Manuel morreu

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Manuel morreu. Marcaram o velório no Cemitério da Capelinha, uma salinha desse tamanhinho. Quase não deu tempo de avisar a ninguém que o Manuel morreu, foi tudo às pressas, de ontem pra hoje. Infarto fulminante, puf, morreu.

Avisaram no trabalho do Manuel: “o Manuel morreu.” A menina disse “depois eu falo, tá todo mundo em reunião agora.” Ela cumpriu a promessa e disse depois da reunião: “Seu Juracy, o Manuel não vem hoje.” Ia completar que o Manuel morreu, mas o chefe não perguntou nada, só grunhiu e deu as costas.

Marcaram o enterro para as duas da tarde. O velório começou cedinho, às nove: estavam lá a mulher do Manuel e o filho do Manuel, um rapagão que trabalhava como Uber. Fora os dois esperavam o quê, umas três, quatro pessoas. A sobrinha do Manuel disse que ia, mas lembrou que tinha entrevista de emprego, disse que não ia não; mandou áudio avisando.

Deu nove, deu dez, deu onze da manhã. Uma tia do Manuel disse que vinha, mas mandou os sentimentos por aplicativo mesmo, até chorou. Tinha consulta no SUS, disse. “Se eu perder a consulta no SUS, é um custo remarcar. Demora meses na fila. Não posso ir, não.”

“Melhor enterrar logo, ninguém vai chegar mesmo”, disse a mulher ao filho, “vá chamar o pessoal do cemitério”.

Deu meio-dia. Uns carros começam a estacionar no pátio, um atrás do outro. Movimento repentino. Era cada carrão desse tamanho, parecia gente importante. Depois chega uma van daquelas bem chiques de hotel: sai um pessoal todo arrumado, umas senhoras grã-finas. Mais pessoas chegam, não param de chegar: jovens, adolescentes, uma gente com cara de alta sociedade. Surge um carro oficial que abre um clarão no pessoal: Ministro de Estado, disseram. A polícia escoltava.

Uma pequena multidão se forma na entrada do Cemitério da Capelinha. Estranhos param à entrada, curiosos se aproximam, uns fingem conhecer o morto, “que perda, meu Deus”. A polícia põe barricadas, organiza o local. Batedores desviam o trânsito, os ônibus se apertam por ruazinhas estreitas. A pequena multidão toma o cemitério, a rua, a praça em frente.

Conduzem o Ministro de Estado à viúva: “meus sentimentos; seu marido é um grande orgulho do país.”

“O Manuel, moço?”

A mulher estranha a fala e estranha o Ministro, não sabe quem é; este olha consternado o rosto do defunto enquanto os flashes disparam.

A mulher copia o Ministro e também olha o rosto lívido do morto. E não é que parecia em paz, o Manuel? A pele exibe um branco da paz.

De repente, um apresentador de televisão se aproxima da mulher, tonitruante:

“A senhora não imagina o quanto o Manuel me ajudou na hora mais difícil… tá filmando, Pereira? Vai de novo. Um, dois, três: a senhora não imagina o quanto o Manuel me ajudou na hora mais difícil…”

A mulher se espanta: ninguém menos que Carlinhos Moura em pessoa, bem ali diante dela. Ela não perdia um programa, o Domingo Show. “Seu Carlinhos? Ah, seu Carlinhos… o Manuel, o senhor precisava conhecer… ele ajudava muito o pessoal, sempre quando dava ele ajudava…”

A mulher queria a compaixão do apresentador; o apresentador queria as lágrimas da mulher. O cameraman buscava um bom close. Carlinhos Moura arrisca umas perguntas comoventes:

“Mas deixa eu perguntar para a senhora, eu sei a dor que a senhora sente: como foi conviver todos esses anos ao lado desse brasileiro tão querido, desse grande artista nacional?”

“O Manuel?… ah, ele era muito trabalhador, né? Muito honesto… bom pai…”

“Manuel Dias de Souza, Brasil. Um orgulho da pátria, um homem que abrilhantou nosso nome lá fora.” Carlinhos Moura passa o braço por sobre a mulher, como a ampará-la. Do outro lado do caixão, o cameraman força espaço com os ombros para captar o melhor ângulo. “A viúva está muito emocionada, Brasil. É visível. As palavras fogem numa hora dessas. Vamos entender esse momento tão delicado para ela.” O cameramanzoom no rosto da mulher. Depois, filma o caixão. O caboman aponta a luz fortíssima para o defunto, que parece branquíssimo, quase reluz.

“Pronto, deu? Vamos, vamos, Pereira.” Súbito, o apresentador se apressa. “Meus sentimentos!”, diz à viúva, sem olhá-la, esbarrando e abrindo espaço para sair.

A mulher mal entende o que houve e quase esquece do marido morto. O filho se aproxima: “eles vão enterrar daqui a pouco, mãe”.

Um grupo de meninas se aproxima com um livro em punho, todos de capa dura. Fazem selfies tristes com o caixão ao fundo, falam chorosas entre si. “Estou aqui ao lado do Manuel, gente. Adorava tanto o que ele escrevia, tudo, tudo…”, diz uma delas ao próprio smartphone. Faz uma live.

“Moça, meu pai trabalhava na contabilidade, viu? Analista contábil pleno!” Sávio tenta esclarecer as coisas, fica nervoso com a confusão.

“Não, ele é escritor, moço. Por que vocês não querem falar nisso?”

“Nossa, moça. Nada a ver. Tem algum engano aí.”

Sávio vai ao funcionário do cemitério confirmar se havia outro defunto velando no Capelinha. Tinha uma coisa errada, só podia ser, o pessoal trocou de velório? Manuel tem um monte por aí, vai ver é de outro Manuel que elas falavam.

O grupo das senhoras grã-finas muito empoadas se aproximam do caixão. Adentra a sala um cheiro de patchuli e laquê. Cada uma trazia um livro “A Outra Margem do Rio Azul”. De óculos escuros e penteado à Sophia Loren, uma delas se dirige à viúva: “mês passado nós lemos o livro dele em nosso clube de leitura, bem. Nossa Mãe! Que sensibilidade a desse homem, que jeito lindo de falar com as pessoas. Viemos dar nosso último adeus ao Manuel Dias, que grande escritor.”

Manuel Dias. Não é que o nome batia mesmo? A viúva descobria um fato sobre seu marido bem naquela hora. Como pode? Ela deixa o cordão de isolamento perto do caixão e procura um repórter que chegava ali atrás, um repórter bonito que ela reconheceu, um que sempre aparecia no jornal antes da novela.


“Seu marido é um escritor premiado, reconhecido. Ele tem dois livros traduzidos no estrangeiro”


“Ei, moço! Eu sou viúva do Manuel. O senhor sabe que história é essa de livro que todo mundo fala? Meu marido tinha algum livro, por acaso?”

“Sério? A senhora está brincando?”, diz o repórter, espantado. Esquece que fala com a viúva do morto. “Desculpe, com todo o respeito, seu marido é um escritor premiado, reconhecido. Ele tem dois livros traduzidos no estrangeiro. ‘A Outra Margem do Rio Azul’ foi indicado ao International Booker Prize desse ano.”

“Prais?”

‘Booker Prize’. É um prêmio oferecido na Inglaterra. Todo ano tem. O vencedor leva 50 mil libras pela premiação. É uma das maiores honrarias receber um prêmio desses.”

Sávio escuta junto à mãe, está meio confuso. Cabisbaixa, sem entender nada de nada, a mulher se sente fora de uma área importante da vida do marido. Como nunca soube uma coisa daquela? Livro, prêmio? Que esquisito, ela não sabia dizer se aquilo era importante, mas parece que sim, só podia ser. Tanta gente chique ali não era à toa… até o Carlinhos Moura apareceu, gente! Mas todos os dias o Manuel não saía pontualmente às seis da manhã, voltava às sete da noite, ia à contabilidade do Seu Juracy todo santo dia? Anos e anos assim. Escrever livro, que doidice é essa? Ela só sabia do escritório de segunda a sexta no horário comercial.

O repórter nota a mulher meio catatônica, mirando o vazio. Interrompe: “mas a senhora não sabia que seu marido era escritor? Ele nunca disse nada à senhora?”, inconforma-se.

“Não, nunca.”

“Mas a senhora nunca perguntou?”

“Não, eu não! Eu nem sei dessas coisas de livro, aí. Não vou muito atrás disso, não.”

“Mas a senhora já viu ele escrever num caderninho, digitar no computador?”

“Tem um computador lá em casa, sim. Ele ficava digitando. Achei que era coisa do trabalho dele, da contabilidade, né?”

“Mas ele tinha livros, lia alguma coisa?”

“Ler ele lia, sempre lia, eu achava que era mania dele. Ele juntava uma tralha assim, um monte de livro velho nojento. Ele botava tudo numas caixas que eu pedi pra ele guardar.”

“E o que ele dizia sobre os livros?”

“Ele dizia ‘tá, Nicinha, vou guardar’. Depois, ficava calado. Eu também nem perguntava mais nada, né?”

“Devia ser material de trabalho dele… a senhora nunca se interessou por nada que ele escrevia, nunca olhou nada?”

“Não. Nunca.”

“Meu Deus…”, o repórter mal acredita no que ouve. Indiferente, a mulher volta à sala, fica junto ao caixão.

Sávio dá um cutucão na mãe e aponta: “pronto, já vão enterrar.”

Tampam a abertura. Um soldado do corpo de bombeiros se aproxima e desdobra uma bandeira nacional acetinada sobre o caixão. Os flashes disparam. A pequena multidão acena, faz a última despedida.

O féretro desce por uma ruela até o túmulo. Todos muito comovidos, alguns com o livro em punho, outros junto ao peito, todos de óculos escuros. Lá embaixo, quando o caixão finalmente baixa à cova, todos aplaudem efusivamente. Dona Nice imita o gesto e aplaude fraquinho. O filho Sávio aplaude muito forte e atrasado.

Caixão depositado, os presentes dão as condolências à pequena família. Um a um vão deixando o local, lentamente.

Quando os últimos presentes sobem a ruela de volta, Sávio dá um cutucão na mãe.

“Vixe, o que foi, Sávio?”

“Mãe, que negócio é esse de livro do pai?”

“Sei lá, Sávio. Não entendo nada disso, não.”

“Mas esse prêmio que o homem do jornal falou pra senhora? Eu ouvi bem direitinho, viu? Ó, se der dinheiro mesmo, vou querer a metade.”


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 40 (16/2/2025)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O Revolucionário
Fator Z

Tempo de leitura: 17 minutos

1

Quando ouviu a assertiva do doutor Norton, o professor Zarzur mal acreditou em seus ouvidos: “ouçam o que digo, senhores. Em dez anos, todos comerão fezes humanas.” O cientista pronunciou a frase uma vez, mas ela ressoou três vezes na cabeça de Zarzur, girou como um papel que rodopia ao vento.

Não só Zarzur, mas toda a comissão ficou estupefata. Aquilo soava repugnante além de absurdo. Mais, era também uma piada de mau gosto e pueril, típica de criancinhas na fase anal freudiana, totalmente imprópria para um cientista tão renomado como Norton.

Ora, quem em sã consciência comeria fezes? Ia frontalmente contra a natureza humana. Foi o que disse Zarzur ao engenheiro social, depois de levantar o braço com inquietação. Incomodado por ser interrompido no início da apresentação, Norton o atende, irritado:

— Natureza humana, caro Zarzur? Defina natureza humana. Sei de natureza, ponto. O que é você agora, um carola libanês? —  riu com desdém.

Não precisava ofender. Agora Norton dava-se ao deboche? Presunçoso, via-se no direito de tocar na recente conversão do velho professor e desgastar uma amizade de décadas, em nome da ascensão na carreira? O ego de Norton parecia-se àqueles balões de ar quente que precisam livrar-se dos sacos de areia para subir ao céu. Zarzur era um daqueles sacos, agora.

Quanto a Norton, o renomado cientista não saía das páginas dos jornais e estúdios de televisão; gabava-se de sua recente indicação ao Nobel, depois de ter sido laureado pela Royal Society de Londres no ano passado. Estava no auge, com efeito. Não obstante, sua resposta revelava uma empáfia lamentável. Não havia motivo para impostar a voz nem fazer pose num ambiente restrito, diante de pares tão preparados quanto ele — embora sem a mesma projeção pública, é verdade — como se estivesse diante das câmeras e de uma audiência em nível nacional.

“Comer fezes”. A frase era de um ridículo evidente. Não que Zarzur fosse algum naïve ou pudico, muito menos santo; sabia dos experimentos que ele mesmo fizera no passado e aliás lembrava-se como outrora empolgara um jovem Norton, ao explicar-lhe os meandros da mente humana, na época como ambicioso orientando. Zarzur ensinara a um sardento Norton como o comportamento podia ser programável, “embora nunca na totalidade”, o professor frisava bem este detalhe importante.

O próprio Zarzur tivera sua fase arrojada no início. Flertara com a inconsequência natural dos visionários, a qual pode ocorrer com muita facilidade, em particular na engenharia social. Hoje em dia, porém, era um ícone, consagrado e reverenciado pelos pares; contudo, sua cabeleira branquinha em roda da lustrosa calva não permitia nutrir as mesmas ilusões e ousadias de outrora. A idade conferiu-lhe certo pudor, um comedimento típico dos velhos, de modo que mantinha uma reserva ante as limitações da ciência psicológica e de tudo o mais que o homem descobre e implementa. Apesar dos êxitos, ele sempre apelava à cautela dos alunos.

Quanto a Norton, mesmo homem maduro atirava-se com ímpeto; portava-se como alguém cujo momento de brilhar chegou. Não por acaso: popstar da ciência, vivia na mídia e desfiava suas ideias com oratória convincente. Tinha carisma além de tudo e sabia ganhar a atenção da audiência leiga; treinara tanto nisso de oratória e expressão corporal que seus gestos se internalizaram, viraram hábito; apresentava-se como um mágico, como quem traz um ás na manga. O cientista dominava cada etapa dos processos que arquitetava, como um software elegantemente programado.

Embora não declarasse abertamente, pretendia-se um gênio no campo da engenharia social. Ambicionava ser o grande nome da matéria no século 21 como Kurt Lewin o foi no século 20. Sentia ser o homem certo para levar seu ramo de conhecimento a um novo patamar, e a comissão do Nobel parecia reconhecer isso ao indicá-lo. Era com tal segurança que falava agora aos interlocutores:

— Ora, engenharia social é uma questão de apertar os botões certos. E hoje, senhores, as oportunidades estão dadas: não há mais a religiosidade carcomida a atrapalhar nosso caminho. Há umas caricaturas de religião no máximo, mas que atrapalham nada ou muito pouco: digamos que elas aderem ao gosto da freguesia pois dependem dela. Ocidentais aceitam absolutamente tudo hoje em dia; estranham mesmo as tradições, sobretudo as religiosas.

Norton abaixa o rosto e leva a mão à boca, de repente. Suspira e ergue o queixo:

— Perdoem o riso, senhores; eu mesmo me espanto com os progressos que fizemos em poucas décadas. Pois se antes tínhamos de contar com mentes raras e geniais — aponta a Zarzur — hoje já contamos com a inteligência artificial. Vide os algoritmos das redes sociais: mapeiam gosto e consumo sem um único dedo humano a interferir no processo. A pessoa é induzida por um vetor binário e responde por um gatilho inconsciente. Notam a oportunidade, por que os chamei aqui? Cada um de nós temos talento e competência suficientes para desencadear o processo mais uma vez.

Doutor Norton prossegue em seu preâmbulo:

— Com efeito, nunca se tenta reprogramar uma Índia, uma Arábia ou uma China. Seria estúpido gastar energia e dinheiro — pois tudo neste mundo custa muita energia e dinheiro — em culturas tão milenares quanto arraigadas. Daí que nem se tenta. Mas quem precisa de orientais se há o Tio Sam tão individualista ou a Europa cada vez mais ateia e pós-cristã? Os países ocidentais são imensos recipientes esvaziados, senhores, sempre prontos para novos preenchimentos sucessivos e invisíveis. Quanto aos satélites na periferia do Ocidente, ora essa… são servis e ridiculamente suscetíveis, terreno fértil para toda sorte de experimentos. A América Latina é uma planta frágil e sem raiz que qualquer golpe de ar arrasta.

A plateia ouve sem esboçar reação. Norton adotava um tom acima do ponto, era notório. Se bem que nem tudo fosse vaidade. O cientista explicava as motivações profissionais e responsabilidades, como é praxe em toda a discreta ciência da engenharia sociocomportamental, conforme a designação técnica. Engenheiros sociais tem muitas satisfações a prestar, sobretudo a quem paga.

— Mudar modos de pensar e, em decorrência disso, o modo de viver de sociedades inteiras, é perfeitamente possível no Ocidente, de há muito. Todos aqui sabem como há seitas dedicadas a mudar os hábitos do séquito a ponto de levá-lo a cometer absurdos em nome da crença. Então, o que a ciência do comportamento faz é estudar, catalogar e apropriar-se de determinadas técnicas de estímulo e resposta extraídas dali, como o químico sintetiza o fármaco da exótica planta tropical. Mas antes de entrar no projeto propriamente, quero ouvir o professor Zarzur a quem fiz questão de convidar. Vamos recebê-lo com uma salva de palmas. Bem-vindo, mestre!

A plateia levanta-se para aplaudir a Ibrahim Zarzur, que levanta-se da poltrona com vagar e vai circunspecto ao tablado, lento e escrupuloso, como se ponderasse o que irá dizer.

