Como encontrei
Júlio Verne

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês

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Levei exatas quatro décadas para ler Júlio Verne, no seu A Volta ao Mundo em 80 Dias. Leve, divertido e de ótima prosa, o livro transportou-me aos tempos de Sessão da Tarde, na infância, quando passavam na tevê aqueles filmes de aventura divertidíssimos como os de Indiana Jones e Allan Quatermain.

Não falarei do livro, que aliás recomendo. Falarei de seu autor, sr. Júlio Verne, o próprio.

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês. Um dia, passando pelo pátio exterior do metrô Barra Funda, em São Paulo, vejo uma banquinha com diversos livros de encalhe a preços simbólicos. (Notinha: adoro essas feirinhas. Fuço, reviro tudo, garimpo mesmo. Foi numa delas que encontrei verdadeiras preciosidades: Stendhal, Henry Miller, Joseph Conrad, Oscar Wilde, Stevenson; do Brasil, Marques Rebelo, Lucio Cardoso, entre outros.)

Bem, a banquinha ficou lá por certo período e toda segunda-feira tinha novidade, conforme averiguei com um atendente. Pois um dia deparo-me com uma biografia de Júlio Verne, escrita por J. J. Benítez, escritor espanhol famoso por sua série de ficção científica Operação Cavalo de Troia. Achei inusitado um escritor best-seller interessar-se por outro escritor a ponto de dedicar-lhe uma biografia, sem ser biógrafo. Ele conta o motivo na introdução, aliás comprida e um tanto maluca, com uns lances de esoterismo, coisa e tal. Vale a pena. O fato é que me interessei, fiquei dois reais mais pobre (sim, dois reais) e levei o livro pra casa.

Folheio o livro no metrô como quem não quer nada e logo sou tragado. Jamais lera Benítez. Achei seu texto bem bom, envolvente, interessante. Parei o que vinha lendo para entrar naquela obra e conhecer a vida do sr. Verne pelos olhos do espanhol.

Mas não contarei tudo que li. Destacarei alguns pontos.

Ao contrário do bom humor e da sagacidade de Phileas Fogg, o protagonista de ‘…80 Dias’, Verne era um sujeito um tanto bisonho, triste. No início de uma carreira que custava a decolar, enfrentava os queixumes constantes da mulher que era pura cobrança (com alguma razão; mas ela exagerava). O fato é que a esposa só fazia reclamar, a ponto de cozinhar os neurônios do pobre Verne, infernizá-lo; além de impingir-lhe certa pecha de fracassado, “por que não arruma um trabalho decente?”, coisas assim. (Notinha, de novo: incrível como a realidade de Verne neste particular coincide com a do personagem Campos Lara, de O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa. O brasileiro soubera, de alguma forma? Impossível este ter lido a biografia de Verne, publicada quase cinquenta anos depois. Coincidência incrível que a ficção proporciona…)

A bater de porta em porta de editores, Verne finalmente encontra um sujeito disposto a dar-lhe uma chance. Publica, e o livro vende feito pipoca em porta de circo. Então, sua sorte muda não por enriquecer, pelo contrário; recebia pouquíssimo pelos direitos do que produzia (familiar, não?). Mas o tal editor ouvia o tilintar constante da caixa registradora na cabeça e passa a encomendar livros e mais livros ao escritor. Chegava quase a espremê-lo para ver se pulavam uns originaizinhos de seu paletó. Verne entregava um novo volume a cada três meses em média e entrava agora num modo frenético de produção literária, quase em escala industrial. De onde tirava tanta imaginação?

Bem, quanto à sra. Verne, essa gostou: viu que o marido finalmente pagava as contas com aquele ofício esquisito que abraçara. Se fazia a comida chegar à mesa, tudo bem.

Para fazer o dia render e ter absoluto silêncio durante o trabalho, Verne começava a escrever às quatro da manhã. Fazia-o inclusive para evitar o choro ensurdecedor do filho recém-nascido, que lhe quebrava toda a concentração. Nessa toada, o francês escreveu mais de uma centena de obras. Estima-se que ele tenha escrito até mais.

Quando a carreira amadurece, seu nome finalmente conhece a fama, e ele, a prosperidade. Não acumula nada exuberante que se possa chamar de fortuna, mas torna-se um escritor bem-sucedido, estabelecido, embora não tanto quanto gostaria e merecia.

Enfim, haverá outros fatos importantes de sua vida pessoal na biografia que deixo para quem quiser procurar pelo livro, facilmente encontrável em sebos. Para mim, o que fica é a perseverança do escritor profissional, de alguém que acredita na vocação e devota-se a ela com afinco, como se não pudesse fazer outra coisa na vida (e até poderia: formado em Direito, vinha de uma família de advogados).

Que eu saiba, seus escritos não figuram nos cânones, não constam como fundamentais na literatura universal. Entretanto, sua vasta obra permanece pela força criativa, pela diversão que proporciona (e não é disso que se trata a ficção, afinal?) e para escritores sua vida serve de inspiração, sobretudo por seu empenho incansável e por sua entrega de corpo e alma ao ofício literário. Um baita exemplo.

Que privilégio o nosso, leitores de todas as idades e origens, poder ler Júlio Verne ainda hoje. Com efeito, o homem sacrificou-se por isso. Leiamos, pois.




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