Mulher pelada

Tempo de leitura: 7 minutos

Não sei o que deu na dona Lúcia que um dia foi me chamar lá em casa. Quer dizer, foi chamar minha mãe e pedir que eu fosse brincar com o Gil, filho único dela e do pai que trabalhava na Voith (o pai fazia questão de dizer que trabalhava na Voith; devia ser importante a Voith). O Gil estudava na minha escola. Não vou dizer que era um amigão, não. Mas era legalzinho, tranqüilo, o Gil.

Também a dona Lúcia era amiga da minha mãe (colega: minha mãe dizia que amigo é uma palavra muito forte e que a gente tem colega; amigos são poucos). Mas a minha mãe fazia a feira com a dona Lúcia toda quinta, então ela deixou eu ir brincar lá, rapidinho. Foi bem tranqüilo. E outra, a casa dele ficava na rua de baixo, bem perto. Lá nem passava carro direito.

Na hora eu fiquei admirado do tamanhão daquele quintal, nos fundos, porque o acesso era por um corredorzinho estreito que mal passava um Fusca. A casa do Gil ficava bem lá atrás, depois de um corredor compridão. Não era a casa principal. A casa principal era a grandona de cá, uma cor de mostarda com jardim na frente. Quem morava nela era a dona Elza, que além de velha era viúva, pelo menos todo mundo dizia isso.

A dona Elza dava um pouco de medo porque ela ficava enfiada naquela casona e quase não saía de lá. Tinha uma capelinha no jardim e ela acendia várias velas de sete dias, daquelas grossas que nunca apagam. Era esquisita. Outra coisa, ela usava calça de homem, social. Ela mandou arrumar as calças do falecido pra caber nela, acho. Outra coisa que eu me lembro dela (é meio chato de dizer, mas fazer o quê?): quando a dona Elza passava, subia um cheiro de mijo. Acho que ela fazia nas calças, coitada. O cheiro era forte, desculpa falar.

Mas a dona Elza ficava lá na casa maior. A gente ficava aqui no quintal brincando: embaixadinha, golzinho; depois, jogar bafo; depois, Super Trunfo. Nossa, o Gil pirava no Super Trunfo. O dele era aquele de caminhão, mas aqueles dos Estados Unidos tudo cromado, com pintura de fogo. Aqui no Brasil só tinha aquelas jabiracas da Mercedes, aquela da frente redonda que solta fumaceira. Os do Super Trunfo eram tudo altão, quadradão, gigante.

Eu só fingia que jogava porque sabia bulhufas de cilindrada, torque, cavalos HP não-sei-que-mais. O Gil ganhava, lógico, e isso deixava ele mais a fim de brincar daquilo. Eu achava chato. A melhor parte era soltar pipa, peixinho principalmente. Peixinho era mais legal, porque ninguém queria cortar peixinho. Lá no alto, o peixinho ganhava do pipão. Era desbicar, cortar e aparar, já era. Então ninguém tentava cortar a linha da gente. Era bem legal. Mas às vezes não tinha muito vento ou sei lá, daí o Gil não queria saber de peixinho.

A dona Lúcia pegou confiança na gente e nem ficava vigiando muito a brincadeira. Às vezes, ela saía pra fazer alguma coisa lá fora, ia no banco, no supermercado. Deixava a gente lá, brincando. Como era pertinho de casa, não tinha segredo: se me enchesse o saco brincar, eu voltava pra casa. Ficou combinado assim.

Uma vez a dona Lúcia saiu e deixou a gente com a dona Elza, a meio doida da casona. Ela falou que tudo bem, olhava a gente. Olhava nada, ela nem saía daquela casa. Naquele dia, eu lembro até hoje, a dona Elza ouvia na maior altura uma música do RPM, aquela loiras geladas vêm me consolar.


Então o Gil ficou meio esquisito, meio desconfiado. Chamou pra ir até o quarto dos pais dele.