— Passo a palavra ao senhor, mestre. Vamos escutá-lo, como nos velhos tempos. — Norton emprega o nível correto para não colocar-se abaixo do veterano em seu próprio show. O velho entende; ajusta o microfone e pigarreia levemente, espera o burburinho encerrar. Faz um gesto mudo de agradecimento.

— Agradeço o convite e as palavras gentis, doutor Norton. Olhe para vocês, meus amigos: que saudade… saudade dessa universidade, desse anfiteatro; saudade de cada sala, cada laboratório, cada corredor. Há vinte anos não venho aqui. Bem… não tenho nada de muito especial a dizer, caro Norton. Suponho que veremos aqui mais um trabalho brilhante, como é costume de sua parte. Perdoe a inquietação que tive ao ouvi-lo no início e que gerou minha interrupção. É que sua assertiva me chocou um pouco, devo admitir. Coisa de velho, talvez; coisa da idade.

Risos discretos na plateia. Zarzur continua:

— Me perguntei como o doutor convenceria as pessoas disso, pois dizer a frase comer fezes repele de imediato. Não questiono sua capacidade, longe disso, mas a fala me soa tragicômica, com todo o respeito. Um disparate pode minar a credibilidade de uma vida de trabalho e comprometer reputação, carreira, coisas pelas quais sei que zela muito bem. O senhor será um prêmio Nobel dentro de alguns dias, tudo indica. Ser tachado de maluco uma hora dessas? Arriscar-se num projeto estapafúrdio? Adoraria saber como tem considerado isso.

Harold Norton mal escuta o mestre e prende um bocejo de tédio. Assombra-se como o provecto Ibrahim Zarzur, uma mente privilegiada e brilhante, se mostrava agora incapaz de entender o mecanismo transformador e modelador de comportamentos. Justo ele? Os anos prejudicaram sua capacidade? Embora brilhante em tempos passados, o bom Zarzur nunca vendeu muito bem sua imagem. Sempre esteve nos bastidores e desprezava o marketing pessoal, em que pese o termo não existir naqueles tempos. De todo modo, Zarzur elaborava seus estudos eficientíssimos e contentava-se em manter o anonimato, oculto nos laboratórios e gabinetes.

Enquanto mal ouve o mestre a discorrer, Norton lembrou-se quando este escreveu a giz, pela primeira vez, um curioso termo no quadro negro: “soberba andrógina”. Depois, discreto com aqueles enormes óculos quadrados, explicou candidamente aos alunos: “O homossexo existe desde o alvorecer dos tempos: abrange de Alexandre Magno a nosso Rock Hudson. Logo, a modalidade pertence ao terreno da natureza”, disse o mestre. “ Mas soberba, notem bem, uma nova categoria mental e social chamada ‘soberba andrógina’, isso nós criaremos, bem aqui”.

Aquilo foi no mestrado, em 1974.

2

Foi uma bela aula, aquela: Norton lembra até hoje. A lembrança de Woodstock estava fresca na memória dos estudantes. Quando o professor apresentou a novidade todos riram, mesmo dois assumidíssimos da turma. O jovem Harold Norton, não; ele entendeu, enxergou o mesmo que Zarzur e entusiasmou-se no íntimo.

Pois não aconteceu de fato? Voilà: hoje é termo corrente na boca de governantes, consta em leis e jurisprudências, está nos budgets das corporações; é tópico obrigatório nas cerimônias do Oscar e, o mais importante, chega aos lares mais suburbanos. Tornou-se natural como o alvorecer. Então, o que era tudo aquilo diante do que propunha agora? Ora, ingerir excremento humano —  substância perfeitamente orgânica e natural —  não seria nada demais, nada de tão grave; apenas mais um passo dentre tantos. Chegava a ofender tamanha ingenuidade num tarimbado engenheiro social.

— Lamento ser o chato da festa, mas tudo tem limite, Norton — disse Zarzur, arqueando as sobrancelhas esbranquiçadas. — Perdoe me estender, mas nada do que fiz no passado humilhou ninguém. Houve um contexto, uma conjuntura. O Ocidente vinha do Holocausto, Deus do céu! Havia um excesso de testosterona dominante e furiosa no mundo, desordenada desde a Primeira Guerra e sucedida em poucos anos pela Segunda Guerra. Não fosse suficiente, surge a Guerra Fria e a ameaça nuclear aterroriza a humanidade. Aquela sequência dos diabos precisava ser parada, desmontada por dentro ou a humanidade estaria liquidada. Não foi algo romântico de se fazer. Foi uma medida necessária como toda decisão difícil. Assumo, orgulhei-me de minha obra. Mas isso durou até meados da década de 90, ainda na docência, quando vi as coisas frutificarem sozinhas na tevê e sem depender de mim. Vi meu próprio corpo teorético a vagar sem pai nem autor identificável. Ocorre que hoje, quando meu neto de treze anos exige que o chame de minhe nete, sob pena de magoar-lhe os sentimentos de gênero; quando me pede que o acompanhe a lojas da MAC para fazer compras e gravar seu videolog de maquilagem, vejo minha própria obra voltar-se contra mim. Dói-me saber que a coisa saiu de controle, sem chance de reversão. Jamais pretendi isso, Norton. Jamais quis mal à humanidade. Quis apenas um mundo melhor, mais justo e pacífico, nada mais. Por ora é o que tenho a dizer, senhores. Obrigado.

Zarzur termina a participação de modo melancólico e retorna ao lugar. É aplaudido timidamente. Norton tenta manter o ânimo do evento:

— Importante depoimento, caro Zarzur. Respeitamos seu desabafo e o compreendemos — dirige-se à plateia, de modo a evitar a comoção e o consequente deslocamento do show; emenda:

— Não vamos entrar em detalhes de ordem pessoal ou familiar. Questão de ética profissional. Depois, minha proposta é mais modesta e, como as do professor, muito necessária. Bem, senhores. Creio que é preciso detalhar o projeto, enfim. Os slides passarão nessa enorme tela aqui em cima, mas antes peço licença para pegar um humilde livrinho, bem ali.

Norton vai à mesinha de apoio com ar misterioso. Bate com a sola do sapato no tablado de um jeito dramático. Da prateleira do púlpito retira um voluminho surrado, de não mais que duzentas páginas. Mostra a capa aos presentes:

— Alguns amigos da velha guarda vão lembrar. Apenas 1.500 exemplares, para um círculo restritíssimo. Um deles é meu, exatamente este, devidamente autografado na folha de rosto. Veem? O título, inesquecível: “Fator Z: Engenharia Comportamental e Controle Social nas Democracias”. Ano de publicação, 1967; autor, um certo Ibrahim Saad Zarzur. Lembra-se professor? — o velho acena positivo com a cabeça. Norton fala num tom superior, com respeito de par e não de aluno:

— Os colegas conhecem bem a obra, mas há muitos jovens cientistas aqui, alguns muito emocionados por estarem na presença da lenda que é nosso estimado Professor Z. Natural. Rapazes, vocês não viram nada: permita-me ler o prefácio da obra, uma pérola inigualável que me arrebatou desde o início, quando ainda não passava de um nerd sardento e de aparelho nos dentes. Graças a este livrinho estou aqui hoje. Lerei o curto prefácio e será nada entediante, garanto.

3

Bem, aqui diz:

“Há muito Freud demonstrara que a natureza humana, este termo vago de que falavam os escolásticos, na verdade era psique: uma espécie de massa maleável, programável em cada ser humano. Não fosse assim, nenhum de nós seríamos educados por nossos pais nem adquiriríamos os costumes que eles nos legam e que carregamos ao longo da vida: costumes e hábitos que não nascem conosco, mas são assimilados e se tornam nosso modo de ser, ver e agir no mundo.

Do pioneiro austríaco para cá, a ciência psicológica evoluiu absurdamente. Vivo fosse, Freud se orgulharia de um Skinner, celebraria um Lewin, reverenciaria um Festinger. Até seu sobrinho Ed Bernays, do qual, consta, o tio sempre julgara um poltrão e veja: cada maldita empresa passa-se por honesta e até benquista graças ao sujeito, tido e havido como pai das relações públicas, técnica que, sabe-se, não passa de logro e empulhação conveniente.

Modelar comportamentos constitui a melhor medida a ser adotada nas democracias, sustento neste livro. Dizemos genericamente país ou nação, mas a exacerbação das identidades nacionais levou a tiranias genocidas neste século, resta provado. Assim, se a democracia é o melhor antídoto contra a tirania, há algo dentro da democracia que é preciso governar: a maneira do ser individual. A identidade singularíssima, isto é, distinta de indivíduo a indivíduo, é o melhor remédio para manter o regime democrático como único guarda-chuva a proteger-nos das intempéries do chauvinismo e do fanatismo nacionalista.

Dessa forma, é preciso singularizar até o último fio de cabelo de cada pessoa, distinguir uns dos outros até o limite, de modo a tornar a excentricidade o único padrão aceitável em si mesmo. Deve-se disseminar o desejo social de padronizar o não-ter-padrão. Neste “Fator Z”, proponho uma nova regra, que não substitua a anterior por força de lei; antes, promova um caudal de novas posturas e modos de viver, aspergidos diuturnamente via propaganda e comunicação social, de modo que a única característica similar entre as pessoas seja a única remanescente, qual seja, a humanidade enquanto tal.

Na prática, é preciso substituir a moral majoritária que enseja as disputas nacionais; é preciso fragmentar em pequeninos pedaços atitudes uniformes e tidas como aceitáveis nas comunidades renitentes; ao mesmo tempo, envergonhar toda reação contrária a essa mesma fragmentação. É preciso constranger os nostálgicos, desprovê-los de fibra, bani-los do convívio humano sadio e fazê-los temer a oposição ao padrão não-padrão. Assim, será considerado cidadão sadio e democrático aquele que transitar entre as múltiplas singularidades sem fixar-se em nenhuma delas como modelo, e os opostos se coadunarem somente pela via da civilidade, celebrando a diferença radical (ainda que incômoda, no fundo), ou silenciando-se, por coerção social e econômica. No limite, é preciso levar a aceitação irrestrita de todos os modos de vida, não importa que posturas ética ou estética apresentem. Então, criaremos a Outra Moral, a moral nova e definitiva das democracias: o Fator Z.

Críticos poderiam objetar, compreensivelmente: tal reprogramação comportamental não levaria à anarquia e ao caos social? De pronto, a resposta é não: a democracia é um regime não somente de leis, mas sobretudo de inúmeros regramentos não-escritos e coerções sutis, sobretudo as de ordem econômica. Com efeito, se não for possível eliminar todos os padrões conservadores de valores e pensamentos, será possível manter certa estrutura inescapável de controle superior sem rosto e nome, algo contingente e difuso, para que a represa não se rompa e o vilarejo não inunde: essa estrutura de controle será a própria economia e as ditas regras de mercado.

Todos precisamos comprar, vender, comer, morar, vestir etc. Por isso, precisamos todos submetermo-nos a certas regras que as relações econômicas se nos impõem. Então, se me perguntam qual a maior preservadora de consciências diante da fragmentação comportamental proposta nesta obra; se me indagam o que poderá controlar os impulsos mais agressivos e violentos, ou a licenciosidade mais irrefreada e contraproducente à sociedade, eu lhes respondo: é a economia de mercado e seu sistema subjetivo de punições e recompensas. E isso basta.

A fragmentação comportamental se dará na transformação do prazer em nova moral: o imoral de hoje será o decente de amanhã, como se decente fosse; e o prazer pelo prazer, o hedonismo liberto de culpas religiosas e compromissos tradicionais proporcionará uma tal elasticidade moral que a tudo incorporará e desencorajará de antemão a disputa, o embate, a luta discursiva. Nesta democracia moderna que se coloca, a testosterona combativa será a maior inimiga da boa governança.

Daí que é preciso manipular vontades, disseminar os novos valores em dois polos, um afirmativo e positivo e outro negativo: no positivo, mostrar como a nova modalidade comportamental é a melhor, a mais feliz, a mais desejável e aprazível; no negativo, inculcar nos refratários que resistir ao novo modo de viver será inútil, já que inevitável. Trabalharemos com os jovens nesse sentido, e eles formarão assim as gerações seguintes, sob nova mentalidade.

Por fim, sabemos como o ser humano tem a capacidade de se adaptar a tudo. Toda mudança repentina precisa ser operada primeiro na massa mais maleável. O animal abatido é aberto pela barriga, onde não há ossos nem tendões, apenas pele, gordura e carne, substâncias maleáveis: a lâmina entra e percorre macia, operando o que precisa. Por isso, começaremos pelos grupos mais frágeis e deslocados, pelos insatisfeitos sem voz na sociedade. Os atuais comandados e tutelados comandarão e tutelarão o futuro. Diremos como sofrem opressão e proporemos que assumam a liderança discursiva, a vanguarda, que tornem todo formal em lúdico, todo grave em sensível, todo varonil em feminil.

Não sei que homens teremos a partir daí. Mas sei que eles não buscarão a guerra, mas a conciliação, não por subjugação externa mas pela própria consciência, como se fossem eternos garotos de nove anos com medo de desagradar as mães. Toda mulher será essa mãe e todo homem será esse filho. A ser assim, não haverá mais embates, pois não haverá mais qualquer desejo masculino de guerrear para conquistar, mas uma disposição feminina inserida no masculino para a conciliação perpétua. O Fator Z veio para salvar a democracia ocidental para sempre.”

— Isso foi publicado em 1967. Fenomenal, não, senhores? De novo, peço uma salva de palmas para nosso brilhante professor Zarzur.

4

— Certo, permitam-me detalhar o projeto. Os slides vão passar aqui em cima. Bem, a matriz alimentar da humanidade precisa ser remodelada, como todos bem sabem. No plano alimentar, o que há de mais moderno e sustentável é o veganismo, que a princípio parece uma boa ideia, mas sabemos como a agricultura consome terra e água em larguíssima escala. Consumir vegetais e minerais não interrompe a contento o aquecimento global nem o extrativismo das fontes naturais, pelo contrário. No plano geopolítico, não podemos desprezar o inesperado: quando falávamos em ecologia na Rio’92, ninguém contava com o fenômeno China, que hoje, sozinha, responde por um sexto do consumo mundial de alimentos e recursos naturais.

Eis o que proponho: a reciclagem alimentar a partir das fezes humanas. Vemos aqui as opções de alimentos processados a partir de excremento: hambúrgueres, pães, sorvetes, do básico ao delicatessen; pode-se fazer de ensopados nutritivos a biscoitos recheados, numa gama que vai do gourmet ao caseiro, do industrial ao artesanal. Neste slide, vemos soluções inclusive para food service e gastronomia profissional, tudo com excelente durabilidade e custo reduzido; nesta versão doce, vemos creme sabor avelã para crianças desenvolvido a partir das fezes. Na versão desidratada, o excremento pode ser usado como tempero de pratos salgados ou como confeito para doces. Aqui temos croutons para salada, entre muitas outras opções e variedades, como os senhores podem ver nesta foto.

De repente, um jovem levanta a mão na plateia. Norton o deixa de braço erguido por um minuto, antes de deixar-lhe falar.

— Ahn, pois não, diga.

— Obrigado, professor. Todas essas imagens realmente são impressionantes, e ninguém diria que a matéria-prima é, bem… — o jovem disfarça um engulho — cocô humano. Imagino que essa informação constará nas embalagens, é óbvio. Concordo com o professor Zarzur, como se dará esse convencimento das pessoas? Eu nem teria coragem de falar disso com algum conhecido.

Norton ri sardonicamente. Diz, com ar professoral:

— Meu jovem colega, não me entenda mal. Vou explicar como se falasse a um menino de 16 anos com tênis sujos e mochila encardida, tudo bem? Lembre-se do que lemos há pouco, o Fator Z. Aplicaremos o Fator Z. Por isso temos a honra de ter aqui, presente, o criador da técnica que é um verdadeiro trunfo da engenharia sociocomportamental. Foi baseado na sua obra, cujo prefácio li há instantes, que tenho a solução para introduzir lenta, gradual e eficientemente a Coprofagia Voluntário-Induzida, CV-I. Eis a designação técnica. Você me dá oportunidade para passar à etapa de implementação, no próximo slide. Acompanhe-me: em primeiro lugar, trabalharemos no longo prazo. Um termo cansado, com efeito. Na prática, nosso horizonte temporal de implementação abrange uma década e meia. Descreverei as etapas. Tudo segue a clássica estratégia do Fator Z.

Doutor Norton pigarreia levemente e toma um gole d’água. Retoma:

— Primeiro, colocaremos a hipótese na mesa da forma mais chocante, repulsiva e absurda. Esperamos as reações todas, as censuras, as incompreensões refratárias e até a violência, que é sempre relativamente pouca. É um preço a pagar: mesmo a reação violenta, como ensina o professor Zarzur em seu Fator Z, é benéfica, pois faz nascer por si mesma a aceitação de outro lado. A aceitação virá por serenas explicações e diálogos preliminares, e a isso chamamos “estimular o debate”, diremos “por que isso incomoda tanto?” e coisas assim. Acuadas, as mentalidades se veem obrigadas a negociar. Chegada a etapa de negociação, o campo está aberto: mostramos que a aversão precisa ser mitigada e diluída mediante sugestões aceitáveis, emparelhadas às normalidades da vida. O absurdo deixa de ser absurdo quando colocado em pé de igualdade com outras situações comumente aceitas. Fazemos uma diluição nas percepções, entende? Adota-se o tripé certo, errado, certo, como o professor Zarzur ensina na obra: concorda-se com A, discorda-se de B, concorda-se com C. Quem discordar de A+B+C in totum será o maluco, o ignorante, o atrasado etc. Depois, nossas fundações mantenedoras patrocinarão espaços de prestígio na mídia, atrairemos vozes influentes; faremos summits com especialistas e trataremos da problemática alimentar com autoridades renomadas e agentes representativos da sociedade. Forjaremos a necessidade: traremos à baila diversos estudos e evidências científicas ad hoc, dando ao público dito esclarecido o que ele busca, ou seja, a verdade comprovada pela ciência. A imprensa faz o resto, meu jovem: nenhum jornalista de prestígio quer estar fora da vanguarda, da modernidade. Estar fora do costume é algo humilhante, é como estar fora do jogo. Respondido?

