A primeira impressão
é a que fica?

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“Axe. A primeira impressão é a que fica.”

O famoso slogan data dos anos 1980, quando os comerciais de tevê não desfrutavam dos atuais recursos de computação gráfica, de imagens em 4K HDR a 60 frames por segundo e outros recursos tecnológicos da atualidade. Naquele tempo, a limitação visual da publicidade era compensada criativamente pelo texto publicitário, e há toda uma galeria de propagandas daquele período que se tornaram marcantes, inesquecíveis: o dilema de Tostines, o efeito Orloff, e tantos outros.

Embora ótimo, o slogan “a primeira impressão é a que fica” talvez caísse bem para o desodorante, não para o gosto literário. Bem, assim julgo eu, a partir de minha própria vivência de leitor até agora. Passo à primeira pessoa do plural, pois imagino que a experiência nos seja comum: no início, quando se abre a caixa mágica da grande literatura para nós, logo elegemos nosso autor preferido e nada mais importa nessa vida. Essa é a primeira impressão. Que não fica, porém.

Conforme descobrimos e mergulhamos na leitura, o leque de afinidades se amplia ou até muda completamente. Não significa que o autor preferido de ontem será o desprezado de amanhã, pif-paf, como se o gosto literário fosse algo bipolar. Não. Ocorre que, quanto mais o repertório de obras aumenta, mais descobrimos aqueles autores que se adequam não apenas ao nosso paladar textual de momento, digamos, mas ao nosso temperamento, à nossa personalidade, circunstância, maturidade. Numa palavra, à nossa afeição.

No meu caso, um escritor que de início deixou-me embasbacado foi Flaubert. Li Madame Bovary e fiquei não apenas fascinado com a história enquanto tal, mas também com a precisão vocabular, o acerto meticuloso de cada parágrafo, como se ele escolhesse cada palavra com esmero, para não estar ali à toa. De fato foi intencional, descubro depois. Achei genial.

Depois ainda leria de Flaubert seus Três Contos¹ (Um Coração Simples, A Lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade) e então não tive dúvidas: o melhor romancista era também o melhor contista. Achei meu lugar. Demais autores que me perdoassem, mas meu coração de leitor pertenceria ao mestre francês. Ainda leria depois seu Educação Sentimental e minha predileção só aumentou.

Mas a fila andou, sem que eu desse por isso. Guardei em bom lugar a ternura que senti por Flaubert e fui acessando outros textos e escritores. Sem intenção alguma. Não quis trocar de autor preferido a princípio. Por exemplo, mais à frente conheceria Tolstói. Colossal, monumental, o maior de todos. Assim entendi Tolstói: um totem para ser admirado com distanciamento reverencial e certo assombro. Grandioso demais para ser autor de cabeceira. Sua voz representa a universalidade do drama humano de todos os tempos, não de um leitor específico (embora possa, claro).

Contudo, não são os monumentos que trazemos ao coração, via de regra. Nosso autor preferido fala ao nosso íntimo, à nossa particularidade subjetiva, para além de suas histórias cativantes. Traz-nos uma identificação pessoal. De sorte que continuei fiel a Flaubert, até que por acaso tomei conhecimento de um tal Philip Carey, protagonista de uma obra chamada Servidão Humana, escrita por certo William Somerset Maugham.

Para além da obra em si — espetacular — a maneira de Somerset Maugham narrar inspirou-me não apenas a ler com gosto, mas a escrever. Quer dizer, quando li Servidão Humana² tive um estalo e disse a mim mesmo, não me pergunte como: quero fazer isto aqui, desse jeito (o dedo indicador direito batendo na página). Escrever ficção. Depois iria a outras obras suas, e a sensação permaneceu. De novo, não se tratou de um aspecto comparativo, de maior este-menor aquele. Maugham tornou-se melhor que Flaubert para mim? Não. Ocorreu a identificação, espontaneamente. Se um dia eu escrevesse, seria aquele meu norte. Não como cópia ou imitação; de fato, não sei se o ‘som’ do meu texto é semelhante ao de Maugham (para azar meu).

Então, o que houve?

Para além do estilo adorável, notei que a prosa de Maugham não deixa o leitor perdido, flutuando na narrativa. Com peculiar sutileza, ele situa o leitor no espaço, no tempo e na situação; muda o cenário, ele te situa. Talvez esse cuidado decorresse de sua carreira de teatrólogo que ele também foi, e dos grandes. Mas ele faz aquilo de maneira gentil, captando com antenas sensibilíssimas tudo que acontece ao redor: cada levantar de sobrancelha, cada rubor disfarçado, cada olhar de soslaio, cada expressão corporal a expressar secretamente pensamentos e as reações íntimas que os engendram. Maugham descreve com argúcia ímpar cada, como direi, microrreação dos personagens (não sei se existe o termo, perdão).

E faz tudo isso com uma clareza fascinante, direta, não de maneira labiríntica. Pessoalmente, admiro esse tipo de fluência textual escorreita, o qual, sem abrir mão da elegância, não abusa das frases intercaladas. Não sou exatamente inimigo da intercalação, note. Considero o recurso como um dressing gastronômico, um toque, uma pimentinha no bobó de camarão. Um efeito sonoro no espetáculo da clareza.

Além disso, em sua maneira de narrar, Maugham é um cavalheiro, trata com educação seus personagens, não como se fossem estúpidos (a menos que sejam mesmo). E sua voz autoral não faz questão de se exibir, esconde seu conhecimento. Faz isso por modéstia, acho, por temer o cabotinismo e a afetação. Maugham não se pavoneia, talvez por timidez ou delicadeza. Troca o julgamento pelo espanto e admira as personalidades que retrata. Escreve como quem pinta um retrato, com pinceladas suaves e precisas, estudando cada tonalidade, cada nuance. Gosto disso. Quero ser assim.

De maneira que não abandonei Flaubert, por favor. Ainda somos bons amigos e eu não ousaria desmerecê-lo nem um pouquinho (mas vê se pode!). Confesso, porém, que não o visito há um certo tempo e, para ser sincero, temo que tal distância não nos esfrie a amizade, resultando em mera simpatia distante. Admito o risco. Isso não significa também que doutor Maugham possa se gabar de algum monopólio afetivo-literário por aqui. Não obstante, como ainda há muito em sua obra por descobrir, diria que por enquanto até pode, um pouquinho; tanto mais porque nutro por ela interesse e curiosidade, ingredientes essenciais de um relacionamento literário duradouro.

E de qualquer relacionamento, aliás.



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(Selo criado por Beth Spencer)