A metamorfoice,
o blog, a vida…

ANTES do último suspiro deste esquisitíssimo 2018 brasileiro, uma palavrinha aos meus dois ou três leitores eventuais.

Primeiro, algo sobre A Metamorfoice. Desculpem a inconclusão do conto, aliás aguardadíssima (pfff…). Desistiram dele? Com razão, admito. Eu faria o mesmo. Eis o que ocorreu: o conto foi dividido em seis partes, sei como termina e não desisti do final previsto. Já escrevi a parte faltante faz tempo, mas não gostei do resultado, do desenrolar da coisa toda. Pretendo terminar o conto até o fim de janeiro próximo, palavra. Tchekhov estava certo, afinal de contas: deve-se escrever o conto em três dias ou nada feito. Burro, eu. Quem mandou não obedecer?

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ESTE BLOG como um todo carece de revisão. De certos textos gosto um bocado, mas a maioria necessita atenção no estilo e na sintaxe. Sobram vírgulas, faltam vírgulas. Na maioria, abundam vírgulas ridiculamente fora do lugar ou mesmo descartáveis. Perdoem o aparente descuido. Confesso minha incompetência na revisão. Sofro mais como gramático que como escritor, embora não use isso como desculpa. Escrever sem manejar razoavelmente o idioma insulta ao bom leitor (mostrem ao Paulo Coelho essa assertiva) e a mim, também.

Seja como for, não desisti completamente deste Desmodernismo aqui. Pretendo revolver de novo a lama no fundo deste lago pouco frequentado, sempre que possível. Falta tempo, falta vontade, mas falta sobretudo motivação. Feedback ajudaria bastante. Acredite, conhecer opiniões sobre o trabalho é importante (não o puxassaquismo: prefiro o enxovalho sincero a sabujice, sempre falsa). Sinto-me motivado quando presto um serviço a alguém, de alguma forma. Seria o caso, aqui? Não sei. E esse silêncio atrapalha e desanima.

Outro erro no blog, este bem visível: caí na besteira ilusória de aceitar propagandas do Google. Sei lá que me deu. Vai ver os milhões do Gregor Soros de meu conto me influenciaram. Mas logo desisti, cancelei os anúncios, mas o Google não os tira de jeito nenhum. Incomodou-me essa poluição visual toda, além de não ganhar nem um vintém com esta gananciazinha de mierda, embora o proprietário desta plataforma, o ubíquo sr. Google, fizesse mais um otário. Bem-feito pra mim.

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A VIDA. Brasileiro de classe-média-média, metropolitano sem querer, tudo segue razoável, obrigado. Podia estar melhor, podia estar pior – o que indica mediocridade. Ok: estou acima da inferioridade, portanto. Mas à gente inferior não se pode humilhar, que é coisa muito feia, certo? Quanto aos poucos superiores, não se pode desdenhar deles, pois indicaria inveja e despeito. Então, como diria Lênin, o que fazer? O certo é que medíocres tem lá suas dificuldades, também. Estar enfiado ali, no sanduíche da existência, espremido entre a camada alta e a baixa, qual o charme disso? Zero. Sorte ter a internet para fingir alguma importância, alguma estatura.

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PS 1: Entre uma literatice amadora e outra, entre solecismos acidentais e propositais, este blog tornar-se-á aos poucos aquilo para o qual, afinal de contas, inventou-se os blogs: para registrar anotações à guisa de diário. Daí que pretendo importuná-los com meu cotidiano banal e pequeno-burguês: aguente-se filosofices estúpidas, conclusões imprecisas, preconceitos mal-disfarçados, de tudo um pouco. Preparem-se, pois, moços e moças.

PS 2: Um belo dois mil e dezenove a você e aos seus. Que corra tudo bem, que sejamos bons e confiemos em Deus (ih! rima involuntária).

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A metamorfoice
(parte 4)

DIA APÓS DIA, Gregor Soros adaptava-se à vida de inseto humano. Numa segunda-feira pela manhã, a exemplo dos encontros com seus executivos, reuniu a mulher e o médico oficial para incumbir-lhes a tarefa de convocarem os melhores pesquisadores de Harvard e Stanford e outros geneticistas com autoridade reconhecida na área, a fim de investigarem mutações no DNA e possíveis modos de reversão ao estado original.