— Sim, obrigado — responde o rapaz, como se pensasse em mais vinte dúvidas que o espicaçam mas não consegue elaborar.

— Continuemos — Norton retoma. — Depois fabricaremos iguarias finas de nossos alimentos de base excrementícia e faremos eventos promocionais de pompa, com modernidade e elegância. Criaremos um movimento positivo e de afirmação, contrataremos personalidades de proa para o endorsement, alimentaremos o interesse e criaremos desejo. São as etapas naturais de toda propaganda que se preza. Iniciamos os testes de divulgação da CV-I a partir do próximo ano, ainda em caráter beta.

5

Dez anos se passam. Na Quinta Avenida, os passantes comemoram o tradicional réveillon nova-iorquino. Acima de todas as cabeças, telas e displays gigantescos fazem a contagem regressiva: 5, 4, 3, 2, 1. Feliz Ano Novo! Todos se abraçam e confraternizam, enquanto no alto, um espetáculo de fogos multicores simboliza a nova fase de alegria e esperança. Patrocina o evento com exclusividade a gigante alimentícia NeoVita e seu snack de sucesso internacional Pooplez. Todos recebem o petisco orgânico e o experimentam com satisfação, crianças, jovens e adultos.

O programa mais assistido da televisão americana é a sensação Feeding with Biofood, apresentado pela famosa chef e ativista alimentar Ruby Shyman. Ela introduz a alimentação CV-I nas escolas americanas. Na tela, exibe-se um sortimento de fricassês, quiches, cupcakes e snacks de encher os olhos, e que fazem a alegria das crianças e adolescentes. Os pais dos alunos aprovam a iniciativa e experimentam os quitutes, conscientes e satisfeitos, sem qualquer preconceito. Uma nova etapa da alimentação humana chega, enfim: é o que o reality show demonstra ao mundo todo, via cabo e streaming.

*

A exatos 800 quilômetros de Nova York, um senhor septuagenário adentra em sua cabana. É inverno e neva intenso lá fora. O homem traz um feixe de lenha, de uma madeira especialmente aromática que provém de uma árvore específica da região. Anoitece. Dentro, a luz da lareira torna o clima propício e intimista. Ali está o homem e sua noiva. Ambos se abraçam e se aconchegam ternamente diante da lenha a crepitar.

O homem é o prêmio Nobel Harold Norton. Acompanha-o a bela Helen, ex-aluna, vinte e três anos mais jovem. Desfrutam de um momento a dois. Laureado com o prêmio da academia sueca há uma década, Norton aposentara-se de vez. Mudou para os alpes, e hoje dedica-se a administrar os investimentos e a escrever as memórias, sem qualquer pressa. Além do que, a noiva causa em Norton o mesmo efeito que ocorre a qualquer homem mais velho ao relacionar-se com uma bela jovem: seu coração se rejuvenesce.

Parece ter voltado duas décadas no relógio da vida o laureado doutor. Oh, estava mesmo feliz o velho Norton: tinha uma doce vida de prazeres inofensivos e hobbies bem escolhidos que preenchiam os seus dias, livre de qualquer pressão externa ou responsabilidade mais séria. Não é para outra coisa que um homem trabalha por toda a vida, afinal.

— Vou preparar um chá, meu amor. Ligue a tevê, se quiser.

— Claro, querido — concorda Helen, sentada em cima da perna no amplo estofado.

Norton prepara um chá de maçã orgânica e canela. O cheiro adocicado preenche o ambiente. Enquanto serve a noiva, o âncora do telejornal chama a atenção:

“Ativistas pelos direitos alimentares protestam na capital colombiana: exigem a universalização da bioalimentação CV-I aos países do Terceiro Mundo. Confira na reportagem.”

Na enorme tela, vê-se que os ativistas protestam em frente à sede do Ministério da Agricultura em Bogotá, exigindo os mesmos direitos bioalimentares do Primeiro Mundo: “o corpo alimenta o corpo” diziam os cartazes, “o corpo faz, o corpo come”, gritavam. Todos estão com rostos pintados com o próprio bioalimento produzido em seus corpos para representar a causa da Coprofagia Voluntário-Induzida.

Depois, no estúdio da tevê, acadêmicos e ativistas debatem; âncoras explicam os benefícios efetivos da CV-I ao planeta; asseguram como esta não veio para substituir a alimentação regular, mas para somar-se ao esforço global na luta contra a desnutrição e o extrativismo de recursos naturais. Em seguida, reportagens apontam as vantagens dessa nova modalidade alimentícia, com depoimentos de renomados médicos e especialistas.

Helen assiste a tudo enquanto assopra o chá quente. Norton olha fixo a televisão.

Ela pega o controle remoto ao lado. Antes de zapear, não resiste fazer um comentário:

— Que gente louca, não é, meu amor?  Essa gente sabe que CV-I é comer merda? Eles exigem isso! — meneia a cabeça e ri, inconformada.

— Pura loucura, querida. — Norton sorri e sorve o chá, sem dizer mais.

Helen recosta em seu peito e suspira. Olha-o desde baixo e pergunta:

— Eu jamais teria coragem de comer um negócio desses. E você?

— Eu? Não, o que é isso… pura insanidade. Esse mundo está cada vez mais louco.

Helen beija o noivo acaloradamente. Norton desliga a tevê.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O relojoeiro

Tempo de leitura: 17 minutos

1


NAQUELE DIA, COMO TODOS OS DIAS, o relojoeiro postou-se diante da portinha de aço e abaixou-se com dificuldade. Puxou a chave correta do molho atado ao passador da calça e rápido a inseriu no cadeado de chão, girou, abriu. O ritual matutino escondia a dificuldade recente de agachar-se, compensada pelo gesto preciso e metódico, quase reverencial: desperdiçar movimentos era um luxo a que o relojoeiro não se dava mais, pois uma hérnia pressionava-lhe o cóccix ultimamente, de modo que o agachamento dava-se de modo cuidadoso para não travar a coluna.

Desde rapazinho o relojoeiro internalizara a máxima do velho pai, passado há três décadas: a de que na vida tudo pede jeito e força, muito mais jeito que força, o velho frisava. Ele aplicava o ensinamento paterno ao abrir cada relógio, a fim de reparar os mecanismos que garantiam o controle do tempo.

Seus modos também continham esse controle temporal nas mínimas coisas, e ele, como os relógios da relojoaria, portava-se com precisão, de modo que agora, na abertura da loja, o trinco abre suave e sem resistência ante o giro harmônico da chave. Nas mãos do relojoeiro, encaixe e movimento obedecem exatamente à regra para a qual foram projetados, em perfeita sincronia: a máquina como extensão do corpo.

Há seis décadas tudo começara. O entorno e as circunstâncias da cidade mudaram muito de lá para cá. Não obstante, por longos anos a relojoaria representou uma ilha de estabilidade em meio às transformações da metrópole. Ali, na Galeria Novo Século, há décadas confinado em horário comercial, o relojoeiro não testemunhou a passagem dos tempos lá fora, não acompanhou o acúmulo das novidades, o caráter das novas gerações nem a troca dos costumes.

Durante muito tempo, tudo parecia fixo e permanente na relojoaria. No entanto, tudo mudava lá fora: a entonação das vozes, os sotaques e as fisionomias diferentes que a cada dia aportavam na cidade. Enquanto isso, tudo igual no lado de dentro: o balcão em madeira de lei, a estreita vitrine, o cheiro característico do ambiente, a disposição das mercadorias: tudo igual. Lá fora, o tempo corria impiedoso e veloz: o centro da cidade tornava-se um revezar frenético de itinerantes, e se antes as transformações ocorriam de década em década, agora tudo virava outro cenário e situação em poucos meses.

Jurandir chamava-se o relojoeiro. Punha-se em pé agora, e, com a dificuldade dos anos, empurra acima a porta de aço. Olha num relance a vitrine: tudo ali. Nenhum sinal de arrombamento. A luzinha do alarme pisca vermelha no canto inferior, muda e preventiva.

Tinha gosto pelo ofício de vender e consertar relógios. Sacerdotal, no silêncio da oficina nos fundos, aprendera não só a reparar mas a respeitar as engrenagens e pecinhas dos relógios. Deus sabe a satisfação que tinha ao terminar os consertos, lacrar a tampa traseira, reorganizar no lugar certo as minúsculas ferramentas para mãos precisas, e ouvir de novo o tique-taque sutil, a passagem rítmica dos ponteiros. Então, naquele breve instante tudo se reordenava: um triunfo sobre o descontrole e a desordem.

Devagar o ofício incorporou-se ao homem. Jurandir internalizou o rito intrínseco da profissão, de unir exatidão à arte, perícia à beleza. Muitos que passavam diariamente pela galeria o conheciam, e sentiam de modo reconfortante que, afinal, não importam que intempéries desabassem ou que ventos tirassem as coisas de lugar, tudo voltava ao local adequado, à certeza e ao controle calmo, patentes na rotina do relojoeiro.

No início, quando ainda aprendiz do pai e os suspensórios escorregavam nos ombrinhos, a vida urbana pedia fregueses uma formalidade apropriada. Os acessórios realçavam a postura e os bons modos dos cidadãos, e os relógios faziam parte da indumentária: usá-los indicava o bom alvitre do cavalheiro e a elegância da dama. Sempre havia na loja um modelo adequado à estampa que cada um queria projetar. Damas e cavalheiros namoravam os modelos na vitrine, por dias; decididos, entravam no estabelecimento para experimentar o tipo escolhido, não sem antes cumprimentar ao jovem Jurandir, agora dono após o falecimento do pai, como mandavam a educação e a civilidade.

A Galeria Novo Século era reconhecida pela boa frequência, de gente sofisticada sem ser esnobe; pois não eram necessariamente ricos que passavam por ali. Os relógios, as joias e semijoias que Jurandir vendia, não só as alianças dos casais mas também os anéis, colares, cordões e pingentes certificados, tudo aquilo não se destinava à frivolidade, mas representavam algo além: materializavam o mérito, a recompensa a quem trabalhava dignamente. De resto, se os fregueses fossem melhor remunerados que os demais, aquilo justificava-se: seus ofícios requeriam um volume maior de estudos, preparos e leituras que permitiam o ganho e reclamavam por um galardão. Dourados e brilhantes não simbolizavam somente distinção, mas incentivavam o esforço.

Assim, a relojoaria tornou-se um pequeno marco no centro, por décadas a fio. Ver Jurandir ali, de segunda a sábado sempre no mesmo horário, dava ao passante a sensação de constância e estabilidade. Todos prometiam-se comprar um mimo dali nalgum dia, para presentear a si ou ao ente querido. Gerações frequentavam a relojoaria, pais, filhos e netos. A expressão serena do proprietário atestava a tradição, até que a fronteira do século 20 para o 21 foi finalmente atravessada.

2

O século 21. No centro da cidade, o barulho caótico impera: vendedores ambulantes esbravejam ofertas, as lojas berram pechinchas em microfones como uns desesperados. Palavrões de populares misturam-se às músicas obscenas dos marreteiros, voam como flechas no ar. Na avenida principal, sirenes de polícia se fazem ouvir cada vez mais. Perto da galeria, o bem vestir, o bem falar, a graça feminina e a cortesia masculina, tudo isso extingue-se, escasseia-se até a inexistência.

Na Galeria Novo Século, a vida sempre se manteve intacta a despeito da lenta decadência do centro. Por longos períodos foi assim. Hoje, não mais: as lojas vizinhas à relojoaria — a tabacaria, o sebo, o café, a perfumaria, a ótica, a alfaiataria, a loja de bolsas e carteiras — enfim, todos os comerciantes vizinhos comentavam entre si, lamentosos: como tudo mudou! E, diante da evidência, restava apenas concordar, não sem a sensação amarga da perda e da impotência ante a brutalidade dos tempos que chegam avassaladores.

Quem domina, a quem obedece o tempo? O hoje dá as costas ao ontem, e o mesmo fará o amanhã ao hoje, sem cerimônia. O novo século impõe-se, abrupto; cai como pedra na cidade. A paz urbana sempre foi uma criança frágil e vulnerável, e haverá sempre perturbações a dificultá-la, provocadas ou espontâneas — principalmente as primeiras. O século chegara à galeria, também. Clientes somem e lojas fecham; companheiros de lida do relojoeiro vão-se: ora do comércio, ora do mundo. No lugar, brota a gente ignara, que pouco liga aos referenciais de até há pouco.

A antiga freguesia ninguém sabe onde foi parar. A galeria recebe forasteiros desdenhosos, rústicos sem respeito pela história, sem conduta adequada: umas expressões embrutecidas, uns portes grosseiros, sem trato. A língua-mãe é maltratada com expressões cada vez mais chulas, e a comunicação se dá aos gritalhões e gargalhadas. Chegam também uns estrangeiros com ar tribal, Deus sabe de onde, a falar entre si por dialetos de enigma, de todo alheios à cultura que os recebe e acolhe.

E os antigos senhores que procuravam por maletas executivas na loja ao lado? Onde estão? Os frequentadores do café, a gente boa de papo à hora do almoço? Onde foram as moças bem trajadas das agências de turismo, elegantes e perfumadas, num tempo em que perfumes franceses era artigo raro deste lado do Atlântico? E quanto às damas com penteados trabalhados, que, a despeito dos decotes e insinuações ressaltados, a grossa aliança no dedo indicava, sobranceira entre anéis e pulseiras, sou uma mulher casada?

Não eram tempos tão inocentes aqueles, certamente não; mas havia um jogo sutil que combinava charme e recato, seriedade e beleza — como os relógios. Os relógios são assim: inovam, mas não perdem a essência. Mas agora, o encanto urbano inexiste: tudo se corrompe, os bons somem sem deixar rastro, levados por um turbilhão.

Jurandir mantinha-se na Novo Século como podia, por hábito e escrúpulo, pois, pensava, “homem deve manter a postura apesar de tudo”. Não era fácil. A relojoaria recebia agora a visita de uma repentina malta que ignorava elementos essenciais da boa educação: não diziam um por favor, com licença, bom dia, boa tarde, o senhor poderia me informar — essas trivialidades corteses. Andavam esbaforidas para lá e cá, como quem rouba um cavalo na estrada. Seus cheiros também lembravam ladrões de cavalos. E falavam como se falassem ao cavalo roubado.

Perguntam pelo preço de qualquer coisa por estalo na relojoaria, sem ciência alguma, não compram, jamais compram nada, comprar o quê, se mal se vestem, se mal comem? Olham a vitrine com uns olhos vidrados, como se vissem naves alienígenas em miniatura. Jurandir nota um curioso da vez a embaçar o vidro da vitrine com respiração ofegante, e lá de dentro suspira em desânimo. Espanta-se com aquelas caras — é indecoroso dizer — um tanto idiotas. Os fulanos perguntam o nome das marcas que estão gravadas bem à frente, e não sabem ler ou não se dão ao trabalho, e o relojoeiro faz as vezes de professor. E depois, nada. Compravam nada.

Pois no novo século ninguém liga para mais nada. Ninguém percebe o valor de ser honrado e respeitável. Ninguém sabe o que é ser pai de duas filhas bem-educadas com cada centavo ganho no labor de anos a fio. Ninguém sabe como é casar uma com um médico e estabelecer a outra no Primeiro Mundo, em Roma, casada com um engenheiro bem-sucedido. Ora, essa gente sabe nem de si mesma. Roubariam, se pudessem? Claro que sim. Mesmo sem ler um simples nome no visor de um relógio, roubariam. Gostam de tudo apenas porque brilha, atraem-se pelo coruscar, como moscas à luz. E em reação àquilo têm uns reflexos corporais, uns cacoetes, uns tiques, zero elaboração.

Fossem só os nativos… Jurandir lembra que a velha alfaiataria fechou e, depois de pendurarem uma placa de alugar durante meses, abriram ali uma casa de câmbio. Que coisa. Mal a inauguram, e para lá acorrem uns tribais que desprezam nosso idioma. Postam-se em frente, um magote deles, e conversam ugabugas com vozes cavas. Ocupam o entorno do chafariz principal da galeria, os bancos charmosos onde outrora sentavam-se as atendentes das lojas nos intervalos. Quase ninguém passa mais ali. Não há um policialzinho para dar uma espiada de leve, uma olhadinha só, custa nada. A polícia não existe quando se precisa dela.

De repente, um tribal alto e magricela posta-se em frente à relojoaria. Olha fixo desde fora. Jurandir estranha cá dentro. Que quer o sujeito? Repara o movimento? Estuda a rotina, quem é o dono, a que horas se vai? O relojoeiro coça a cabeça, intrigado. Logo chega um igual, um tipo robusto, diz sei-lá-o-quê e ambos se vão. Com o sobrolho cerrado, ele deixa o balcão e vai olhar, cauteloso: ambos se juntam ao magote da casa de câmbio. Todos têm smartphones gigantescos e telefonam a deus-sabe-quem naqueles dialetos. Coisa esquisita.

