpe viria forte e contundente.

Desta vez, os seguranças corpulentos jogam dois garotos ao invés de um só, mesmo padrão: brancos e magrelos, de cuequinha. Parecem meninos de condomínio. A narradora faz questão de anunciar a maioridade dos dois, embora fosse difícil concluir isso à mera olhada. Mas a voz no alto-falante diz aquilo em tom sério e preventivo, como um disclaimer, talvez para não melindrar o sério banco patrocinador cuja marca era estampada nos telões.

Lady B e Mel Massa percorrem o ringue para serem vistas por todos os ângulos. São aplaudidas, aclamadas, ovacionadas. Elas inclinam a cabeça em agradecimento, estalam o pescoço, esticam os braços: profissionais. A luta promete, e elas sabiam que o público aguardava por elas, afinal. Soa o gongo, a juíza diz “lutem” e Lady B dá um salto rápido: atinge um dos rapazes com os dois pés no alto, entre o queixo e o pescoço. Com a cabeça jogada para trás o menino cai sobre o outro enquanto Mel Massa toma distância e se atira por cima de ambos num estrondo. A plateia delira, urra, assobia. O telão central exibe um replay do golpe em câmera lenta. Sincronia perfeita das duas.

O outro garoto parece mais ousado e se ergue. Gira um pouco pelo tatame como se dissesse “não será tão fácil”. Lady B apenas anda e o espreita. Sabe que ele não terá escapatória. O show esquenta. Enquanto isso, Mel Massa aplica uma gravata no menino de cabelo liso, e as veias de sua testa dilatam-se: quando fecha os olhos desacordado, ela o larga ao chão como um pacote inútil. A juíza paralisa e conta até dez. Sem chances. O jovem é puxado pelo segurança, rápido.

A plateia vaia o garoto vencido e fica em êxtase, catártica. A luta recomeça. As duas caçam o rapaz remanescente, que tenta uma ginga ridícula. Sua imagem naquela cuequinha frouxa lembra uma comédia pastelão.

Lady B consegue puxar o elástico da cuequinha, e o rapaz, rápido, recolhe-se por reflexo, esconde a nudez: ela então pula de costas e lhe atinge a têmpora direita com o cotovelo para em seguida Mel Massa cair sobre ele como um piano. Rápido esta sai e gira pelo octógono, recebendo a aclamação da plateia. Lady B nota estar em baixa no ranking de golpes e que a plateia não a aplaude muito, então decide girar com a perna esquerda e acertar com o calcanhar a mandíbula do jovem. Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.

Embora em dupla, as duas lutadoras não pareciam muito unidas como as anteriores. Ao contrário, cada uma queria superar a outra e se consagrar sozinha perante a plateia. Então, vendo que Lady B consegue a façanha de arrancar um dente ao garoto, Mel Massa gira em torno de si mesma como um pião e aplica um chute certeiro na tíbia esquerda do rapaz. Ele tomba de imediato. Ela percorre o octógono como quem pergunta “e então?”, e recebe assobios e gritos eufóricos.

O jovem está caído. A juíza hesita, não vai contar. A plateia silencia por um instante. A câmera de cima mostra o garoto estirado com a perna de um modo estranho, invertida. As duas ainda giram pelo ringue em direções opostas e recebem alguma aclamação, embora mais tímida. Elas não se olham nem se cumprimentam.

Finalmente a juíza se aproxima e faz a contagem. A tela exibe em letras garrafais “homem derrotado!” e a música sobe, junto com os raios de luz.

O segurança puxa o rapazinho com toda a força por baixo da corda e este urra com dores excruciantes. O som alto não permite ouvi-lo, entretanto. Pendurado às costas do segurança, a tíbia esquerda pende e balança, mole. O garoto sai aos berros.


Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.


5

Luta terminada, as duas lutadoras recebem o cinturão. São aclamadas, mas em momento algum se olham ou se falam. Cada uma está ali por si mesma.

Quando descem do ringue, um sujeito da plateia surge repentinamente e aplica um soco às costas da Mel Massa, que se desequilibra e cai. Rápido o segurança cor de azeviche o arrasta e o leva embora para local desconhecido, apertando os braços enormes contra seu pescoço. Uns passos à frente e o sujeito já parece inconsciente.