Cuidadoso para não contrariar o bilionário de modo ríspido, o doutor advertiu-lhe que pesquisas científicas deste calibre costumam ser lentas e dispendiosas, poderiam arrastar-se por anos, com resultados incertos; e que seu caso requeria tratamento médico imediato. Gregor S. aceitou a orientação, deixando claro que prazo não seria obstáculo para ele, se houvesse esperança de bons resultados. Ficou decidido que se submeteria às terapias enquanto as pesquisas avançassem em paralelo e que para todos os efeitos apostaria as fichas que tivesse à mão.

Toda a operação foi encaminhada oficialmente pelo conglomerado farmacêutico que pertencia a seu fundo de investimentos. Ninguém além da família sabia do problema, com exceção de seu médico de confiança, que lhe atualizava em linguagem acessível e não técnica o andamento e os resultados preliminares das pesquisas. Aos demais, tudo permanecia em absoluto sigilo.

A condição anômala já durava dois meses. Por mais que fosse ainda respeitado e obedecido, e por mais que seu caso recebesse o melhor encaminhamento possível e fizesse sua parte, Gregor S. não estava muito confiante, no fundo. Não apenas revoltava-se intimamente contra seu infortúnio pessoal, por razões óbvias, mas amargurava-se com tudo o mais ao redor, com tudo alheio a si. Pela televisão, notava o quanto o mundo continuava em relativa ordem, perturbando-se apenas com banalidades corriqueiras nas localidades de sempre — principalmente no Terceiro Mundo — enquanto aquele mal inexplicável o castigava.

Inconformava-se com a rotina das demais pessoas, rotina da qual fora privado. Trivialidades nas quais antes sequer pensava, hoje faziam-lhe grande falta: banhar-se na sua hidromassagem após um dia extenuante, por exemplo. Desejava de volta até privilégios simples e acessíveis a todos, ricos e pobres, como caminhar ao ar livre ou molhar-se na chuva; e pensava nas pessoas normais que em geral eram mal-agradecidas e desprezavam a boa sorte que tinham, não sabiam viver.

Em certos momentos, indignava-o até sua pobre criada quando postava-se à entrada do aposento, sem entrar. Notava-a emagrecer ou engordar míseros gramas — seu sentido de inseto detectava alterações corporais facilmente, inclusive odores e sons imperceptíveis às pessoas comuns — e raciocinava como o metabolismo dela andava em perfeito funcionamento. Depois, zapeava no controle remoto da televisão e via o tempo todo gente a se lamuriar ou a agradecer por bobagens, sempre a mencionar “Deus”: curioso, era “Deus” o tempo todo, aqui, acolá; esse tal “Deus” que para si não passava de fantasia de religiosos e fanáticos. Desprezava tais superstições. Para ele, tudo não passava de crendice tola.

Se existisse de fato, talvez Deus fosse um titã que jogasse com a humanidade arbitrariamente, a seu bel-prazer; um enxadrista cósmico o qual, sabe-se lá por qual razão, decidira aplicar-lhe particularmente um xeque-mate. Detestou a religião dali em diante, a cristã em especial, a que mais aparecia na televisão. Era uma religião vulgar, sem mistérios, sem ritos secretos; sempre com suas culpas manipuladoras, suas penitências sem sentido e sua moral piegas para dominar crentes simplórios: a maior farsa da existência.

Caso seu estado metamórfico não revertesse a contento, Gregor Soros não teria mais nada a perder. Estaria disposto a tudo para vingar-se do destino que lhe aplicara, sem motivo aparente, um golpe cruel e covarde. Diferente de antes, porém, sua revolta difusa agora ganhava forma, conteúdo, e alvos bem definidos. Foi quando sentiu uma estranha satisfação percorrer-lhe a carapaça ao identificar seus novos grandes inimigos: a fé em Deus e a normalidade da vida.

*continua…

A metamorfoice
(parte 3)

A FIM DE não prolongar muito o relato e causar enfado, registre-se que Gregor Soros conseguiu driblar engenhosamente as dificuldades iniciais de adaptação ao seu novo aspecto repugnante. Mulher e filho, após o choque inicial e todas as reações correspondentes, por fim condoeram-se da situação. Passaram por fases alternadas de pavor, nojo, negação, raiva, desespero, mas enfim começavam a resignar-se. Gregor Soros construíra um núcleo familiar muito sólido, e este foi seu teste decisivo. Com ajuda do terapeuta de confiança da família — que tinha com eles há muito um contrato de absoluto sigilo e confidencialidade — ambos, esposa e filho, aos poucos aprendiam a lidar melhor com o problema e empenharam-se em buscar juntos a solução. O histórico familiar era favorável, o que os deixava esperançosos: inúmeros desafios foram superados até ali e certamente aquele não seria diferente.