Não, ela não tinha idade pra essas músicas, o que é isso. É que ela era meio surda, coitada, e botava o rádio no último volume no programa do Paulinho Boa Pessoa. Daí passou a música do RPM. Nossa, aquilo tocava toda hora, até enjoava.

Então o Gil ficou meio esquisito, meio desconfiado. Chamou pra ir até o quarto dos pais dele. Tinha lá uma daquelas camas com baú na cabeceira, acho que das Casas Bahia. Ele falou: “se liga nisso”. Levantou a tampa do baú, tirou travesseiros, cobertores, e mexeu lá no fundo. Tirou umas revistinhas. Eu fiquei com o coração acelerado de medo. Acho que não devia mexer com aquele negócio, não sei, parecia sujo, proibido. Ele senta na cama e começa a folhear as revistinhas, e eu ali, sem graça: o cara com a boca na mulher, a mulher com a boca no negócio do cara. O cara tinha um bigodão e parecia pilantra, mas a moça nem ligava, não sei. Nem vou falar o resto, isso-naquilo-aquilo-nisso. O Gil falava um monte de palavrão pra fingir que manjava de tudão, fingir que estava acostumado. Mentira, até parece. Aí ele ouviu um barulho lá fora e guardou tudo rapidinho no baú de novo.

Eu fiquei com medo porque achei que ia sobrar pra mim. Eu sempre achava isso. Não sei, eu tomava bronca sem motivo. Minha mãe contava pro meu pai e ele dava a surra logo pra se livrar e não perder o jornal. E se o Gil mentisse, e se ele dissesse pra mãe dele que fui eu? Mas como eu ia adivinhar que tinha aquelas revistas lá no baú? Sei lá.

Eu sei é que não quis mais brincar com o Gil. Falei pra minha mãe que não queria mais. Não contei nada daquilo pra ela, louco? Também ela nunca tocou no assunto. Morreu, passou. O que será que aconteceu lá na casa do Gil? Pensei um tempão. A gente tava de férias, nem vi ele na escola pra perguntar.

Sei que depois os pais do Gil compraram uma casa e se mudaram dali. E o segredo foi embora junto. Nem demorou muito e a dona Elza morreu também, coitada. Os filhos venderam o casarão cor de mostarda com jardim na frente, daí vieram, derrubaram tudo e fizeram outra casa enorme lá.

*      *      *

Depois de um tempo, minha mãe deixou sair na rua sozinho, brincar com os moleques. Mas eles eram meio folgados. Eu não gostava, não. Tinha um terreno baldio ali perto, bem na frente da casa do seu Ítalo. O seu Ítalo mudou do casarão depois que ficou viúvo e alugou a casa dele. Quem morava lá agora era uns uruguaios. O marido, Gualter, tinha uma Kombi e vendia ovos na feira. A casa toda fedia a ovo, eu me lembro: é que depois fui lá brincar com o filhinho deles às vezes. Mas depois falo disso. Agora eu ia brincar de aventura no terreno baldio da frente. Eu era o Indiana Jones, eu explorava a floresta perigosa. Floresta só de capim e pé de mamona, mas tudo bem.

Um dia, eu vi uns papéis rasgados lá num cantão do terreno. Fiquei curioso. Não tinha ninguém olhando. Fui ver o que era. Era revistinha rasgada de sacanagem (minha mãe falou que sacanagem é palavrão). Mas tinha um monte daquilo. E tinha umas revistas escrito International que só tinha umas loiras. Não parecia do Brasil, não, porque o peito das mulheres era da mesma cor até na ponta. Era diferente. Eu fiquei olhando, o coração acelerado. Era errado, mas sei lá, eu via. Era estranho. Aquilo me chamava.

Não contei pra ninguém. Ficava meio tonto com aquilo, meio bobo alegre. Eu nunca contava nada pra ninguém, porque todo mundo ia falar mal, dar chilique. Ninguém sabe conversar direito essas coisas. Então pra quê, né? Piorar tudo? Melhor ficar quieto.