Lady B ampara Mel Massa, pergunta se está bem. Ela diz que sim, está; mas Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.

“Quero a identidade desse cara, pega aí na carteira dele”, ordena ao segurança corpulento. Ela tira o smartphone do macacão e o utiliza para fotografar a cara do agressor. Enquanto isso, vídeos filmados pelos presentes chegam via aplicativo, documentando a súbita agressão a Mel Massa.


Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.


6

Na semana seguinte, chegam as trabalhadoras ao galpão branco, à noitinha, após o horário comercial. Estão trajadas como qualquer atendente de call center, mas vieram ali para treinar. A semana transcorre normalmente e sem surpresas.

Na sexta-feira, dia da luta semanal, chega um furgão ao galpão. Dele desembarcam motorista e segurança. Do interior saem duas moças longilíneas em trajes sumários, loiras e lindas, que faziam o papel de hostess nos dias de luta. Após elas, desembarcam uns adolescentes uniformizados de colégio. Um deles pergunta “onde é a balada”. Outro, mais afoito, passa a mão no cabelo da segunda modelo e a elogia de “muito gata”. As duas eram iscas.

As beldades os conduzem a uma salinha escura cheirando a mofo e com luz mortiça. Os seguranças os obrigam a ficar “só de cueca”, dizem. Os garotos ainda riem, acham graça. Imaginam alguma aventura amorosa dali a pouco, a primeira da vida. Chegam as lutadoras para o aquecimento e pulam corda no tatame. Enquanto o evento não inicia, os garotos permanecem reclusos, vigiados pelos seguranças. As loirinhas não aparecem.

Lady B e Mel Massa não vieram lutar hoje. Ambas foram chamadas à delegacia da mulher para reconhecer o agressor capturado pela polícia. O vídeo da agressão foi exibido à delegada que, indignada, ordenou a prisão do sujeito em flagrante. Emocionada, Lady B abraça Mel Massa. Aos prantos, ambas comemoram a prisão do homem violento.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 29 (1/9/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A vingança dos
barbudos gourmet

BARBUDOS, barbudos por todo lado. Para onde quer que se olhe, há um ser humano do (cambaleante) sexo masculino portando uma questionabilíssima barba. Está na moda. Diante disso, um amigo blasé me aconselharia a encarar o fenômeno como mero produto da moda, portanto algo passageiro. Sim, a moda é assim, eu sei. Essa onda passará também, cedo ou tarde.

Observo que há uma recente indústria em torno das barbas gourmet, como foi na década passada a onda das pet-shops. Ser barbudo não se trata mais de desleixo, de deixar os pêlos tomarem a cara e não fazer nada a respeito, muito pelo contrário. Proliferam-se os salões para barbudos com hidratantes para barbudos e apetrechos para barbudos. E visual apropriado para barbudos: muito couro curtido, ferragens em ouro velho, tecidos estonados de algodão cru, camisas flaneladas. Uma coisa meio lenhador urbano importada dos EUA. Rapazes saudosos de uma tradição nunca vivida mas aprendida na internet cultivam suas barbas por aí, e as tratam como se tivessem vida própria: levam-na para passear, é o novo pet. “E daí, há algo de errado nisso?” Não, nadinha. Mas não significa que esteja tudo muito certo.

A atual síndrome barbuda é uma espécie de vingança tácita do homem, este ser atualmente perdido na civilização. Provavelmente seja uma das últimas coisas que lhe restaram do ser macho pra valer, do algo que só homem pode fazer: porque sabemos o quanto no mundo atual é proibido haver alguma coisa só de homem, sem parecer viadagem ou machismo. Então, as barbas gourmet surgem como um ato de resistência. É uma resposta urgente à feminilização compulsória: para tornar o mundo mais amigável às mulheres (ué, não era?) todos devem ser um pouco mulher, deixar-se feminilizar, de alguma forma.