Dia seguinte, igual: lá está o sujeito a olhar e olhar. E assim prossegue a semana inteira: olhar fixo do magricela, chegada posterior do robusto; saem, juntam-se ao magote da casa de câmbio, telefonam e telefonam. Ora, é evidente, planejam um assalto. Cadê a polícia? Nem aparece, esquece dali. Os sujeitos notaram a facilidade, é óbvio.

*

Naquela manhã em que Jurandir se abaixou com cuidado e retirou a chave correta para abrir a relojoaria, eram sete e meia da manhã em ponto. Ele sempre foi um dos primeiros a abrir o estabelecimento na Novo Século. Levanta-se com dificuldade, ergue a porta e olha a vitrine, quando uma voz surge atrás de si, quente à sua nuca: siô!

Jurandir vira-se assustadiço, e vê um grande turbante de chita amarelo-girassol. Uma mulher, toda revestida do mesmo amarelo. “Agora é uma mulher tribal, Deus do céu.” Disse aquele siô a Jurandir, e aponta um relógio da loja que mal abria.

Jurandir não se conforma: olha só quem o aborda. Inacreditável. O novo século chega a ele pessoalmente. A galeria acabou de vez. Não bastassem as várias placas de imobiliária perfiladas: tabacaria, alfaiataria, sebo, loja de artigos de couro. Tudo fechado: aluga-se, vende-se, passa-se o ponto. Tudo deles agora, sem medo, sem polícia. Devem estar confortáveis com tanto apoio e facilidade. Apenas sete e meia da manhã, e logo quem aparece?

A mulher do turbante girassol não vai. Não arreda pé, espera a resposta. Jurandir fala um preço de cabeça, seco, nem olha o adesivo na vitrine. Mal a encara. De reflexo, nota apenas o amarelo-girassol em alto contraste, um borrão. Aliás, por que ela mesma não vê o preço na etiqueta? Não sabe ler? Como uma criatura chega num país estrangeiro sem saber o mínimo do idioma? Informada, a mulher se vai, muda. Não agradece.

3

Chega correspondência de Roma. A filha de Jurandir manda uma carta com cartões-postais mais três fotos das netinhas. Uma delas escreve com letrinhas tortas e desenhos coloridos, “a nonno Jura, con affetto, Anna.” É a mais velha, recém-alfabetizada. Jurandir ri sozinho, os olhos rasos d’água. Que graça de netinhas, que meninas lindas. Nas fotos, vê-se que são felizes, saudáveis, sorriem como quem tem nada para se preocupar.

Ah, a Itália… Jurandir iria a Roma muito em breve. Sonhava com isso. Mas não passaria vergonha com o idioma: sem ninguém saber, ele adquirira um guia de conversação em italiano. E tem lido devagarinho um livro italiano, de Pirandello, que achou no sebo. Também lê Zagor em italiano, que a filha enviava pelo correio. Treinava frases para quando fosse a Roma visitar a filha e as netinhas, ambas de olhinhos verdes e cachinhos de mel, com umas sardinhas no rosto que eram um charme só.

Comovido, guarda a correspondência no envelope com cuidado para não estragar os selos. Imagina a futura viagem e vê cenas na cabeça, quando, lá fora, ressurge o magricela tribal de novo. “Desgraçado!”, Jurandir xinga em pensamento. O figura olha e olha. Desconcertado, o relojoeiro aperta a mandíbula, nega-se a aceitar aquilo. “Não só quer assaltar, mas intimida, afronta. A qualquer momento vem a surpresa.” Pouco depois chega o companheiro corpulento e ambos se vão.

Jurandir passa as mãos na cabeça. “Meu Deus do céu… olha pra mim, minha postura, meus cabelos brancos. Sempre tive boa reputação… não combino com essa gente. O que fazem aqui? Por que me ameaçam? Sou honesto, nunca errei um troco nem roubei ninguém. Nunca vou atrás de rabo de saia, mesmo sendo viúvo. Tenho duas filhas bem casadas, uma com um médico e outra com engenheiro, em Roma. Cadê o respeito?”

— Rispetto! — Jurandir vai à fachada e diz alto a palavra em italiano, sem dar por isso. — Rispetto! — brada de novo ao magote pouco acima, com o punho cerrado. E retorna ao balcão, arfando.

Respeito. Quem não o tem, conquista. O relojoeiro era pacato? Sim, sempre foi. Mas bobo, nunca. Ninguém planejaria um assalto assim, com a maior tranqüilidade, encarando sua loja com marra e abuso, como se o dono fosse nada, como se nada pudesse e se assustasse com cara feia. Fica lá o sujeito intimidando, dia após dia, como se dissesse te cuida, vovô ou coisa parecida? Deixe estar. Jurandir sabe se cuidar, ah, como sabe. “Ele vai ver só”, garante.

O relojoeiro nunca deixa de cumprir um dever, sobretudo de consciência. “Não vai ser fácil assim, não, tribal. São quarenta anos de relojoaria e não quarenta dias.” No fundo, porém, sente-se mal por desgastar-se com aquilo. Perder a calma e a paz de espírito era o que mais detestava.

Noutra manhã surge de novo a mulher do turbante, logo cedo. “Eles se revezam, é isso”. Está num vermelho-fogo, em forte contraste. Entra na loja aos sacolejos. Mira um relógio que a bem da verdade nem era dos mais caros, e pergunta, direto, sem cerimônia: quan-quié-pufavô?

O relojoeiro informa o preço, ríspido. Ela diz ubigadu e sai. “Que figura… ela tem algo com o sujeito mal-encarado? Tudo muito estranho. Pelo menos agradeceu.” Mas Jurandir tomará alguma providência, não é possível ficar assim. Chegou a hora, não pode esperar mais. Questão de honra. Tudo no seu lugar, com sua ordem, sua função. Vale para os relógios e para a vida: tudo tem um porquê, cada peça corresponde a outra; tudo tem uma lógica que faz a vida girar. E ao defeito, conserta-se.

4

Segunda-feira. Um perfume feminino adentra a relojoaria. Súbito, a memória de Jurandir viaja: lembra uma das mulheres das agências de turismo lá dos anos oitenta. O velho século volta doce e cítrico agora, relembrando gente agradável e decente da antiga galeria. Que saudade… de repente ele se lembra de uma delas pela fragrância, uma em especial que, olha… ele ficou muito balançado certa vez. Aconteceu sem querer. Se a esposa soubesse à época… Nossa Senhora, aquilo foi uma loucura…

Foi um dos dias mais emocionantes na vida de Jurandir. A mulher deixara um relógio suíço de bracelete, uma raridade. Ela precisava consertar um dos elos e não imaginava que Jurandir pudesse fazê-lo. Mas, que mulher… o relojoeiro lembra como se fosse hoje: alta sem exagero, com maçãs do rosto salientes e nariz esculpido a cinzel, um desenho perfeito. Ela o olhava direto nos olhos, sem se intimidar, olhar firme e penetrante de quem sabe o que quer.

Bonita e marcante. Jurandir sentiu o baque, pra valer. Há mulheres assim, cientes de seu poder sobre os homens. E ela era astuta; falava com voz de sereia, para agradá-lo e obter o melhor dele. Embora forte, aquele olhar tinha uma doçura de fundo, um quê de menina meiga. Parecia haver uma fonte de amores sob aqueles olhos cor de mar.

A mulher era curvilínea, generosa onde interessava, e as madeixas louras onduladas recaíam num busto sarapintado, farto e imponente, duas conchas sob os bojos do vestido. Abaixo, os quadris sinuosos inspiravam volúpia e respeito ao mesmo tempo, respeito pela pura substância feminina. Uma fêmea primordial, sem dúvida, de onde a feminilidade partia. Puro instinto, doce fúria.

Ao receber o relógio-bracelete, dourado e impecável, a mulher o experimenta. Estende o belo braço desnudo no vestido estampado. O relojoeiro tremelica de alto a baixo, palpita e disfarça. Ele nunca esqueceu o que ela disse, algo que, pela primeira e única vez, fez Jurandir perceber que era um homem, um ser humano real com sangue nas veias, e não somente um tipo funcional, um mero consertador. Ela disse, melíflua: você é um homem raro. Imagine! Ele, raro! Ninguém jamais disse isso a Jurandir. Ele nunca ousou pensar uma coisa dessas. Quando ela se vai — ele lembra até hoje — vira-se e o olha de modo prolongado, como se dissesse “deixe tudo e venha comigo.” Que mulher era aquela?

E se ele fosse? — Jurandir se pergunta desde então. Sua vida jamais seria a mesma, certamente. Mas na hora ele não foi: pessoas muito corretas não agarram certas oportunidades na vida, o excesso de escrúpulo atrapalha. Diante de chances que duram segundos elas não sabem como agir. E tais chances nunca mais ocorrem.

Aqueles olhos o chamaram e ele não foi. Tinha ela, além dos atributos físicos, um sobrenome italiano que ele anotara no certificado de garantia. Devia ser uma primeira descendência ítalo-brasileira, os traços não negavam. E talvez ele estivesse na Itália com ela hoje em dia, há uns bons anos, muito antes da filha. Quem sabe… Jurandir suspira fundo e vai conferir quem passou na galeria com aquele perfume. Quem seria? Tenta encontrar, mas já foi. Não pôde ver.

5

Dia seguinte, o sujeito olhando. “Maldito marginal. Não há mais o que confirmar, esperar. Esperar o quê? Ele apontar uma arma na minha cara e anunciar o assalto? Os outros lá do bando, aqueles defronte à loja de câmbio lhe dão cobertura, daí a confiança do bandido. Domínio territorial, é isso. Querem mostrar quem é que manda, agora. Não… não, senhor.”

Agora, o relojoeiro daria o troco. Sua história estava ali, a história de seu pai estava ali. Há dias o sujeito ameaça, afronta, intimida? Jurandir fará algo por si. Ele que experimente, o meliante não perde por esperar. Preparado, ele poderá encará-lo e não ficar ali encolhido, envolto na penumbra da loja como se tivesse medo. Sairia com convicção e enfrentaria o patife à altura, como quem diz “tenta a sorte, vagabundo”. Ele não lembra onde — faz muito tempo — mas lera em algum lugar que o simples fato de erguer os ombros, olhar de frente e mostrar confiança cria no oponente uma dúvida, uma hesitação. O elemento entende que ali pode haver um perigo e muda de alvo.

Na semana seguinte, nada do sujeito. Justo agora que Jurandir está preparado, oh, sim: tem à mão todas as ferramentas do ofício, guardadas na estreita gaveta abaixo do caixa, e mais outra ferramenta, a do dever, da honra e da ordem.

“Incrível como eles sabem, eles percebem. O meliante fareja a ameaça e some. O magote ali em cima disfarça com aquelas grossas correntes, telefonam a ninguém naquela língua, ao diabo, vai ver. Mas o sujeito que me encara, cadê? Cadê a parceira de turbante? Sumiram? Eles estão juntos, suspeitam de algo. O comparsa grandalhão os avisou, deve ser o chefe. Eles vão retaliar. Não posso baixar a guarda, agora.”

O relojoeiro está preparado. Aquilo foi longe demais, mas agora ele pode se defender. Lembra o que o pai dizia, nas raras vezes em que o velho quebrava o silêncio na oficina: cada ferramenta no lugar; usou, volta pro lugar; toda ferramenta tem nome e função; jeito e força, cada uma pede jeito e força; às vezes, mais jeito que força. Às vezes, mais força que jeito.

“Certo, pai”, diz, em voz alta, como se o velho estivesse presente. As ferramentas estão organizadas, limpas e ordenadas, como o pai ensinava. Todas para a hora certa e a tarefa certa.

*

Era uma quinta-feira, e Jurandir põe os óculos a meio nariz: conserta um relógio difícil naquele dia chuvoso. Dia de chuva é péssimo para o comércio de rua, ninguém passa. Na Galeria Novo Século, com calçadinhas elevadas, um regato se forma na ruela central e escorre pelas pedras portuguesas em direção à rua lá fora, onde impera o inferno de gritos e ruídos e palavrões. Há tempos Jurandir não caminha mais ali. Aquilo virou um circo de malucos. Aqui na galeria, sem fregueses por causa da chuva, ele termina o difícil reparo e separa o item consertado, à espera do cliente. Depois, pega o Zagor: uma nova edição chegou via correio. Diverte-se com o herói e já entende tudo que lê. Está afiado no italiano. A viagem a Roma está marcada, aliás: ano que vem, no outono de lá: nem tão frio, nem tão quente. “Ano que vem, se Deus quiser. Tudo marcadinho.”

Lá fora escurece em pleno dia. Troveja e relampeja, e os grossos pingos d’água tiritam no piso. Jurandir lê o fumetti com os óculos atados pela correntinha atrás do pescoço. Distrai-se enquanto a água escorre galeria abaixo. Eis que surge um vulto em frente à relojoaria, todo encharcado: o magricela tribal.

Jurandir se assusta, mas recobra a vigilância. Tenso, tenta raciocinar friamente, domina-se. O tribal ensaia um passo e hesita um pouco. Quer se aproximar, parece. É hoje. Devagar, Jurandir abre a gaveta sob o balcão, silencioso, oculto. Repousa a mão na ferramenta certa, para a hora certa e o serviço certo. É hoje.

É hoje: o sujeito dá um passo e se aproxima. Leva a mão ao bolso. Três tiros. Queda.

6

Na chuvarada, ninguém ouve os estampidos. Jurandir tem o braço direito paralisado e teso, empunhando o Taurus calibre 38, cano curto, aço polido e reluzente. Três tiros no peito do sujeito que veio assaltá-lo. “Na hora certa! Legítima defesa, legítima defesa”, pensa, eletrizado. “Era ele ou eu, ele ou eu. Invasão de propriedade, legítima defesa. Ferramenta certa. Mais jeito que força.”

Logo chega o sujeito robusto e vê o companheiro caído. Desespera-se, urra umas linguagens quando vê a arma empunhada e não ousa entrar. Circula o chafariz defronte e some. “Vai, desgraçado, foge. Aqui, não.”

Minutos depois, chegam dois policiais. “Agora eles aparecem?”, pensa Jurandir. Os policiais estão com o tribal corpulento. No novo século, a polícia muda de lado. Só ver a televisão: o errado é certo, o certo é errado; o rabo abana o cachorro; tudo invertido. Proteger o homem honrado, quem protege? Ninguém, nem a polícia. Direito, só para bandidos. É o mal do novo século. A gente que tem que se defender.

— Fica aí, senhor. — diz o primeiro policial, com a mão espalmada.

Jurandir está com as mãos ao alto, como nos filmes, embora o policial não ordenasse aquilo. O oficial empunha sua pistola para o chão, entre o balcão e o morto, que é revistado por um segundo policial abaixado.

— E isto aqui? — o policial abaixado tira um volume qualquer do bolso onde o tribal pusera a mão, em seu último movimento. O agente se levanta e deposita o item no balcão.

— Um relógio. Era daqui, senhor? De sua loja?

O segundo policial abre a caixinha. Há uma nota fiscal toda dobrada. Abre e lê: CompraOnline.com. Coloca no balcão a caixinha aberta com o relógio e a nota fiscal, interrogativo. Jurandir nota algo. Seu sangue congela.

— Sem bateria. Não tem bateria. Ele queria trocar a bateria do relógio! Eu matei um inocente? Eu… matei? Meu Deus do céu! — sussurra, incrédulo. Senta-se no banco junto ao balcão, leva as mãos à cabeça abaixada, chora-não-chora. Suas pernas tremem. Levanta-se novamente e estende os punhos. Diz, trêmulo:

— O senhor me prenda, eu matei esse homem. Cometi um assassinato! Eu matei! — Jurandir esmurra o peito num mea-culpa, para aplacar a angústia. — Fui eu, policial! Me entrego.

— Fica calmo, senhor! — diz o primeiro policial, ainda sem guardar a arma — Vamos para a delegacia e o corpo fica aqui para a perícia. Fica calmo, se acalma.

— Os senhores podem me prender logo, não vou mentir. Fui eu que matei ele, cometi um assassinato. Vou pagar pelo meu crime. Podem me levar, agora.

— Vamos, o senhor nos acompanhe por gentileza à delegacia.

— Tudo bem — levanta-se o relojoeiro, esfregando as mãos nos olhos, ainda atrás do balcão — preciso trancar a loja e podemos ir. Vou pagar tudo que devo à justiça. Assumo tudo na frente do juiz. Eu matei um inocente, meu Deus do céu… meu Deus do céu…

— Não, o senhor vem com a gente para a delegacia. Outra viatura vai chegar e olhar a loja pro senhor.

— Não, eu preciso fechar a loja. Não, não… eles vão entrar aqui, vão roubar tudo, aquele bando que fica no acima do chafariz, aquele bando em frente à casa de câmbio. Eles vão se vingar, acabar com tudo aqui.

O policial se enerva. Dá nova ordem, mas Jurandir insiste em fechar a loja, baixar a porta primeiro. Sugere arrastar o corpo para fora e aguardar tudo na calçada, cobrir com um pano ou algo do tipo, debate. Não entende que a loja agora era cena de um crime. O policial perde a paciência e aponta a arma ao relojoeiro, para convencê-lo de vez.

— Sai agora, senhor! Sai, vamos logo!

— Sem trancar a loja?

— Sem trancar a loja. Já, anda!