Lá no terreno baldio eu vi as folhas rasgadas algumas vezes. Mas uma vez eu fui mexer numas folhas debaixo de um bloco quebrado. De repente uma aranha armadeira saiu correndo atrás de mim, juro por Deus. A armadeira ataca a gente, ela corre atrás. Eu saí num pinote que nem doido até a rua. Acredita que ela saiu do terreno e veio atrás de mim, a desgraçada? (Minha mãe falou que desgraçado é palavrão, não pode falar desgraçado). Daí eu peguei um pau da rua e taquei nela. Foi de longe, acho que ela não morreu, só dobrou as patas pra dentro. Fiquei na calçada esperando, até que um Chevette bege passou por cima dela. Filha da mãe.

Então depois disso eu fui brincar na casa do seu Ítalo, aquela alugada para os uruguaios. Eles tinham um molequinho, deram um velotrol pra ele e pediram para eu ir brincar lá. A casa era grande, na esquina, tinha um quintalzão gramado, um limoeiro que dava pra subir. Era até legal.


Que graça tem amarrar a mulher e abusar dela amarrada? Meu Deus. Aquilo me deixou mal, viu.


Um dia, a Raquel (a uruguaia lá) me pediu pra buscar o cigarro no criado mudo do quarto. Ela só fumava o Plaza. Só que eu não achei o maço onde ela falou e, pra não perder viagem, abri a gaveta do criado mudo pra procurar. E o que tinha lá, chuta? Revistinha de mulher pelada. Nossa, parece perseguição. Nem abri nada, mas lembro da capa: uma moça de costas, pelada, lógico. Estava ajoelhada e amarrada com cordas com uns caras em volta. Eu lembro bem disso. Que coisa. Que graça tem amarrar a mulher e abusar dela amarrada? Meu Deus. Aquilo me deixou mal, viu. A Raquel via aquele negócio? Mas pra quê?

Passou, e chegou o fim de ano. O Gualter (o uruguaio) tinha um depósito de ovos numa salinha improvisada. O cheiro ali era insuportável. Aí eu fui lá buscar não sei o que e vi um bolinho de papéis ali, preso num elástico. De longe pareceu o Super Trunfo do Gil. Eram calendários de bolso. Cheguei perto e estava virado do lado das datas, meses, tal. Quando eu virei, era tudo de mulher pelada, um monte. Eu lembro de uma coisa: vou chamar de peruca. Era cada perucona ali. Será que ele ia dar aquele calendário pra freguesia? Imagine minha mãe recebendo um daquele na feira.

Então foi assim que eu conheci mulher pelada, sem querer. Conheci nas fotos, pelo menos. Na minha casa nunca teve aqueles negócios, não que eu saiba. Ah, não mesmo. Fora que isso nunca foi assunto lá em casa, nunca, nunca, nunca. Meus pais nunca falaram disso com a gente. Mas também, de um jeito ou de outro a gente ia ficar sabendo, mesmo; eu acho que era por isso que eles não falavam. Esse aí foi o jeito que eu soube.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 40 (19/1/2025)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O ringue

Tempo de leitura: 11 minutos

1

A composição despejava as trabalhadoras, às centenas, em horário comercial. Apressadas, elas desembarcavam afoitas, com mochila ou bolsa atracada ao corpo e aglomeravam-se em frente às escadas de saída. Nos semblantes, a impressão de uma vida de suplícios para faturar algum dinheiro.

O bairro da estação final era repleto de galpões com tijolos aparentes, todos castigados pelo tempo e escurecidos pela fuligem e a poluição; construções que remontavam ao início do século passado, de tijolos ingleses, muito resistentes. Diversas fábricas funcionaram ali, onde hoje companhias de telemarketing alugavam a bom preço aqueles paredões arruinados.