Medidas de contingência foram tomadas a fim de preservar a privacidade familiar e evitar possíveis escândalos midiáticos: o departamento de relações públicas da holding, cuja diretoria fora orientada diretamente pela esposa de Gregor Soros, convenceu os acionistas e a imprensa, por meio das agências de notícia do grupo, de que ele despacharia de sua residência a partir de então. Comunicou que o investidor tivera um mau súbito, mas que estava tudo sob controle. Estava em ótimas mãos e cumpria apenas ordens médicas. O timing foi oportuno e preciso, pois até o momento nenhuma especulação ou suspeita fora levantada.

Os órgãos da grande mídia tocaram no assunto apenas por alto, especialmente porque, afinal de contas, o sr. Soros era ele mesmo um importante acionista daqueles impérios da comunicação. E as concorrentes, por sua vez, não queriam ficar mal com o bilionário e perder possíveis patrocínios. Todas as redações, portanto, estavam devidamente orientadas pela alta direção a não gerar qualquer sensacionalismo em torno do repentino “sumiço” — já que ele se ausentara de todos os compromissos naquela semana — e a não divulgar nada sem o consentimento prévio da família. Tudo foi acatado sem sobressaltos. Na pior das hipóteses, caso algum boato vazasse na internet, cumpria àqueles veículos valerem-se de sua credibilidade para desmenti-los um a um, tratando-os como meras teorias da conspiração. Ademais, o departamento jurídico estava atento e tomaria as medidas judiciais cabíveis, caso fosse necessário.

Parecia que as coisas andavam mesmo sob controle. Gregor Soros, entretanto, dividia-se entre o alívio que sentia por encontrar tais arranjos temporários e a inconformidade pelo seu infortúnio pessoal. Queria respostas. Como, perguntava-se, como diabos aquilo pôde acontecer? E porque justo a ele? Apesar do bom tratamento recebido pela família e pela obediente criadagem, e apesar de sua fortuna muito bem administrada não recuar um tostão sequer, ao contrário, aumentou e proporcionou alegria aos acionistas naquele trimestre, apesar disso tudo crescia em Gregor Soros uma revolta difusa, uma raiva amarga e uma angústia por entender que não merecia semelhante castigo.

Conversava com seu médico — e único confidente — a respeito de seu drama. Não era possível, inquiria, como não haveria nenhum caso parecido por aí? Decerto fosse alguma nova doença ou epidemia que desembarcara no país, como a AIDS nos anos 70. O dilema era que, para escarafunchar casos semelhantes mundo afora, cabia a ele dar o start. Seria o primeiro case, justo ele? Submeteria-se a testes científicos, uma ilustre cobaia, em laboratórios de que ele mesmo era um dos sócios? Impossível. Seria uma enorme temeridade. O segredo deveria manter-se a sete chaves, a qualquer preço.

Quando refletia com a fria racionalidade costumeira, Gregor Soros imaginava portar alguma anomalia rara em seu DNA, que alterara-lhe radicalmente o código genético. Em momentos de paranóia, porém, imaginava-se vítima de algum experimento científico secreto muito bem arquitetado por seus inimigos. Quem sabe envenenamento? Serviços secretos de certos países onde sua figura era indesejada eram peritos nisso. Puxava pela memória possíveis bebidas estranhas, almoços e jantares suspeitos, situações atípicas no passado recente. Buscava rostos e nomes, ciladas despercebidas e no entanto nada nem ninguém vinha-lhe à cabeça de que pudesse suspeitar. Como num quebra-cabeças incompleto, as peças do buraco em que se metera não se encaixavam de jeito nenhum.

*continua…

A metamorfoice
(parte 2)

GREGOR SOROS passou todo aquele dia enclausurado em seu aposento. Ele, que sempre tivera respostas rápidas para as situações mais complexas, não encontrava explicação para o acidente que lhe acometeu. À hora do desjejum, a criada chamou-o junto à porta, duas batidas leves: como não ouvisse resposta imediata, retirou-se, sabia que não devia importunar. Gregor S. não sentia fome naquele momento, sua aflição tirou-lhe todo o apetite.

Rastejava-se pelo quarto, de um lado para outro. Por sorte o ambiente era amplo, uma confortável suíte bem equipada que permitia a qualquer um passar muitas horas ali, aposento digno de um bilionário. Estava angustiado, com mil perguntas e preocupações atordoantes na cabeça: o que lhe sucedeu afinal de contas, como aquilo teria acontecido, como se adaptar à situação, se se tratava de um mal temporário, como driblar os executivos e sócios-investidores da holding se acaso perguntassem por ele, como dirimir os efeitos de um vexame absurdo; e em casa, como apresentar-se daquela maneira ao filho e à mulher quando voltassem da viagem à Grécia, o que dizer a ambos; claro, como ocultar o escândalo da imprensa e, principalmente, que medidas tomar rapidamente para reverter o quadro com o menor dano possível.