Quatro décadas com ele, duas com o pai. Um homem honrado, que cumpre o dever de consciência. Que amou a esposa até o fim, resistiu à tentação daquela outra; que casou bem as filhas e tinha duas lindas netinhas. Que sonhava ir à Itália e aprendia o idioma para isso. Tudo graças à relojoaria da Galeria Novo Século.

Rispetto!

— O que o senhor disse?

“Não sem a loja”, Jurandir pensa, num segundo. Discreto, puxa o Taurus calibre 38, cano curto, aço polido, em direção à têmpora direita.

Um disparo.

O policial abate Jurandir com o braço a meio caminho. Ele tomba sentado no banco, de olhos abertos, com a arma perfeitamente empunhada na mão direita.

Mais jeito que força.

*

No dia seguinte, a porta de aço está abaixada. Em frente, o robusto amigo do homem assassinado monta guarda em frente à relojoaria.

— Não deixa nenhum curioso por aqui, ouviu? Qualquer coisa, me avise pelo rádio — diz o síndico da Galeria Novo Século.

Sissiô! — diz o estrangeiro corpulento, obediente. Era o novo vigilante contratado pela administração da galeria.

Dali a pouco, chega a mulher de turbante e túnica, num verde cítrico muito contrastante. Diz ao vigia e conterrâneo:

— Cadê o siô? Vai abrí a lojá? Vim comprá relojô. Agora eu tem dinheiro todo, ó.

A mulher abre a bolsa candidamente e mostra ao conterrâneo as cédulas novinhas em folha, recém-sacadas na casa de câmbio: todas bem enfileiradas na carteira.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/08/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Dona Tuca
e o homem tóxico

Tempo de leitura: 10 minutos

1

Manhã de sábado. Paulino Eiras de França Júnior se senta no sofá com um suco de laranja numa mão e um misto-quente que acaba de tirar da sanduicheira na outra. Ele gostava de tomar seu café da manhã assim, relaxado, de moletom velho e chinelo, na sala do apartamento de dois dormitórios que financiara em 30 anos pelo sfh e para o qual mudara-se há sete meses. Ele liga a televisão de 50 polegadas da qual ainda pagava as prestações — dividira tudo em 24 vezes no cartão de crédito — e procura algo para assistir.

Enquanto zapeia no controle remoto, França dá uma olhada panorâmica pela sala: mira o lustre chinês da salinha de jantar, bonitinho; depois olha o roda-teto de gesso — agora ele tinha uma sala com gesso no teto — , num estilo branquinho tradicional que contrastava bem com o azul-gelo suvinil das paredes, e arrematado pelo visual das portas brancas dos dormitórios. Incrível: nem custou tão caro tudo aquilo, mas mesmo assim o aspecto novinho do acabamento lembrava vagamente uma casa de classe média americana, igual a dos filmes, padrão que no seu entender representava o melhor do conforto e bem-estar doméstico.

França sentia-se orgulhoso de sua conquista recente, o belo apezinho; conquista não apenas sua, mas também da esposa, Edivânia Lucilene de França, no momento grávida de cinco meses e que infelizmente não pôde acompanhá-lo naquele café da manhã, pois estava no plantão de vendas da construtora onde trabalhava. Hoje era o dia do grande feirão imobiliário, e tudo indicava que ela conseguiria fechar uns bons negócios nesse final de semana; afinal, martelaram a campanha durante toda a semana no ShopMix, canal 19 UHF. Ah, com certeza. Daria tudo certo, em nome de Jesus.

Sem opção para assistir na tevê, França vai ao mesmo canal líder de sempre; o canal líder de sempre era aquele que se sobressaía em qualidade de todos os demais na tevê aberta. Os outros canais só exibiam programas de uma igreja evangélica diferente daquela que o casal frequentava ou reclames de panela antiaderente; tinha também o canal educativo do governo, que passava um jornal com voz abafada, sempre a falar da floresta e a mostrar uns índios tristes. Vai ver era por isso que o canal líder era o mais assistido do Brasil: a ruindade e o tédio dos outros canais praticamente garantiam uma reserva de mercado para aquela emissora.

Pois no canal líder de sempre exibem uma roda de debate, França percebe: está lá uma moça com uma soberba cabeleira que irradiava em todas as direções, e uma senhora branquinha, mais ou menos idosa, vestida com uma informal túnica de linho que destoava de sua expressão aristocrática; por último, um rapaz franzino com barba por fazer que, a julgar pelo tom e os trejeitos, devia jogar no time B da masculinidade.

O fato é que Paulino Eiras de França Júnior parou para ver aquela roda de conversa do show matinal, cujo cenário exibia uma rusticidade gourmet e despojamento chique; uma decoração pensada para quem não liga tanto para o luxo e valoriza o que realmente importa, muito além do dinheiro. Sentados em cadeiras de vime, os três debatedores falam de feminismo, lgbteísmo, racismo, machismo e vários ismos que a mídia tanto fala mas que ninguém dá a mínima no ponto de ônibus.

Parece que a moça do cabelo farto presidia lá uma ONG instituto zuma, zemba, mamba — França não ouviu muito bem; o rapaz diz ser ator e que acabava de chegar da Holanda; viera ao Brasil com o marido holandês para adotar três crianças bem brasileiras, disse; quanto à senhora distinta com roupa humilde, França ficou surpreso ao saber: era ninguém menos que a dona do mesmo banco no qual ele trabalhava como bancário, há cinco anos, exatamente na agência 3702 dígito 9, no Jardim Marialva, bem em frente à Praça do Relógio. Sim, aquela era a dona do banco Tupy, em pessoa. Ela se chama Antonina Seráfico, ou Tuca para os íntimos. Apelido simpático. Ao dar-se conta disso, França presta mais atenção nela, enquanto morde o misto-quente mais uma vez e estica o queijo à frente da boca. Aproveita a oportunidade para ver a fisionomia daquela que afinal era sua patroa, embora ela não soubesse. Que bacana… então foi ela quem carimbou sua carteira profissional?

Naquele momento, o assunto abordado era “homem tóxico”, a tarja informava na parte inferior da tela. A ativista da ONG desabafa como era vítima disso no dia a dia, enquanto os dois acenam a ela afirmativamente, de um modo um tanto reverencial. Tocados e lamentosos, pareciam dizer “sim, isso acontece mesmo, a gente sabe como você se sente”. Depois que a moça fala tudo que precisava falar sem qualquer interrupção, ela concede a vez ao rapaz casado com o holandês. Ele conta como na Holanda tudo era tão mais fácil para gente como ele, diferente do Brasil — “meu país” — , de onde teve de sair a contragosto; ao mencionar um tio que o humilhava na adolescência, o rapaz não contém a emoção, e uma fina lágrima escorre pelo seu olho esquerdo e para na barba por fazer. A câmera corta para a moça ativista num close, e seu olhar de empatia transparece no vídeo. Quando o rapaz pausa a fala e pede desculpas por estar emocionado, a câmera abre de novo e dona Tuca o afaga: passa a mão no seu ombro, ampara-o; demonstra estar comovida também, pois leva o dedo mindinho a seu próprio olho, como para segurar uma lágrima furtiva e não borrar a sóbria maquilagem no ar. Uma dama.

Vem a vinheta e os comerciais do intervalo. O primeiro deles, França nota, é o do banco Tupy. Coincidência. Ao som de ukelelês e assobios, uma adolescente mostra ao pai cafona e antiquado como o aplicativo do banco facilita a vida dela e poderia facilitar a dele também, caso deixasse de ser cafona e antiquado. Meio pascácio, o senhorzinho calvo admira-se da esperteza da filha jovem, que domina a tecnologia como ninguém, ao dispensar filas e portas giratórias das agências. A câmera fecha no homem com cara de bocó feliz e sobe o logotipo do Tupy, com assobios ao fundo: “assim a gente muda o mundo”, diz o slogan.

Telespectador, França mastiga o último naco do misto-quente. Ele ainda não tinha visto o novo comercial do Tupy. Achou legal. Mas, estranho: inconsciente, ele se solidariza intimamente com o senhorzinho pascácio e calvo do comercial, sem motivo aparente; quem sabe o faz porque, assim como o homem do reclame, ele não se sente necessariamente um pascácio; mas antes, já o incomodava suspeitar que fosse um tóxico, como o crack e a cocaína dos traficantes. Há poucos instantes, França tinha certeza de que não saía de segunda a sexta em direção à agência 3702 dígito 9, no Jardim Marialva, bem em frente à Praça do Relógio, para ser tóxico nem para engabelar senhorzinhos pascácios e calvos; e agora jogam aquilo em sua cara pela televisão. Coisa esquisita, desconfortável.

Volta o programa, sob aplausos da plateia.

Hora de dona Tuca falar. Magnânima, ela rememora o relato comovente da ativista exuberante no bloco anterior. Relembra os infortúnios por ela sofridos nos ambientes em que passou e denuncia a perseguição infligida apenas por ser do jeito que é, ou por apresentar-se em sua plena naturalidade ancestral; depois, a bondosa banqueira vira-se à esquerda e pondera o caso do rapaz casado com o holandês; arremata dizendo “puxa, como homem é tóxico, não?”. Por fim, ela não cita qualquer exemplo próprio — talvez a modéstia a impeça de usar a si mesma como case —, mas diz como “a sociedade não tolera mais homem tóxico e todo esse machismo retrógrado. A gente precisa agir nas causas do problema”, afirma, olhando aos dois com convicção. Frase forte, que arranca aplausos gerais.

A moça e o rapaz assentem levemente com a cabeça. A câmera abre e eles miram em dona Tuca, com olhinhos suplicantes, como a dizer “por favor, a senhora nos ajude nisso”. Tuca Seráfico, a dona do banco Tupy, faz cara de quem está lá mesmo para livrá-los de homens tóxicos e fazer um mundo melhor para todos. Porque, embora fosse muito rica e nem parecesse a mulher mais rica do Brasil segundo a Forbes, ela era acima de tudo uma pessoa consciente de seu papel social. E é de gente assim que o mundo precisa.

2

Termina o programa e Paulino Eiras de França Júnior tinha umas camisas para passar, as que ele vestiria para trabalhar na semana porvir. Desliga a tevê, abre a tábua de passar, liga o ferro na tomada, e coloca o seletor na posição “tecidos delicados”. Quieto, fica a pensar naquele negócio de homem tóxico. Nunca tinha ouvido falar nisso. Será que ele era um homem tóxico? Matutava enquanto separava as camisas de tricoline do cesto para passar a ferro.

Na verdade, França lembrou-se do gerente da agência, o Milton Devisate. Aquele sim pegava pesado. França já vira duas meninas saírem chorando em direção ao banheiro depois de ele jogar na cara delas as metas não cumpridas do mês. A agência 3702 dígito 9 do Jardim Marialva era repleta de correntistas antigos, na maioria aposentados; e uns tempos atrás, Devisate esteve na berlinda, pois o Tupy, lá na central da Faria Lima, já havia mandado um recado ao gerente: ou a agência dá lucro ou fecha de vez. Porque é assim que funciona nos bancões: a agência tem uma meta de lucro mensal própria — pois cada agência representa um centro de custo isolado das outras — , e os funcionários devem vender os produtos do banco aos correntistas para baterem a meta de faturamento, bancarem o custo operacional da agência, dar lucro como unidade de negócio e assim manter a equipe empregada. Essa era a ordem da central e ponto final.

No fim das contas, o bancário banca o próprio salário, embora nenhum gerente diga isso abertamente à equipe ou comprometeria a confiança de todos, conforme o RH orientava. Coitados, os oito funcionários da agência 3702 dígito 9 achavam que o banco Tupy pagava seus vencimentos desde a tesouraria, com toda a generosidade. Ledo engano: o salário vinha das próprias vendas de planos de capitalização e empréstimos consignados que eles mesmos faziam. Aposentados aliás eram as vítimas perfeitas para isso, pois não faltavam velhinhas a obedecer servilmente à “moça do banco”: quando pegavam um empréstimo meio forçado, diziam em casa ter dado ouvidos à tal moça do banco: “ela disse, eu fiz. Ela, a moça do banco.” Nunca falhava. Naquele mês, porém, as duas moças tiveram dó das velhinhas ou sabe-se lá o que aconteceu. Então, deu no que deu: Devisate, o homem tóxico.

Sim, Devisate era tóxico, França agora sabia. O cara era implacável com esse negócio de metas a bater. Ele se lembrou de outra coisa, inclusive: rolou um comentário no passado, “Deus me perdoe”: o Devisate chegou a gerente ao surrupiar taxas inventadas em contas-corrente de clientes que quase não movimentavam o dinheiro. Pegava um tiquinho daqui, outro tantinho de lá. Somava tudo, batia e superava as metas assim. Um belo dia e pumba!, é promovido a gerente. Diziam isso, comentavam lá e cá nos corredores. França não podia provar nada e aliás temia tocar no assunto. Mas que tinha a pulga atrás da orelha, lá isso tinha.

Por sua vez, ele deixara de bater a meta duas vezes alternadas, sempre compensadas no mês subsequente. Por sorte, a central da Faria Lima incluiu na estratégia de vendas o saque do cheque especial e isso veio muito a calhar para os funcionários, pois, se tem uma coisa que todo correntista faz é cair no cheque especial. Graças a Deus a pressão das metas passara um pouco, e ele não precisava mais bancar o bookmaker da zona leste e vender sorteios pela loteria federal a velhinhos desavisados. Nem a velhinhos, nem a pascácios, nem a calvos. E outra: ultimamente o Devisate nem andava tão tóxico: a julgar pela reforma que a central mandara fazer na agência, mudando o carpete marrom mofado para o granito cinza, parece que a turma da Faria Lima andava feliz com a agencinha 3702 dígito 9 do Jardim Marialva, em frente à Praça do Relógio; principalmente a bondosa dona Tuca Seráfico, a dona com consciência social do banco Tupy.

3

Ao fazer os vincos na manga da camisa com o ferro de passar, França se dá conta de outra coisa: o Tupy não contratava gerentes mulheres, exceto nas agências do Oca Tupy dos bairros nobres, divisão premium dedicada à clientela de alta renda. Nas agências de bairro, porém, apenas homens ocupavam as gerências. E eles — França se dá conta — costumavam ser tóxicos pra valer com aquele negócio de bater metas. Confrontados, viviam acusando a central, sempre a central que os pressionava, alegavam. Pois é: não era apenas o Milton Devisate que soltava perdigotos a semana inteira e chegava a mandar colegas praquele lugar depois que a agência fechava ao público; funcionários que vinham transferidos de outras unidades relatavam como o Tupy parecia fazer vista grossa com outros gerentes — todos homens e todos tóxicos. Sim, todos eles. Era meio que um padrão.

Alguns clientes que ganhavam salário mínimo reclamavam aos funcionários como deixavam o limite do cheque especial deles tão desproporcionalmente alto que podiam comprar um carro zero quilômetro à vista se quisessem; e alguns compravam mesmo, caíam em tentação. Então, a dívida contraída crescia como bola de neve e os engoliam vivos. Não raro, filhas apareciam acompanhadas de seus pais idosos nas agências e pediam para cancelar empréstimos consignados; a orientação que a central da Faria Lima passou era para conceder um segundo empréstimo para cobrir o primeiro, e todos usavam simuladores eletrônicos que convenciam os velhinhos como aquela era a melhor opção: pagar uma dívida pior com outra melhor. A central do Tupy implantara um moderno sistema de simulação automática e a família se convencia: entravam com um empréstimo, saíam com dois; e esticavam o prazo de vínculo com o banco, que os acorrentavam a si o máximo possível.

Fazia sentido? No caixa, sim. A cada trimestre, Devisate recebia o relatório e reagia com aquele jeitão dele: o banco estourara de lucrar mais uma vez. No mês passado, ele até recebeu uma caneta dourada da central, dizem que banhada a ouro, por estar há um ano superando as metas sem parar. Ninguém dizia o montante exatamente, mas a julgar pelo entusiasmo do sujeito, não devia ser pouco. Mesmo para França, o bônus gordinho que ganhou no último trimestre indicava que a coisa andava muito bem no Tupy. Imagine só para o gerente, cujo sorriso chegava quase à nuca ultimamente. Imagine então a quantas não andava a central do Tupy, o grupo todo, lá na chique Faria Lima…

Já a terminar de passar a última camisa, França pensa se, com aquele faturamento todo na casa dos bilhões trimestrais, não custaria muito ao Tupy evitar tanto homem tóxico nas gerências, como bem protestara dona Tuca na tevê. Poxa, seria justo. Aliás, será que ela sabia daquilo? Será que a central da Faria Lima a informava de tudo que rolava nas agências de bairro?

França tinha certeza que não: certamente ela não sabia daqueles homens tóxicos espalhados nas agências do Tupy a intimidar as colaboradoras, e muito menos devia sonhar com aquelas maracutaias todas de empréstimo sobre empréstimo nas costas de velhinhos aposentados. Sim, porque ela pareceu ser uma pessoa muito boa e do bem na tevê, ao ajudar os outros e ao patrocinar ONGs solidárias país afora. Ela dava o exemplo.

“No fundo, gente bondosa assim merece ter a riqueza que tem”, França conclui ao pensar em dona Tuca, “e Deus sabe o que faz: por isso os gerentes nunca vão chegar aos pés dela.” Ele termina de passar as cinco camisas da semana e já as pendurava nos cabides quando deixa escapulir uma última opinião, em voz alta, para encerrar bem o assunto da manhã: “sabe qual o problema? É que gente boa igual ela é sempre ingênua demais.”