Embora exibissem por fora um visual decadente e de certa forma hostil, por dentro havia tecnologia de ponta e ótima estrutura naqueles locais. Todos os que visitavam os galpões de call center diziam como fachada e entorno apenas enganavam a vista, e que bastaria entrar para conferir as modernas instalações, todas bem adaptadas sob o fortíssimo frio do ar condicionado.

Além disso, diferente das escaldantes fundições de outrora — todas então dominadas por machos da espécie —, agora o que se ouvia não era mais o martelar nas bigornas mas o tlec tlec dos teclados e o coro feminino; uma população de moças perfilava-se nas baias dispostas em fileiras enormes. Uma parte atendia aos clientes queixosos dos bancos e outra parte oferecia empréstimos a aposentados – único corte da população a manter telefone fixo em casa e a levar a sério a oferta das moças. Ainda um bom negócio, com efeito.

As atendentes provinham das rebarbas da cidade e praticamente todas eram mães, muito embora só uma ou outra fosse casada, sobretudo as crentes pentecostais. As demais tinham filho e um certo pai do meu filho de quem costumavam reclamar.

Às cinco em ponto, elas deixavam os galpões. Exaustas, partiam novamente à estação final, sempre a desabafar no caminho indignações contra as chefes perfumadas e de salto alto que iam de carro para casa. Algumas se consolavam e compravam um pequeno prêmio para coroar o dia: um pacote roliço de biscoito recheado sabor morango ou chocolate. Mastigavam o petisco no vagão e alternavam reclamações e piadas internas, disparando resíduos da massa triturada na boca, os quais choviam sobre passageiros sentados. Elas se desculpavam pela distração (ai, desculpa moço); não obstante, não se esqueciam de levar um pacote a mais ao filho que aguardava junto a avó, lá muito longe onde moravam.

Eis a rotina do velho bairro fabril, de segunda a sexta em horário comercial. Mas havia um daqueles galpões que recebia outra leva de trabalhadoras no período noturno. Não muitas, é verdade, e há certa indelicadeza em descrevê-las fisicamente; porém, faz-se necessário para o entendimento do que virá adiante, pois o padrão das fisionomias chamava muito a atenção.

Tratava-se de moças robustas e fortes, umas muito fortes, enormes: uns quadris em redoma, uns braços parrudos e troncos atarracados. Outras eram altas, com pernas compridas e cabeleira florestal. Todas com cara de poucos amigos — embora fossem amigas entre si e andassem aos pares: desembarcavam no início do anoitecer e dirigiam-se ao branco.

Branco era apelido: referiam-se à cor do único galpão deste matiz, que ficava no fim da quadra principal, o último da rua anexa à estação. Àquela hora, de noitinha, os demais galpões estavam fechados para reabrirem apenas na manhã seguinte. Não o branco, que funcionava após o expediente regular e recebia as outras trabalhadoras, daquele jeito e naquele padrão.

Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Não só pelo pouco movimento de populares mas, ora essa, eram galpões de telemarketing: se moças ali chegam com bolsas e mochilas e adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.

Do outro lado do galpão branco, oposto à entrada de pedestres por onde as moças entravam, ficava o estacionamento. Já era noite quando furgões na cor branca e sem identificação encostavam ali. Os utilitários tinham aquelas janelas apenas na frente para motorista e ajudante. Chegavam e buzinavam, apressados. O porteiro oculto na guarita fumê abria e liberava a passagem. Os veículos desciam à garagem subterrânea enquanto o enorme portão de aço se fechava, ruidoso. De novo, tudo normal: no início da noite os carros de entrega são recolhidos às firmas; alguns se atrasam devido ao trânsito e à distância de onde retornam, naturalmente.

Somente por volta da meia-noite, quando a estação final estava prestes a fechar, as moças robustas retornavam a casa. A maioria parecia se banhar ainda no galpão branco, pois o vagão vazio era inundado pela mistura dos cheiros de xampu a evaporarem das cabeças.


Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Ora, galpões de telemarketing: se moças chegam com bolsas e mochilas e ali adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.