Após quatro horas remoendo e analisando alternativas, sentiu-se mais aliviado. Retornou-lhe o apetite. Felizmente, Gregor S. ainda conseguia falar, se bem que num fraco volume; a voz saía-lhe comprimida, vagamente metálica e distante, como se alguém lhe apertasse o pescoço quando em seu corpo humano original. Rastejou e equilibrou-se junto à porta, erguendo-se pelas patinhas que agarraram-se bem à parede. Conseguiu alcançar o interfone, e com muito custo empurrou o botão com sua cabecinha achatada e falou: deu ordem à criada que deixasse a comida na bandeja em frente à porta, que batesse três vezes, deixasse-a entreaberta e não perguntasse por ele. Bem treinada, a criada fez exatamente como ordenado, estranhando um pouco a princípio, mas deu de ombros instantes depois; afinal, aquela não foi a primeira vez que o patrão cometia extravagâncias inesperadas.

A operação saiu como calculado, o que deixou Gregor S. satisfeito. Talvez fosse um bom presságio. Talvez as coisas se reencaixassem aos poucos e tudo não passasse de uma crise momentânea. Então, usando a cabecinha, arrastou a bandeja para dentro do quarto e comeu, aos bocadinhos. A criada preparara o tradicional sanduíche de pastrami e o leite com mel de todas as tardes, de que ele tanto gostava. Mas a refeição não teve gosto absolutamente nenhum: tudo que lhe entrou pela boquinha ou seu equivalente teve uma consistência pastosa e insossa, semelhante a mastigar banha vegetal. Perdera o paladar. Pior, o bolo alimentar ingerido movia-se como algo vivo dentro de seu corpo, expandindo-o; ele sentia todo aquele movimento, como se a coisa adquirisse vida própria dentro de si. Não resistiu. Aos engulhos, expeliu o conteúdo ingerido junto ao canapé, e a expansão de sua estrutura corporal provocada pelo alimento causou-lhe dores e câimbras até tarde da noite.

*continua na parte 3

A metamorfoice
(parte 1)

NUMA MANHÃ, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Soros, também conhecido como George Samsa, encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado e marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual o negro edredon de seda chinesa deslizara ao chão, dada a falta de aderência de sua nova e asquerosa forma. Ante a visão surreal, ficou chocado; suas perninhas em vários pares mexiam-se incontrolavelmente, de uma forma bizarra e repugnante. “O que terá acontecido comigo?”, indagou-se, confuso. Ao mirar seu reflexo no enorme espelho veneziano da parede defronte, ficou estupefato com a aparência grotesca que assumira.

“É uma tragédia! Que horror!”, pensou. Estaria delirando? Seria um sonho dentro do sonho? Pois tivera pesadelos recorrentes nos últimos tempos, porém, com nada parecido. Permaneceu imobilizado na cama, sem saber em quê pensar, atônito, mudo. Dores agudas nunca sentidas percorriam-lhe o interior da carapaça rígida e oleosa, cuja estrutura mostrava-se lustrosa ao refletir a luz da janela.

“Mas… justo agora? Agora? I-isso é, é… horr-horrível”, gaguejou. Gregor S. tinha acessos de gagueira quando ficava tenso ou ansioso. Sua preocupação tinha motivo: caso aquilo fosse real e não um sonho trágico, podia tornar-se sua ruína, ele que acabara de sair na capa da última Forbes como o maior bilionário do mundo. Entrevistas coletivas estavam programadas. No dia seguinte seria entrevistado no mais prestigiado talk-show da televisão. Tornava-se a mais nova celebridade do mundo corporativo e não era por menos: naquela época haviam pouquíssimos bilionários no planeta, contavam-se todos nos dedos das mãos. E justamente ele tornava-se agora o maior de todos!

O que dizer? O que fazer? Seria uma desgraça, um escândalo monumental. As ações de suas companhias fatalmente desabariam se a notícia se espalhasse. Seus inimigos, que não eram poucos, teriam um trunfo espetacular nas mãos para levá-lo ao fracasso e eles não o poupariam de nenhuma maneira. Não era possível, só podia estar sonhando. Não podia, não podia ser real tudo aquilo!

*continua na parte 2