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/8/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A indômita Frangland
e a jornada dos franglish

Tempo de leitura: 10 minutos

1

MUITO EMBORA CHAMEMOS GLOBO TERRESTRE, nosso planeta não apresenta a forma duma esfera perfeita mas um pouco ovalada, como aquelas bolas de duvidosa procedência que comprávamos em vendinhas na infância. Acrescente-se que seu eixo — um palitão imaginário a atravessar a Terra de alto a baixo — também não se encontra perpendicular a retíssimos 90 graus, feito o palito na maçã do amor, mas algo inclinado, a aproximadamente 23,5 graus. Assim afirmam os melhores tratados da ciência astronômica e todos os peritos no assunto.

Posição tão pitoresca no sistema solar faz com que o giro descrito por nosso planeta em torno de si mesmo — a tal rotação das aulas de ciências — não se nos dê a enxergá-lo na totalidade, mesmo nos mais avançados satélites e sistemas de posicionamento global.

Não boceje, leitora e leitor: a NASA mantém-se quieta neste particular, contudo, em certos documentos não exatamente secretos mas muito discretos, a dita-cuja aplica um migué no resto do mundo: não declara abertamente que todos os seus sistemas de monitoramento somados abranjam algo como 96% de nossa querida bola azul vista do cosmos.

Ora, não é preciso ser nenhum Einstein para de pronto calcular que 4% do planeta não passa duma incógnita, um gigantesco ponto cego a todos nós, humanidade em geral. Para contornar o clamoroso vexame, a agência americana desculpa-se dizendo que essa faixa invisível corresponderia a uma desprezível continuidade oceânica no mar do Pacífico, a um punhado de milhas náuticas ao leste da Austrália. Bobagem, asseveram; café pequeno.

Ah, o imperialismo ianque e suas patranhas. Pois nessa ínfima parte não catalogada do planeta há sim um território inexplorado, do qual o governo americano reluta em dizer que não existe, por pura birra e por não saber perder. Este país faltante a todos os mapeamentos os mais sofisticados atende, pois, pelo sugestivo nome de Frangland.

2

COBRADO A RESPEITO, o Tio Sam apelou a expedientes fáceis, como muxoxos e risos escarninhos; pega no pulo, a velha e calejada Europa admitiu a existência de Frangland, um tanto constrangida. Sem saída, rendeu-se; e recordou-se que o lendário navegador Américo Vespúcio relatara, num documento dado como perdido, a respeito dumas terras perdidas no hemisfério sul, donde os habitantes falavam uma língua parecida ao bretão e ao gálico no mesmo vocábulo. Um provecto linguista e filólogo deu-nos um exemplo de como funcionaria o obscuro idioma, na palavra em português queijo: em inglês, se diz cheese; em francês, fromage. Pois em franglish — eis o gentílico daquela nação — em franglish queijo é cheesage. Simples, como se vê.

Certo, mas se o exemplo anterior não elucidar o suficiente, pegue-se outro vocábulo em português, veludo, o clássico tecido. Em inglês é velvet, e em francês, velours. Em franglish fica velvelours. A propósito, dizem que não há charme maior que ver e ouvir as beldades de Frangland a pronunciarem este “velvelours” fazendo biquinho: é de enlouquecer a qualquer cavalheiro no seu mais perfeito juízo…

Mas falávamos de Américo Vespúcio. O famoso navegador descrevera em carta a terra misteriosa, no entanto, como na expedição anterior o desbravador chegara às Antilhas — viagem bem mais interessante à corte espanhola, pois para isto mesmo o contratara — ninguém deu pelota à viagem seguinte, realizada nos idos de 1506–1507. Também dissemos que o documento foi dado como perdido.

Felizmente, não mais: uma equipe de pesquisadores autônomos encontrou a tal carta, quase por acaso. Estava na seção de livros raríssimos da Universidade de Leicester, Inglaterra. Ninguém sabe como o documento foi parar lá: trata-se de uma folha de pergaminho em excelente estado de conservação, inserida num velho volume numerado da Divina Comédia de Dante Alighieri – exemplar no qual consta a ex libris do poeta florentino –, volume portanto de valor inestimável. Seja lá quem tenha guardado a carta de Vespúcio ali, provavelmente a usara como marcador de página, e esqueceu-se de onde deixara o precioso documento, se é que o tivesse por precioso.

Pois se Frangland esteve escondido do resto do mundo esse tempo todo, o resto do mundo também esteve escondido de Frangland esse tempo todo. Oh, caro leitor, estimada leitora: esqueça internet, televisão, telefone e tecnologias de igual cepa. A excêntrica nação comunica-se ainda ao modo medieval, via mensageiros de alpercatas em burricos, caixeiros viajantes em caleches, pombos-correio em telhados. Nas colinas de Frangland, conta-se, há toda uma cultura ancestral de falcoeiros para enviar encomendas a longuíssimas distâncias.

Ocorre que, depois de tantos anos em segredo e sob uma estupenda autossuficiência de recursos, os franglish decidiram singrar os mares: para a empreitada, construíram enormes caravelas do mais resistente carvalho de suas florestas, e lançaram-se ao mar bravio em busca de novas terras, pedras preciosas e especiarias — isso em pleno século 21. Se bem que, na contagem franglish, eles andam pelo século 17, e não se sabe que referencial utilizam para enumerarem seus dias. Estima-se que tenham suprimido centenas de estações do ano; talvez saltaram miríades de fases lunares ou, quem sabe, utilizem uma singular adaptação do calendário gregoriano. Resta averiguar.

3

BEM, MAS POR QUE FALAR deste país Frangland e de seus nativos, os franglish? Ocorre que as três enormes embarcações aportaram na praia de Maragogi, paradisíaco litoral das Alagoas, na pátria amada Brasil. Tão logo a tripulação franglish molhou as botinas em águas brasileiras, foram recebidos por esquálidos pescadores que falaram ôxe ao ver-lhes a indumentária, ao que foram alvejados imediatamente: julgaram tratar-se de piratas. Levados os corpos pela correnteza a uma movimentada cidade vizinha, a polícia científica local realizou uma perícia improvisada, tal como pôde, pobrezinha, já que a verba congelara desde os anos Michel Temer. Chegou-se à conclusão de que os tiros partiram de rudimentares trabucos, mui parecidos aos dos nossos bandeirantes de quando desbravaram o território nacional.

Atracados em Maragogi, depressa os franglish construíram um píer do mais puro mogno, belíssimo cais por sinal; e, encantados com a paisagem circundante, decidiram edificar por ali sua nova cidade, a qual julgavam tratar-se de uma ilha perdida no Atlântico, conforme apontavam todos os astrolábios, sextantes e lunetas. Sempre curiosa, bem que nossa imprensa tentou aproximar-se, mas foi logo debelada com pedras de atiradeira revolvidas em betume fumegante. Conseguiu-se apurar, por sorte, que a intenção dos franglish era mesmo colonizar a região, e batizaram-na de Neweau Frangland (Nova Franglaterra, em tradução livre).

Por ali os colonizadores abriram ruas perfeitamente planas e, de um lado a outro, separaram às suas famílias lotes de um quadrado perfeito, como que medidos à régua. Além disso, erigiram uma capela repleta de vitrais coloridíssimos numa praça central cuidadosamente projetada, com uma doirada cruz de Santo André (Saint-André) postada no alto da cúpula, símbolo maior dos franglish, constante em sua bandeira, em suas armaduras, em seus escudos, e em suas moedas.

Entrementes, o governo brasileiro preocupou-se sobremodo com o avanço franglish na região: nossos nativos relataram como os colonos erigiram uma fortificação na cidade litorânea, muito semelhante a um feudo do ano mil da era cristã; e que, qualquer um que se aproximasse com aparência suspeita, era logo recebido por uma saraivada de setas esbraseadas, atiradas por arqueiros posicionados no alto da amurada.

Procurado, o Exército Brasileiro (EB) disse ser muito difícil acessar o litoral de Maragogi, e mesmo achar Maragogi no mapa escolar; semelhante resposta deu-nos a Marinha nacional, cuja fragata E.S.S. Charles Bolsonaro aguarda há mês e pouco no porto de Itaguaí por falta de óleo diesel (que anda mesmo pela hora da morte, diga-se), além de ocupar-se na proteção do comércio marítimo de armas e munições a policiais freelancers das comunidades cariocas.

Nada desesperador, no entanto: “pra quê essa angústia?”, consolou-nos o comandante-em-chefe de nossas defesas, tranquilizando-nos a todos. Com efeito, nossas Forças Armadas não faltariam mesmo à sua precípua missão, ao fim e ao cabo: sob esforço inaudito, destacaram um avião tucano da FAB para monitorar a colônia invasora. Ó, fortuna: não foi este abatido por um canhonaço ao sobrevoar a fortificação? Rodopiou em parafuso e esboroou-se em alto mar. Ai de nós…

Lamentável também foi a tentativa de negociação política, como sempre se procede em nossas plagas: um deputado Ernon Lira partira confiante em missão diplomática para falar ao líder franglish. Dissera ao patriarca que, se chegassem a um acordo, ele ofertaria uma emenda parlamentar de grande monta, mediante gorjeta de 20%, metade antes, metade depois. Ao ouvir-lhe a infâmia, o líder franglish saca de seu arcabuz e dispara-lhe contra o peito. Testemunhas disseram que o rombo atravessava o braço dum homem sem sujar-lhe as mangas. Outros deram conta de que o tiro não fora disparado exatamente à comissão proposta, mas depois de um lúbrico Lira olhar lascivamente à senhora do líder franglish – loura bem fornida e deveras magistral –, ao vê-la pronunciar “velvelours” com biquinho típico. Mas isso, disse a viúva, há de ser boato.

Os satélites do Inpe mapearam os progressos franglish em território nacional: as residências foram todas cercadas de um tapete natural, forradinho de tulipas multicores. Diante da notícia, populares da cidade julgaram ser aquele um condomínio de alto luxo, “só pra quem tem, ó”, disseram, esfregando o dedo indicador no polegar. Enquanto isso, os franglish prosseguem na colonização à sua maneira. Erigiram até escolas ou algo assemelhado para suas alvíssimas, rosadíssimas criancinhas.

Ultimamente, uma fila de populares vem se formando perto da fortificação, pedindo “algum serviço”. Compungidas, estalajadeiras despejam tinas e mais tinas com repolhos velhos e restos de uvas pisadas dos lagares, cujo mosto excedente permite a feitura de conhaques caseiros, vendidos a caminhoneiros como rebite. Por dez real a garrafada, chamam à beberagem “vevelú”: única palavra em franglish que conseguiram decorar, a seu modo, ignorando-lhe entretanto o significado.

O departamento de sociologia da Universidade Federal do Norte Alagoano (UFNAL) tem produzido estudos a respeito da opressão dos povos franglish e criticado o regime patriarcal em que vivem, sobretudo suas mulheres; por outro lado, o Núcleo de Etnicidades e Outros Saberes (NETOS), da mesma instituição, discorda; dizem que as mulheres franglish são de um louro platinado tão ofensivamente eurocêntrico que até reluz, e que portanto trata-se de uma gente assaz privilegiada. O relatório “Velvelours: a objetificação da mulher franglish enquanto biquinho”, da pesquisadora-chefe da ONG Rosa Luxemburgo de Feminilidades e Transfeminilidades, denuncia que as mulheres franglish são liminarmente impedidas de serem arqueiras nas torres, operadoras de catapultas ou tocadoras de sino na igreja; defendem que elas podem ser o que quiserem, mas, por enquanto, sua antiquada cultura admite o trabalho feminino fora do lar apenas a moças enjeitadas, como aguadeiras nas edificações, taberneiras nas bodegas ou cortesãs nos lupanares.

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DESDE A INVASÃO FRANGLISH, nossa República sofre um impasse de maneira generalizada: a governança local não alcança bom êxito nas negociações com óbvias vantagens de parte a parte, como sempre sucede aos mandatários das comarcas vizinhas. Os franglish parecem desprezar as generosidades da mãe gentil, o que a todos causa espanto, curiosidade e inconformidade.

Nosso glorioso Exército de Caxias prossegue no estudo das melhores rotas rumo à inacessível Maragogi. Tomará as devidas providências, garantiu, tão logo compreenda mapas territoriais. Torçamos. A intelectualidade acadêmica também propôs-se a ajudar na reconquista, se bem que passa por apuros: grassam confusões nas muitas assembleias democráticas, sob um inédito conflito intraprogressista, já que o conceito sociológico de hoje choca-se com o de ontem, e este, com o de daqui a pouco. Cotejados, todos anulam-se mutuamente, sob variegadas contradições.

Para dirimir a situação diplomaticamente — posto não ser nossa tradição o extermínio de povos inteiros, ao menos não ex officio — uma comissão da Câmara dos Deputados formou-se para discutir o imbróglio. Compôs a mesa diretora não apenas atores políticos mas também de novelas, além de ativistas, youtubers, percussionistas de trio elétrico, jogadores de futebol, cyberfunkeiros, sertanejos do centro-oeste e traders paulistanos, meu.

O relatório final da comissão propôs uma solução aclamada unanimemente. A mais brasileira das soluções, diga-se: importar, em caráter de urgência urgentíssima, dez comboios de populares popularíssimos e uns quantos traficantes ao local, e circundar ao redor do feudo de Neweau Frangland uma enorme favela — comunidade, a bem dizer — a toque de caixa, para ensejar o efeito esperado. Assim se fez: comboios enormes trazidos por insucateáveis Mercedes-Benz dos anos 70 transportaram os insumos da empreitada, quais sejam, tijolos baianos e concreto pra laje, além de muitas parabólicas. A Anatel — Agência Nacional de Telecomunicações — também colaborou, provendo postes com farta fiação para neles dependurarem as pipas mandadas e os tênis velhos pelos cadarços, e, sobretudo, prover aos novos ocupantes do novíssimo cinturão favelístico um pouco de diversões domésticas via gatonet. Ademais, ninguém sabe quem pediu, mas a igreja Assembleia destacou dezassete sacerdotes vocacionados per se e providenciou três milheiros de cadeiras plásticas de jardim para prover a religiosidade da novíssima comunidade, sob módica contribuição dos devotos.

A coisa vai de vento em popa, com efeito. Hoje, quando se chega às bordas de Maragogi ou Neweau Frangland, as muitas pipas no alto indicam que a comunidade brasileira resiste e prolifera: nos derredores já se ouve populares a bradar algo como “manda lata, Zé”: o belo ritual popular de enchimento de lajes, múltiplo e incessante.

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QUANDO ESTE ESCRIBA VISITOU PESSOALMENTE o portento que é Neweau Frangland, teve antes de passar por uma espécie de estreitamento de pista, onde jovens seguranças da comunidade, descamisados e armados de potentíssimos fuzis, exigiam pedágios um tanto arbitrários, é forçoso admitir, especialmente smartphones. Tivemos de entregar. Vimos alguns turistas mais relutantes a irritar os descamisados da resistência, que saltavam dentro dos carros e subtraíam a justa taxa de entrada, ao que, diziam, “perdeu”, “tudo nosso” etc.

Enfim, a estratégia idealizada pela gloriosa comissão política, intelectual e artística parece ter dado certo. Relatos dão conta de que os franglish andam mesmo intimidados com o cinturão comunitário, no qual o verde-água do horizonte dá lugar ao laranja-tijolo e ao cinza-cimento, e os muitos fogos Caramuru Três Tiros de Canhão, disparados quando em gols do Flamengo ou por viaturas ao longe, assustam as sentinelas franglish no alto das torres, sobressaltando-as.

A intelectualidade acadêmica louvou tal iniciativa de resistência, tão brasileira, tão nossa; quando nossos carteiros chegam aos umbrais da fortificação — mensageiros são bem-vindos em Neweau Frangland, como é costume no país de origem — , bem, os carteiros entregam periódicos traduzidos em perfeito franglish aos líderes daquele povo, conscientizando-os de que praticam a mais hedionda exclusão social aos habitantes do cinturão comunitário, e que deviam se abrir, integrar-se mais aos resistentes. Sim, deviam viver em harmonia e a tudo dividirem, sobretudo suas mulheres franglish, chamadas “as novinha” pelos rapazes da ocupação, acometidos de mil priapismos ao ouvirem-nas dizer “velvelours” com charme inebriante. Tão logo leram as cartas, os patriarcas convocaram uma novena na capela Saint-André, a fim de penitenciarem-se e clamarem o perdão coletivo.

Por fim, os bons resultados principiam a aparecer: murchas e fenecidas, as tulipas das residências franglish são trocadas por concreto de betoneira, dádiva da Bruninho Lira Concretagens, do empreendedor e filho do falecido parlamentar lúbrico do mesmo clã. O sinal da Rede Globo já chega aos lares franglish, sob os auspícios da afiliada TV Marolinha, propriedade do atual governador Aristides Calheiros de Mello. Além disso, a taxa de natalidade franglish sobe a níveis estratosféricos de quando comparada ao início da colonização: nota-se como as crianças curam-se do exagerado alvor cutâneo e libertam-se do incômodo róseo nas faces. Antes onipresente, o louro platinado e reluzente deixa a cada dia o louro, o platinado e o reluzente.

Hoje, quem visita a pitoresca fortificação vê na entrada do cinturão comunitário uma grande placa, pintada à cal e restos de esmalte sintético, bem na praça de pedágio de smartphones: “Comunidade Vevelú” e embaixo o simpático subtítulo “aqui as novinha é tudo benvimdas” (sic). Enfim, a ordem e o progresso de nossa flâmula impõe-se novamente no território, e a brava gente brasileira triunfa uma vez mais. Tá tudo dominado.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Meus sete níveis
da prosa literária

Tempo de leitura: 8 minutos

Certo dia, pus-me a pensar na questão “o que é literatura?”. A palavra evoca certa erudição à primeira vista e há variadas definições para ela. Pessoalmente, diria à minha filha de seis anos que literatura é o mesmo que a arte da escrita. Não importa qual gênero textual. Por exemplo, é consabida a história dos famosos relatórios administrativos de um certo prefeito de uma cidadezinha do interior das Alagoas: um tal de Graciliano Ramos.