2

O branco funcionava todas as noites, exceto aos finais de semana. Nas sextas, uma empresa terceirizada de manobristas organizava um cinturão na quadra do galpão, posicionando setas e placas indicativas em pontos estratégicos.

Então, carros de luxo encostam e são recebidos por manobristas à porta, que abrem gentilmente para damas e cavalheiros. O motorista da vez deixa a chave do bólido de um jeito desdenhoso e arrogante. Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se travasse uma conversa despretensiosa.

Lá dentro, os convidados são conduzidos aos seus lugares. Há camarotes vip para sócios e toda a disposição das cadeiras é circular e dividida em setores, e nos corredores moças longilíneas conduzem os que chegam. Por dentro, o galpão branco é uma arena. Quem olhasse de fora jamais poderia supor.

Todos acomodados, uma imponente voz feminina anuncia as lutas da noite no alto-falante. Destaque para a última, com as principais lutadoras do evento. As luzes giram pela nave escurecida. No centro e no alto, quatro telões exibem cards com as lutas da noite, os nomes e os rostos das combatentes.

No centro iluminado está o ringue em formato octogonal. Antes do match, a tela exibe o logotipo do principal patrocinador do evento, um banco simpático cujo slogan é “mudar o mundo”.

De repente, as luzes se apagam: tudo escuro. Depois, piscam frenéticas como raios multidirecionais. Em seguida, apagam-se de novo, suspense imediato. Retorna uma iluminação vermelho-sangue, e o galpão se avermelha completamente. Apaga. Depois, um facho branquíssimo de cegar surge do alto, bem ao centro do ringue. Há um garoto franzino, quase fantasmagórico sob a luz. Pesa 50 quilos no máximo e aparenta ser adolescente, uns dezesseis anos. Traja uma cuequinha e meias escolares.

A narradora anuncia as lutadoras do primeiro confronto da noite. Elas vão ao ringue. A juíza autoriza “lutem” e elas partem, giram pelo octógono. A primeira desfere um cruzado de esquerda no garoto, que não vê o golpe: vai estonteado às cordas, trança as pernas mas não cai completamente. A segunda o surpreende e desfere um murro na região do fígado antes que o garoto recobre o equilíbrio anterior. Ele tomba em posição fetal. A narradora grita o nome das lutadoras e a plateia vai junto, vibra, assobia.

O menino se ergue e hesita, quer reagir mas teme, algo o impede. Evita bater em mulher, como se a voz da mãe ressurgisse na mente, um eco distante. Decide apenas se proteger com os antebraços. A primeira lutadora puxa seu bracinho franzino e o traz ao centro do ringue. A segunda se atraca a seu pescoço e o sufoca contra os enormes seios.

“Assédio! Assédio!”, grita a plateia, como se pedisse pelo golpe a seguir. Uma lutadora vem pelas costas do rapazinho e lhe desfere um chute de coturno, em cheio. Suas costas claras exibem a marca da sola à luz. Cai de frente. Tenta se erguer. A outra lutadora senta em suas costas e diverte-se, domina-o pelas orelhas. A juíza a repreende, manda se afastar. O garoto tomba no tatame, rendido. A juíza conta até dez e a primeira luta está encerrada.

“O homem perdeu! O homem perdeu!”, grita a plateia. Soa o gongo.


Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se quisesse travar uma conversa alegre e despretensiosa.


3

Segunda luta da noite. São duas capoeiristas de ossatura robusta, altas e magras. Usam um traje branquíssimo composto de calça de algodão cru e camiseta cropped com cortes rústicos. Uma corda preta ata a calça à cintura. As duas se assemelham a uma dupla de percussionistas de axé music.

No centro do octógono empurram um rapazinho de seus dezessete anos, ruivinho, daqueles que existem graças à variabilidade genética nacional. O jovem parece apreensivo na cuequinha de helanca com abertura frontal, peça única que trajava.