Esqueçam a propaganda ideológica: quem vive oprimido, de verdade, é o homem. Como aliás sempre foi. Quem morre mais? E a figura masculina apanha dia e noite porque ainda, repito, ainda não se tornou propriedade estatal, como a feminina. A mulher, concorde ou não, já é propriedade do consórcio Esquerdismo-ONU-ONGs-Universidades-Estado-Mídia (doravante chamado apenas de consórcio). Só que a pobrezinha não percebeu, a coisa toda foi muito sutil. Esse tal consórcio, mediante pressão exercida por instituições tentaculares e constante martelamento midiático, apoderou-se das mulheres e visa apartá-las dos homens, bani-las da presença masculina, isso de um lado; por outro lado, tenta desconstruir, desvirilizar o macho, pouco a pouco, a fim de apoderar-se dele também e instrumentalizá-lo algum dia.

O homem, porém, resiste como pode. Mas vive muito mal, nos dias que correm. É cachorro sem dono, pode chutar que ninguém liga. É um lutador escorraçado no ringue, com a cara repleta de hematomas, que se segura nas cordas recusando-se a cair. Agora que seria a hora ideal para finalmente desfrutar de tudo quanto seus antepassados deram sangue, músculos e cérebros para conquistar, ele vê as mulheres sorrateiramente pegarem tudo para elas. Ou melhor: vê o consórcio supracitado a desapropriá-los, desautorizá-los, e entregarem tudo às mulheres, ainda que elas nem peçam ou façam questão. É uma operação mefistofélica.

Elas no entanto não reclamam, entorpecidas pela lisonja fácil da ideologia — sempre de esquerda, declaradamente ou não — além de, por natureza, adorar ser cortejadas. Por séculos, as mulheres viram os homens matar e morrer nas guerras, inventar a civilização, descobrir a luz elétrica e seus confortos, desenvolver ciência e tecnologia, presenteá-las com a indústria da estética e da cosmética: depois que tudo ficou absolutamente simples, organizado, acessível, quando finalmente braços fortes deixaram de ser necessários — uma vez que para tudo basta apertar botões ou deslizar dedinhos numa tela — disseram que elas são as novas donas do mundo, elas gostaram da idéia e ai de quem der um pio contra.

Claro, diriam, “elas sempre dominaram o mundo, tolinho: a mão que balança o berço é a mão que domina o mundo”. Sim, é verdade, mas havia um equilíbrio, uma mínima cooperação mútua, não? Meu ponto é que, atualmente, o consórcio entra na parada, sequestra as mulheres e usam-nas de porrete contra os homens. É como se, na cama do casal, entre o homem e a mulher deitasse um rinoceronte. O rinoceronte é o consórcio.

Mas voltemos aos barbudos. A barba então foi o que sobrou de exclusivamente masculino para os caras. Embora, em avançado estado de desvirilização, eles se meteram em certas feminices, como cozinhar, também. De avental e tudo. Vide a concomitante onda dos chefs: então, você vê lenhadores que preferem cozinhar ao invés de rachar lenha.

Contudo, meditando no assunto, eis que algo me ocorre: a barba, ainda que gourmet, pode ser um contra-ataque masculino para recuperar o território perdido. É possível. De maneira que o barbudo-gourmetizado moderno, mesmo frequentando salões de beleza “pra macho” e mesmo cozinhando de avental, entre outras feminices, ainda pode nos dar uma pontinha de esperança.

Por que esperança? Porque a continuar assim, quem sabe se elas, enciumadas, retornem aos salões de beleza, redescobrindo o prazer de uma boa fofoca. Ou, incomodadas com a concorrência masculina, voltem a cozinhar, felizes e cantarolando. Ou larguem a mão “dessa porcaria de futebol”, atirando na cara dos homens o que diziam outrora, “são vinte e dois bobos correndo atrás duma bola”.

Pois continuem, rapazes de barba gourmet hidratada, continuem. Eu, eterno imberbe, pobre vítima das maciças propagandas da Gillette nos anos 80 e 90, só posso desejar-lhes sorte: em breve, poderemos ter nossas mulheres de volta. Te cuida, infame consórcio! Te cuida, ideologia picareta!