O alcaide teve o talento para a escrita descoberto por meio daqueles papéis burocráticos que relatavam a situação da administração do município. Ocorreu que a veia do artista já aparecia ali, em frases surpreendentemente interessantes. Numa palavra, aquilo tinha literatura, pois tinha arte. Chegado tal material ao conhecimento do sr. Augusto Frederico Schmidt — poeta e editor no Rio de Janeiro — fez-se o contato inicial e o ex-prefeito Graciliano foi alçado àquela que seria sua verdadeira vocação: escritor.

Quem dera tivéssemos mais Gracilianos e mais Schmidts.

Mas voltando ao assunto. Tudo que se publica é mesmo literatura, ao menos um pouquinho? Bem, críticos literários bocejariam nesse instante, pois sabem que tal pergunta já foi respondida de há muito. Minha intenção é mais modesta. Não sou crítico literário. Apenas rabisco um mapinha num guardanapo para a amiga e o amigo se encontrarem, de um jeito simples. Lúdico, até.

De modo que proponho um exercício prático. Imagine que você vai a um hipermercado e ali, antes da seção de pneus, esbarre num estandezinho de livros dispostos com desmazelo típico: vê uma autoajuda ali, o panfleto feminista acolá; um manifesto identitário e um Machado para constar; a biografia daquele ex-BBB; outro manifesto feminista e atrás dele, um livro de dieta. E o Torto Arado.

O que há de literatura ali?

“Machado, claro”, dirá o espertinho, sem titubear. Fácil demais. “Ah, Torto Arado!”, dirá a doce jovem que ama ler e que coleciona marca-páginas de crochê e assiste a booktubers. Hum, Torto Arado… ouço falar e uso de boa-fé. Mas enquanto a hipótese de visitar o sr. Itamar não me ocorre, seus leitores poderão saber se o bom baiano faz mesmo literatura, em qual nível; isto se minha classificação abaixo fizer algum sentido e conversar com a verdade.

Mas antes: não dogmatize, caridoso e eventual leitor; credo-em-cruz, Deus me livre e guarde. Sou leitor como tu, não autoridade no assunto. Ciente disso, posso inclusive abandonar esta classificação se me chegar uma melhor. Haverá melhores, seguramente. Dou-me por satisfeito se soar parecido aos mestres, se resvalar um tiquinho nos grandes. Embora deva dizer que jamais vi classificação parecida; logo, qualquer semelhança será mera coincidência.

Outra coisa importante (não vá embora!): a classificação serve apenas para prosa de ficção. Não entendo patavina de poema, de teoria poética. Este gênero está fora da consideração abaixo, exceto onde anotado. Também não trato de não-ficção (exceto no último nível, por pura necessidade). A arte da escrita está presente na prosa não-ficcional, evidentemente. Mas quanto a esta, limito-me a admirar os bons textos e rejeitar os ruins. Não me atrevo a classificar.

Sem mais delongas, enxergo a prosa em sete níveis por ordem de importância, a saber: Literatura de Tradição, Altíssima Literatura, Alta Literatura, Literatura Intermediária, Baixa Literatura, Subliteratura, Desliteratura.

Nível 1: Literatura de Tradição

Nela se baseiam as grandes religiões. Ela inicia civilizações, cria e mantém as grandes tradições; são a base da linguagem, mãe de idiomas. São os livros sagrados, as obras eternas, únicas, sem paralelo; mesmo o não-leitor tem contato ao menos indireto com elas, pois estão incorporadas ao espírito dos povos e de nações inteiras. É o nível mais alto da literatura, quase transcendente, pois separa o humano das demais criaturas, inventa sua Língua, estabelece seu espírito e dá forma a seu pensamento. Dela derivaram todas as demais expressões literárias, todas as manifestações culturais e tradições dos povos ao longo da História. Breves exemplos: os livros sagrados das grandes religiões; as peças gregas; os épicos; a Ilíada e a Odisséia; a Eneida; a Divina Comédia¹.

Nível 2: Altíssima Literatura

Esta é a categoria das obras mais importantes da prosa enquanto leitura. Não são apenas obras clássicas, mas referências máximas que modelam gêneros, justificam a existência destas e elevam a outro nível a arte literária. São matrizes quando se trata de ficção. Por exemplo: Dom Quixote, Moby Dick, Guerra e Paz, Os Irmãos Karamázov, o Fausto de Goethe, as peças de Shakespeare².

Nível 3: Alta Literatura

Esta é por excelência a seção dos maiores clássicos da literatura universal (e aqui adentra um brasileiro), especialmente os grandes romances dos séculos XIX e XX (mas não só): Madame Bovary, Crime e Castigo, Anna Karenina, Razão e Sensibilidade, Um Conto de Duas Cidades, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro etc. etc. etc. Impossível listar os mais importantes. O conjunto consta nos cânones.

Nível 4: Literatura Intermediária

Clássicas ou não, as obras intermediárias carregam adiante a tocha da literatura. Nada têm de medíocre — muito pelo contrário. São grandes livros: uns clássicos e outros não necessariamente, segundo a crítica. Podem figurar em listas importantes e não raro serem “clássicos pessoais”, a depender do gosto de quem os lê. De toda forma, são prosas feitas com tal arte que ultrapassa o mero prazer em ler. Dialogam com a existência humana e seus dramas. São obras importantes, pois nenhum leitor que se preze pode prescindir delas ou menosprezá-las. Alguns exemplos (dentre centenas): O Processo Maurizius, Servidão Humana, Mrs. Dalloway, A Montanha Mágica, Lolita, O Som e a Fúria. A lista é imensa, imensa…³

Nível 5: Baixa Literatura

Não se assuste com o “baixa”. Falamos ainda da arte e estamos protegidos pelas cercas do bom gosto. Ainda nos abrigamos na casa da literatura, mas fomos ao quintal para espairecer um pouco, tomar ar fresco. Por que este “baixa”? Algo pejorativo? Não, de maneira alguma. Pelo seguinte: embora ainda literatura, aqui estão obras mais comerciais, geralmente recentes do ponto de vista histórico, mas de qualidade indiscutível. São livros de ótimos e de bons autores, que dialogam com os grandes textos e grandes autores. Caracterizam a baixa literatura:

  1. a intenção de ser popular, porém com qualidade;
  2. transportar e preparar o leitor para literaturas mais elevadas (dos níveis acima, portanto), numa espiral ascendente. Aqui está sua maior atribuição.

Portanto, digamos que a baixa literatura cumpre uma função nobre e importante: apresentar o mundo dos bons livros ao leitor iniciante e ensiná-lo o gosto por ler. Não que seja coisa apenas de novatos, de maneira alguma. Pode ser que os livros desses autores tornem-se clássicos algum dia, embora seus autores não sejam clássicos no todo; o que não os afasta da apreciação mais que merecida. Exemplos (por autor): Morris West, Somerset Maugham (cujo Servidão Humana citado acima considera-se clássico), Truman Capote (A Sangue Frio, outro clássico), Georges Simenon, Agatha Christie, Isaac Bashevis Singer, Mario Vargas Llosa, Milan Kundera… entre centenas e centenas de outros.

Nível 6: Subliteratura

Aqui a coisa muda sensivelmente: fechamos a cara. Há um corte abrupto, uma mudança de cenário. Saímos da arte e entramos na caricatura da arte, logo, no engodo. Como o nome indica, a subliteratura está abaixo do fazer literário. Há uma subliteratura de iniciantes ou amadores inábeis, facilmente detectável e tolerável por motivos óbvios: o que não significa que todo estreante faça subliteratura, longe disso. Todo grande escritor começou um dia. A diferença se nota no teor. Quem fizer algo relevante irá adiante, cedo ou tarde.

Mas grassa aqui outro tipo de escrita, algo intencional. Seus autores escrevem por fórmulas fáceis de composição, tramam enredos esquemáticos, formulinhas que “funcionam”: começo, meio, fim, pá e pum. Não têm cuidado com chavões ou lugares comuns, pelo contrário.

A subliteratura profissional busca vender muito e distrair. Não busca a reflexão. Não dialoga com a existência humana, dá-se apenas a melodramas rasos. Abusam da linguagem coloquial. São inverossímeis, e de umas situações tão escancaradamente vazias que por vezes são percebidos pelo próprio consumidor. Seus personagens são rasos, com nomes estranhos. As falas copiam os piores filmes.

Diferente da baixa literatura (nível 5), a subliteratura não quer leitores mas clientes. É o fast-food dos livros: enganam a “fome de ler” mas não nutrem. É o lugar dos best-sellers da hora (americanos em especial; geralmente de autores-franquias, com o nome gigantesco e padronizado nas capas): Tom Clancy, Jojo Moyes, John Green, Danielle Steel. A lista não acaba. Mas há como detectar: o nome do autor é maior que o título da obra? Eles tem um caminhão de títulos e lançam um novo a cada ano? Hum…

De resto, a liberdade. Um Big Mac de vez em quando não mata ninguém: consuma, se quiser. O dinheiro é seu. O tempo, também. A mente, etc.

Nível 7: Desliteratura

O pântano. O horror. Um atentado à inteligência popular. Sim, é possível baixar um pouco mais. Se a subliteratura está abaixo da arte e afasta o leitor-consumidor dos melhores textos, a desliteratura dedica-se a destruir qualquer arzinho de gosto literário. Picaretagem em forma de livro, feita de espertos para burros. Pega-trouxas. Aqui pousam os trapaceiros, os oportunistas, os caça-níqueis; apelativos de toda sorte. Puro desperdício de eucalipto, são todos escritos por ghostwriters de quarta categoria, sempre apressados, mal pagos, com muita preguiça ou tudo junto. Quando autorais (algo quase impossível), serão escritos por gente que se arvorou a escrever sabe Deus porquê, já que não gostam de ler, nunca leem nada na vida, sequer uma nota de jornal. Fácil comprovar: a ofensa ao idioma grita a cada linha.

Nesse ensopado cabe tudo: “biografia” de ex-BBB, confissões da youtuber com uma Espanha de seguidores; aquela capa que grita “Seja Foda” ou “Foda-se-Alguma-Coisa”: sabe que tipo de leitor se impressiona com uma palavra chocante na capa, a ponto de comprar o livro? Zero. Nenhum. Só o não-leitor e futuro nunca-mais-leitor.

Esqueça qualidade. O propósito da desliteratura é vender pelo choque, embarcar no timing e faturar. Quem a consome, suicida o próprio gosto pela leitura de imediato e incrementa a burrice — isso se ler mesmo. A esses, seria melhor assistir séries no streaming, ver rede social no smartphone. Poupar as árvores.

E a literatura brasileira?

Machado de Assis é nosso escritor universal. Diria universal aquele cuja obra o mundo devia conhecer, para seu próprio benefício. Nossos demais escritores clássicos, porém, não os vejo como universais. Suas obras habitariam da alta à média literatura (Níveis 3 e 4). Quanto aos contemporâneos, creio que fiquem pela baixa literatura (Nível 5): conduzem seus leitores à média e alta literatura. E fazem arte, em geral.

Então, pensei nos portugueses que nos deram o idioma, afinal. De cara, confesso minha ignorância além do básico que nos chega ao Brasil (para nosso azar!). Destes, universais indiscutíveis são Camões e Pessoa, eternos. Mas são poetas, e não trato aqui de poesia. Na prosa, Eça e Camilo estariam no Nível 3, Alta Literatura. Universais, também. Saramago foi Nobel de Literatura, mas temo classificá-lo: julguem seus leitores. Lobo Antunes estaria no Nível 4. José Luís Peixoto, Nível 5. Certamente cometo injustiças, sem intenção. Demais lusófonos, há que conhecê-los. Chegarei a eles conforme as indicações me constrangerem a ponto de não suportar o vexame de não lê-los.

Por fim

Toda literatura de todos os gêneros literários nos torna melhores na alma — em diferentes graus. Bons livros sempre levam a melhores livros. Livros ruins levam-nos para longe de todo e qualquer livro. De modo que é preciso educação literária: quando menos, alguma informação que ajude na tarefa. Tentei isso neste breve artigo, humildemente. Espero que com proveito para quem eventualmente o acessar e ler.


¹Nota – nível 1: Embora se apresentem em versos, portanto poéticos, é preciso considerar que a escrita antiga lançava mão da versificação como forma de passar da oralidade à textualidade. Não se trata de poema como conhecemos hoje, isto é, de gênero literário em separado. Ademais, a escrita em verso antecede a prosa tal como a conhecemos, por isso, Tradição.

²Nota – nível 2: Estas duas últimas (Shakespeare e Goethe), embora em verso, foram escritas para o teatro. Goethe também escreveu em prosa. Quanto à versificação, de certa forma, aplica-se o mesmo caso da nota anterior.

³Nota – nível 4: Talvez haja dissenso aqui; certamente haverá. Por isso, reitero: sem dogmas. São apenas percepções pessoais, passíveis de equívoco. De toda forma, mesmo quando não clássicos absolutos, todas as obras são de muito alto nível aqui. A diferença reside justamente na ausência do “cânone” consensual entre a crítica, esta que pode variar muito, pois não se trata de ciência exata.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 29/01/2022



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(Selo criado por Beth Spencer)

A alma sensível

Tempo de leitura: 4 minutos

Para além da inteligência, há quem possua uma força invisível que vivifica e impele sempre adiante e acima. Uma gente inconformada, no sentido de não se encaixar em formas predefinidas nem em camisas de força. Não são renegados nem rebeldes, mas espíritos elevados, movidos por virtudes afirmativas e não por oposições e implicâncias. São poucos, entretanto. Não há designação única e definitiva para personalidades assim. José Ingenieros chamou tal disposição de “o idealista”. Ernst Hello, de “homem superior”. O profeta Daniel designa tal caráter como “espírito excelente”. Há outros exemplos.

A essa força motriz, a esse ímpeto provindo de fonte desconhecida e inexplicável chamarei alma sensível. Trata-se da mesma substância descrita acima e, em todo caso, tais personalidades — não importam quais pequenas variações as diferenciem — , opõem-se preliminarmente a dois defeitos da humanidade: a maldade e a mediocridade. A luta desta alma sensível consiste em combater malignos e medíocres, antes de tudo dentro de si. Mas não somente.

Mais frequente que a malignidade é a mediocridade. Produto social, ela normaliza nos indivíduos os vícios da coletividade até o ponto de não serem mais percebidos como vícios. O medíocre — não confundir com o equilibrado e portanto virtuoso — acomoda-se às convenções do momento por um cálculo a um só tempo astuto e defensivo. Sua alegria é rasa e seus lemas de vida estúpidos, sempre obtidos por repetição. Vive de emblemas superficiais e não o incomoda a própria imperfeição. Se chamado a se examinar e a se modificar, o medíocre se ofende e reage, pois, refratário, faz de seus sentimentos confusos e impressões vagas escudos contra toda luz nova e diferente. Evita porquês a todo custo e, passivamente satisfeito, detesta grandezas. Do ponto de vista do intelecto, medíocres são como mortos em vida.

Por outro lado, a sensibilidade interior jamais se nota à primeira vista. Há quem aparente ser alguém absolutamente comum, sem qualquer atrativo imediato, cuja alma é sensível. E existem indivíduos notavelmente cultos e eruditos que, opacos por dentro e por fora, são precários em matéria de espírito.

Nem toda pessoa sensível no sentido comum do termo possui esta alma contemplativa, introspectiva. Seu traço marcante está na abertura às percepções sutis e, ao se valer da cultura — em geral o faz — , não a traz na epiderme mas no íntimo, internaliza seus significados mais elevados. Almas sensíveis captam o movimento dos mistérios, como se todo oculto não fosse invisível mas translúcido, diáfano; discernem o que há por baixo das coisas, captam segredos, notam detalhes por entre as proposições antagônicas. Elas intuem e antecipam.

Humanas, tais almas podem incorrer em erros, claro. Têm um fraco por conjecturar demais e não raro viciam-se em si mesmas, nos próprios pensamentos e teorizações. Também correm o risco do solipsismo. Serão espíritos saudáveis se não confiarem muito nas formulações a que chegam e deixarem a realidade educá-las, falar por si. Com a maturidade, a alma sensível aprende a trabalhar a intuição e a formular conforme as impressões tomam corpo e se definem. Enquanto isso, é magnânima, compassiva. Não age feito juiz ou moralista — exceto se a falha for intencionalmente má.


“Se você é dos que orientam a proa visionária para uma estrela e estendem a asa para a sublimação inatingível, desejoso de perfeição e rebelde à mediocridade, leva dentro de si o impulso misterioso de um Ideal. […] Você só vive por essa partícula de sonho que o eleva sobre a realidade.”
— José Ingenieros¹


Soa algo metafísico, com efeito. Almas sensíveis realmente sentem algo a mais no ar, detectam causas e consequências; taciturnas, são previsíveis na rotina e surpreendentes nas opiniões. Contudo, podem equivocar-se também. A ser assim, refazem o parecer inicial quando a massa mal assimila o senso comum de anteontem. Saem do equívoco antes de consumar seu efeito ou nem mesmo entram: sabem quando o bem torna-se mal; leem sinais difusos ainda em germe no horizonte; recusam-se a ser ovelhas rumo ao matadouro ou mosquitos que, hipnotizados pela luz, voam ao redor da lâmpada para a morte.