A locutora diz os nomes e anuncia o início da luta, faz efeito com a voz. A plateia vibra, grita, assobia alto e prolongado. Embaixo do ringue, um sujeito alto e corpulento com cor de azeviche começa a planger um berimbau com chocalho, ao que imediatamente as duas, depois de um cumprimento de santo, começam a gingar, perna pra lá, braço pra cá, vem e vai.

Elas dançam em sincronia em volta do garoto. Um pé passa rente ao rosto do menino, golpe de ar que o assusta. Se esquiva por reflexo: desvia-se de um lado e vem susto de outro, passa perto; a segunda capoeirista é ágil e ele desvia, se atrapalha. As duas giram e gingam, circundam, confundem, o impedem de sair da roda. Ele esboça um passinho e leva uma rasteira humilhante. “Caiu de bunda!”, a locutora descreve, para delírio da plateia.

O garoto se levanta e assume uma frágil posição de defesa, arqueando as costas e levantando os punhos, como nos filmes. Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino. Ele urra surdo e vai para trás em direção às cordas. O berimbau continua, mais forte e mais rápido, como a ensejar mais ação e movimento.

A segunda sacoleja a cabeleira e dá três estrelas em sequência; na última, baixa com um dos pés a minúscula peça de roupa do garoto que, envergonhado, encobre a genitália com os antebraços. A primeira faz um símbolo com o indicador e o polegar da mão direita, como se indicasse algo pequeno. A plateia gargalha. O garoto vai ao canto do ringue e se encolhe, como a tentar se esconder e esquecer que está ali.

A dupla recebe uma punição pelo golpe proibido e está encerrada a segunda disputa da noite. São desclassificadas. Humilhado, o garoto não se mexe. Permanece agachado, quando um braço imenso o puxa com força desproporcional pelas pernas e o retira por baixo das cordas. O menino berra um ai de dor e a plateia ganha um bônus: gargalha com alguma piada da locutora, um chiste rápido que mal se pôde entender. Talvez ela não devesse dizer aquilo, mas não se conteve.

No fim, outro homem perde. Soa o gongo.


Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino.


4

Na principal luta da noite, as duas lutadoras retiram o manto brilhante e acetinado que as envolve: são Lady B e Mel Massa. Elas sobem ao ringue num pulo e se penduram nos postes: exibem fluorescentes collants como num telecatch: não se sabe a arte marcial que cada uma domina, mas, pelo porte, é fácil presumir que qualquer golpe viria forte e contundente.

Desta vez, os seguranças corpulentos jogam dois garotos ao invés de um só, mesmo padrão: brancos e magrelos, de cuequinha. Parecem meninos de condomínio. A narradora faz questão de anunciar a maioridade dos dois, embora fosse difícil concluir isso à mera olhada. Mas a voz no alto-falante diz aquilo em tom sério e preventivo, como um disclaimer, talvez para não melindrar o sério banco patrocinador cuja marca era estampada nos telões.

Lady B e Mel Massa percorrem o ringue para serem vistas por todos os ângulos. São aplaudidas, aclamadas, ovacionadas. Elas inclinam a cabeça em agradecimento, estalam o pescoço, esticam os braços: profissionais. A luta promete, e elas sabiam que o público aguardava por elas, afinal. Soa o gongo, a juíza diz “lutem” e Lady B dá um salto rápido: atinge um dos rapazes com os dois pés no alto, entre o queixo e o pescoço. Com a cabeça jogada para trás o menino cai sobre o outro enquanto Mel Massa toma distância e se atira por cima de ambos num estrondo. A plateia delira, urra, assobia. O telão central exibe um replay do golpe em câmera lenta. Sincronia perfeita das duas.

O outro garoto parece mais ousado e se ergue. Gira um pouco pelo tatame como se dissesse “não será tão fácil”. Lady B apenas anda e o espreita. Sabe que ele não terá escapatória. O show esquenta. Enquanto isso, Mel Massa aplica uma gravata no menino de cabelo liso, e as veias de sua testa dilatam-se: quando fecha os olhos desacordado, ela o larga ao chão como um pacote inútil. A juíza paralisa e conta até dez. Sem chances. O jovem é puxado pelo segurança, rápido.