Almas sensíveis são reconhecidas por outras almas sensíveis, jamais pelo vulgo. Elas buscam seus pares, seus iguais, porém raramente os encontram, pois não se dão às amizades. Desconfiam muito, reservam-se demais. A presença constante dos outros as deixam aturdidas e irritadiças, como se o contato lhes sugasse a seiva, a energia espiritual. De maneira que se fecham àquilo que justamente as poderia fortalecer: os amigos. Talvez esteja aqui sua maior fraqueza.

Como se vê, ninguém é perfeito. Mas as almas sensíveis anelam a perfeição. Embora seja impossível alcançá-la, a jornada vale por si. Seus padrões são elevados. Para com fortes, alternam admiração e desprezo; e dos fracos sentem compaixão. Sua marca pessoal é a solidão, mesmo em meio às multidões.

Enquanto isso, grassa o vulgo lá fora, sempre em busca de satisfação imediata e entorpecimentos variados; saboreiam o mundo como uma sobremesa, incham e esparramam. Não faltam motivos para permanecer no ponto em que estão, no plano interior. Tampouco faltam companhias. Medíocres existem em maior número por um único motivo: facílimo é ser medíocre.

Almas sensíveis, por outro lado, não importa o tamanho de suas angústias ou o peso de suas dificuldades, recusam o nivelamento. Adaptam-se socialmente por necessidade, caridade ou prudência, e só. No mais, são autodisciplinadas e carregam algo da Eternidade em si. Possuem como que asas invisíveis, embora, para não serem tomadas pela soberba para depois caírem como anjos rebelados, não levantam voo diante do próximo. Enquanto presos a esta vida, a elas resta escapar do chão de outra maneira: por meio de realizações edificantes, a si e ao próximo.


¹ INGENIEROS, José. O Homem Medíocre. Curitiba: Editora do Chain, 2011


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 22/01/2022



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Bicho romancista,
filhote romance

Tempo de leitura: 3 minutos

O bicho romancista não é apenas um contador de histórias. Seu ofício não deve ser visto como qualquer coisa menor, como se não passasse de inventar uns quantos causos razoavelmente elaborados ou conversa fiada na forma de livro. O bicho romancista pode ser também um artista do idioma, filósofo, historiador, psicólogo, profeta, (santo não digo). E até mais.

Bicho é modo de dizer, pois ele é estranho à primeira vista. No entanto, pode ser mais gente que a gente. O romancista penetra no tecido da realidade, por entre as tramas, com sensibilidade e argúcia. Ele enxerga a alma humana com olho clínico. Alimenta-se da verdade oculta nas coisas, nas pessoas e situações do mundo, para depois metabolizar tudo de um jeito singular. Feito outro bicho, a águia, ele vê o senso comum desde as altitudes e o recria, o retrabalha.

O romancista é feroz e calmo, veemente e sutil, a um só tempo. Ele articula extremos, ata as pontas, sintetiza complicações, comprime e expande. Abre as percepções como quem abre a janela de um quarto escuro, e nesse simples gesto dissipa as trevas da incompreensão.

O filhote do bicho romancista é o romance. Sem prejuízo dos demais gêneros literários, o romance representa a maturidade da literatura enquanto tal. Por exemplo, muita gente já ouviu o elogio que se faz à natação, “esporte completo, que trabalha todo o corpo”. Pois bem: o romance é gênero completo que trabalha toda a imaginação. Afinal, onde mais se pode descrever tantas faces da existência — faces por vezes caleidoscópicas — , reunidas numas poucas personagens e situações?

As demais artes não são capazes de tal, tampouco se propõem a tal. Pois o romance serve a burocratas, sociólogos, atores, faxineiros, médicos, clérigos; a pobres e a ricos. A toda gente. É nobre criação, da qual o romancista é artífice habilidoso.

Mas, e quanto ao leitor? Descendo ao rés do chão, não vejo com bons olhos quem leia de tudo exceto romances. Tudo bem: pode ser que, para alguns, ainda não tenha ocorrido um encontro feliz com o gênero; haverá tempo e oportunidade se houver disposição. Contudo, refiro-me àqueles que por ignorância desdenham da ficção literária em geral; ou dela façam leituras protocolares, de exceção, para fins de repertório livresco. Agem como se pairassem acima da arte, com suas seriedades comezinhas e estúpidas. Uns filisteus.

Por outro lado, consumir livros de afirmação — a não-ficção propriamente dita, com suas variadas ramificações; voltar-se apenas a teses rígidas e pré-digeridas pelos autores, repletas de conceituações ou análises áridas do cotidiano — , obviamente tem seu valor e utilidade. Não obstante, somente o romance dará ao leitor uma massa maleável e informe a ser moldada por sua própria imaginação. E a imaginação é o dínamo da inteligência.

Quer liberdade maior para o pensamento? Que outro gênero oferece tanto? O romance constrói, amplia e enriquece a visão da vida e das coisas. Depois de lido, a própria não-ficção deriva-se também, ultrapassa as inculcações superficiais, os dogmatismos esterilizantes. Romances educam o ato de ler, treinam a compreensão. Fazem os demais textos ficarem claros, discerníveis. Inclusive os textos ruins, ao denunciá-los como ruins.

Além disso, não vendem certezas. As teses do romance são sutis. Não fazem a cabeça, pelo contrário; por vezes questionam as convicções, como se postassem um espelho diante de nossa vaidade autoindulgente, a nos dizer: “olha como é você, como somos, de que é feita nossa humanidade”. Chegam a confundir-nos, de modo benfazejo; amadurecem-nos, desenvolvem nossa consciência moral e abrem perspectivas, varrendo pré-julgamentos.

Claro: refiro-me ao melhor produto e aos melhores produtores do gênero. O bicho romancista e o filhote romance não se deixam confundir, não admitem impostores. Antes, os desmascaram.

A primeira impressão
é a que fica?

Tempo de leitura: 4 minutos

“Axe. A primeira impressão é a que fica.”

O famoso slogan data dos anos 1980, quando os comerciais de tevê não desfrutavam dos atuais recursos de computação gráfica, de imagens em 4K HDR a 60 frames por segundo e outros recursos tecnológicos da atualidade. Naquele tempo, a limitação visual da publicidade era compensada criativamente pelo texto publicitário, e há toda uma galeria de propagandas daquele período que se tornaram marcantes, inesquecíveis: o dilema de Tostines, o efeito Orloff, e tantos outros.

Embora ótimo, o slogan “a primeira impressão é a que fica” talvez caísse bem para o desodorante, não para o gosto literário. Bem, assim julgo eu, a partir de minha própria vivência de leitor até agora. Passo à primeira pessoa do plural, pois imagino que a experiência nos seja comum: no início, quando se abre a caixa mágica da grande literatura para nós, logo elegemos nosso autor preferido e nada mais importa nessa vida. Essa é a primeira impressão. Que não fica, porém.

Conforme descobrimos e mergulhamos na leitura, o leque de afinidades se amplia ou até muda completamente. Não significa que o autor preferido de ontem será o desprezado de amanhã, pif-paf, como se o gosto literário fosse algo bipolar. Não. Ocorre que, quanto mais o repertório de obras aumenta, mais descobrimos aqueles autores que se adequam não apenas ao nosso paladar textual de momento, digamos, mas ao nosso temperamento, à nossa personalidade, circunstância, maturidade. Numa palavra, à nossa afeição.

No meu caso, um escritor que de início deixou-me embasbacado foi Flaubert. Li Madame Bovary e fiquei não apenas fascinado com a história enquanto tal, mas também com a precisão vocabular, o acerto meticuloso de cada parágrafo, como se ele escolhesse cada palavra com esmero, para não estar ali à toa. De fato foi intencional, descubro depois. Achei genial.

Depois ainda leria de Flaubert seus Três Contos¹ (Um Coração Simples, A Lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade) e então não tive dúvidas: o melhor romancista era também o melhor contista. Achei meu lugar. Demais autores que me perdoassem, mas meu coração de leitor pertenceria ao mestre francês. Ainda leria depois seu Educação Sentimental e minha predileção só aumentou.

Mas a fila andou, sem que eu desse por isso. Guardei em bom lugar a ternura que senti por Flaubert e fui acessando outros textos e escritores. Sem intenção alguma. Não quis trocar de autor preferido a princípio. Por exemplo, mais à frente conheceria Tolstói. Colossal, monumental, o maior de todos. Assim entendi Tolstói: um totem para ser admirado com distanciamento reverencial e certo assombro. Grandioso demais para ser autor de cabeceira. Sua voz representa a universalidade do drama humano de todos os tempos, não de um leitor específico (embora possa, claro).

Contudo, não são os monumentos que trazemos ao coração, via de regra. Nosso autor preferido fala ao nosso íntimo, à nossa particularidade subjetiva, para além de suas histórias cativantes. Traz-nos uma identificação pessoal. De sorte que continuei fiel a Flaubert, até que por acaso tomei conhecimento de um tal Philip Carey, protagonista de uma obra chamada Servidão Humana, escrita por certo William Somerset Maugham.

Para além da obra em si — espetacular — a maneira de Somerset Maugham narrar inspirou-me não apenas a ler com gosto, mas a escrever. Quer dizer, quando li Servidão Humana² tive um estalo e disse a mim mesmo, não me pergunte como: quero fazer isto aqui, desse jeito (o dedo indicador direito batendo na página). Escrever ficção. Depois iria a outras obras suas, e a sensação permaneceu. De novo, não se tratou de um aspecto comparativo, de maior este-menor aquele. Maugham tornou-se melhor que Flaubert para mim? Não. Ocorreu a identificação, espontaneamente. Se um dia eu escrevesse, seria aquele meu norte. Não como cópia ou imitação; de fato, não sei se o ‘som’ do meu texto é semelhante ao de Maugham (para azar meu).

Então, o que houve?

Para além do estilo adorável, notei que a prosa de Maugham não deixa o leitor perdido, flutuando na narrativa. Com peculiar sutileza, ele situa o leitor no espaço, no tempo e na situação; muda o cenário, ele te situa. Talvez esse cuidado decorresse de sua carreira de teatrólogo que ele também foi, e dos grandes. Mas ele faz aquilo de maneira gentil, captando com antenas sensibilíssimas tudo que acontece ao redor: cada levantar de sobrancelha, cada rubor disfarçado, cada olhar de soslaio, cada expressão corporal a expressar secretamente pensamentos e as reações íntimas que os engendram. Maugham descreve com argúcia ímpar cada, como direi, microrreação dos personagens (não sei se existe o termo, perdão).

E faz tudo isso com uma clareza fascinante, direta, não de maneira labiríntica. Pessoalmente, admiro esse tipo de fluência textual escorreita, o qual, sem abrir mão da elegância, não abusa das frases intercaladas. Não sou exatamente inimigo da intercalação, note. Considero o recurso como um dressing gastronômico, um toque, uma pimentinha no bobó de camarão. Um efeito sonoro no espetáculo da clareza.

Além disso, em sua maneira de narrar, Maugham é um cavalheiro, trata com educação seus personagens, não como se fossem estúpidos (a menos que sejam mesmo). E sua voz autoral não faz questão de se exibir, esconde seu conhecimento. Faz isso por modéstia, acho, por temer o cabotinismo e a afetação. Maugham não se pavoneia, talvez por timidez ou delicadeza. Troca o julgamento pelo espanto e admira as personalidades que retrata. Escreve como quem pinta um retrato, com pinceladas suaves e precisas, estudando cada tonalidade, cada nuance. Gosto disso. Quero ser assim.

De maneira que não abandonei Flaubert, por favor. Ainda somos bons amigos e eu não ousaria desmerecê-lo nem um pouquinho (mas vê se pode!). Confesso, porém, que não o visito há um certo tempo e, para ser sincero, temo que tal distância não nos esfrie a amizade, resultando em mera simpatia distante. Admito o risco. Isso não significa também que doutor Maugham possa se gabar de algum monopólio afetivo-literário por aqui. Não obstante, como ainda há muito em sua obra por descobrir, diria que por enquanto até pode, um pouquinho; tanto mais porque nutro por ela interesse e curiosidade, ingredientes essenciais de um relacionamento literário duradouro.

E de qualquer relacionamento, aliás.



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Como encontrei
Júlio Verne

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês

Tempo de leitura: 4 minutos

Levei exatas quatro décadas para ler Júlio Verne, no seu A Volta ao Mundo em 80 Dias. Leve, divertido e de ótima prosa, o livro transportou-me aos tempos de Sessão da Tarde, na infância, quando passavam na tevê aqueles filmes de aventura divertidíssimos como os de Indiana Jones e Allan Quatermain.

Não falarei do livro, que aliás recomendo. Falarei de seu autor, sr. Júlio Verne, o próprio.

Ouvia falar muito, mas nunca prestei a devida atenção à figura do escritor francês. Um dia, passando pelo pátio exterior do metrô Barra Funda, em São Paulo, vejo uma banquinha com diversos livros de encalhe a preços simbólicos. (Notinha: adoro essas feirinhas. Fuço, reviro tudo, garimpo mesmo. Foi numa delas que encontrei verdadeiras preciosidades: Stendhal, Henry Miller, Joseph Conrad, Oscar Wilde, Stevenson; do Brasil, Marques Rebelo, Lucio Cardoso, entre outros.)

Bem, a banquinha ficou lá por certo período e toda segunda-feira tinha novidade, conforme averiguei com um atendente. Pois um dia deparo-me com uma biografia de Júlio Verne, escrita por J. J. Benítez, escritor espanhol famoso por sua série de ficção científica Operação Cavalo de Troia. Achei inusitado um escritor best-seller interessar-se por outro escritor a ponto de dedicar-lhe uma biografia, sem ser biógrafo. Ele conta o motivo na introdução, aliás comprida e um tanto maluca, com uns lances de esoterismo, coisa e tal. Vale a pena. O fato é que me interessei, fiquei dois reais mais pobre (sim, dois reais) e levei o livro pra casa.

Folheio o livro no metrô como quem não quer nada e logo sou tragado. Jamais lera Benítez. Achei seu texto bem bom, envolvente, interessante. Parei o que vinha lendo para entrar naquela obra e conhecer a vida do sr. Verne pelos olhos do espanhol.

Mas não contarei tudo que li. Destacarei alguns pontos.

Ao contrário do bom humor e da sagacidade de Phileas Fogg, o protagonista de ‘…80 Dias’, Verne era um sujeito um tanto bisonho, triste. No início de uma carreira que custava a decolar, enfrentava os queixumes constantes da mulher que era pura cobrança (com alguma razão; mas ela exagerava). O fato é que a esposa só fazia reclamar, a ponto de cozinhar os neurônios do pobre Verne, infernizá-lo; além de impingir-lhe certa pecha de fracassado, “por que não arruma um trabalho decente?”, coisas assim. (Notinha, de novo: incrível como a realidade de Verne neste particular coincide com a do personagem Campos Lara, de O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa. O brasileiro soubera, de alguma forma? Impossível este ter lido a biografia de Verne, publicada quase cinquenta anos depois. Coincidência incrível que a ficção proporciona…)

A bater de porta em porta de editores, Verne finalmente encontra um sujeito disposto a dar-lhe uma chance. Publica, e o livro vende feito pipoca em porta de circo. Então, sua sorte muda não por enriquecer, pelo contrário; recebia pouquíssimo pelos direitos do que produzia (familiar, não?). Mas o tal editor ouvia o tilintar constante da caixa registradora na cabeça e passa a encomendar livros e mais livros ao escritor. Chegava quase a espremê-lo para ver se pulavam uns originaizinhos de seu paletó. Verne entregava um novo volume a cada três meses em média e entrava agora num modo frenético de produção literária, quase em escala industrial. De onde tirava tanta imaginação?

Bem, quanto à sra. Verne, essa gostou: viu que o marido finalmente pagava as contas com aquele ofício esquisito que abraçara. Se fazia a comida chegar à mesa, tudo bem.

Para fazer o dia render e ter absoluto silêncio durante o trabalho, Verne começava a escrever às quatro da manhã. Fazia-o inclusive para evitar o choro ensurdecedor do filho recém-nascido, que lhe quebrava toda a concentração. Nessa toada, o francês escreveu mais de uma centena de obras. Estima-se que ele tenha escrito até mais.

Quando a carreira amadurece, seu nome finalmente conhece a fama, e ele, a prosperidade. Não acumula nada exuberante que se possa chamar de fortuna, mas torna-se um escritor bem-sucedido, estabelecido, embora não tanto quanto gostaria e merecia.

Enfim, haverá outros fatos importantes de sua vida pessoal na biografia que deixo para quem quiser procurar pelo livro, facilmente encontrável em sebos. Para mim, o que fica é a perseverança do escritor profissional, de alguém que acredita na vocação e devota-se a ela com afinco, como se não pudesse fazer outra coisa na vida (e até poderia: formado em Direito, vinha de uma família de advogados).

Que eu saiba, seus escritos não figuram nos cânones, não constam como fundamentais na literatura universal. Entretanto, sua vasta obra permanece pela força criativa, pela diversão que proporciona (e não é disso que se trata a ficção, afinal?) e para escritores sua vida serve de inspiração, sobretudo por seu empenho incansável e por sua entrega de corpo e alma ao ofício literário. Um baita exemplo.

Que privilégio o nosso, leitores de todas as idades e origens, poder ler Júlio Verne ainda hoje. Com efeito, o homem sacrificou-se por isso. Leiamos, pois.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)