A plateia vaia o garoto vencido e fica em êxtase, catártica. A luta recomeça. As duas caçam o rapaz remanescente, que tenta uma ginga ridícula. Sua imagem naquela cuequinha frouxa lembra uma comédia pastelão.

Lady B consegue puxar o elástico da cuequinha, e o rapaz, rápido, recolhe-se por reflexo, esconde a nudez: ela então pula de costas e lhe atinge a têmpora direita com o cotovelo para em seguida Mel Massa cair sobre ele como um piano. Rápido esta sai e gira pelo octógono, recebendo a aclamação da plateia. Lady B nota estar em baixa no ranking de golpes e que a plateia não a aplaude muito, então decide girar com a perna esquerda e acertar com o calcanhar a mandíbula do jovem. Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.

Embora em dupla, as duas lutadoras não pareciam muito unidas como as anteriores. Ao contrário, cada uma queria superar a outra e se consagrar sozinha perante a plateia. Então, vendo que Lady B consegue a façanha de arrancar um dente ao garoto, Mel Massa gira em torno de si mesma como um pião e aplica um chute certeiro na tíbia esquerda do rapaz. Ele tomba de imediato. Ela percorre o octógono como quem pergunta “e então?”, e recebe assobios e gritos eufóricos.

O jovem está caído. A juíza hesita, não vai contar. A plateia silencia por um instante. A câmera de cima mostra o garoto estirado com a perna de um modo estranho, invertida. As duas ainda giram pelo ringue em direções opostas e recebem alguma aclamação, embora mais tímida. Elas não se olham nem se cumprimentam.

Finalmente a juíza se aproxima e faz a contagem. A tela exibe em letras garrafais “homem derrotado!” e a música sobe, junto com os raios de luz.

O segurança puxa o rapazinho com toda a força por baixo da corda e este urra com dores excruciantes. O som alto não permite ouvi-lo, entretanto. Pendurado às costas do segurança, a tíbia esquerda pende e balança, mole. O garoto sai aos berros.


Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.


5

Luta terminada, as duas lutadoras recebem o cinturão. São aclamadas, mas em momento algum se olham ou se falam. Cada uma está ali por si mesma.

Quando descem do ringue, um sujeito da plateia surge repentinamente e aplica um soco às costas da Mel Massa, que se desequilibra e cai. Rápido o segurança cor de azeviche o arrasta e o leva embora para local desconhecido, apertando os braços enormes contra seu pescoço. Uns passos à frente e o sujeito já parece inconsciente.

Lady B ampara Mel Massa, pergunta se está bem. Ela diz que sim, está; mas Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.

“Quero a identidade desse cara, pega aí na carteira dele”, ordena ao segurança corpulento. Ela tira o smartphone do macacão e o utiliza para fotografar a cara do agressor. Enquanto isso, vídeos filmados pelos presentes chegam via aplicativo, documentando a súbita agressão a Mel Massa.


Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.


6

Na semana seguinte, chegam as trabalhadoras ao galpão branco, à noitinha, após o horário comercial. Estão trajadas como qualquer atendente de call center, mas vieram ali para treinar. A semana transcorre normalmente e sem surpresas.

Na sexta-feira, dia da luta semanal, chega um furgão ao galpão. Dele desembarcam motorista e segurança. Do interior saem duas moças longilíneas em trajes sumários, loiras e lindas, que faziam o papel de hostess nos dias de luta. Após elas, desembarcam uns adolescentes uniformizados de colégio. Um deles pergunta “onde é a balada”. Outro, mais afoito, passa a mão no cabelo da segunda modelo e a elogia de “muito gata”. As duas eram iscas.

As beldades os conduzem a uma salinha escura cheirando a mofo e com luz mortiça. Os seguranças os obrigam a ficar “só de cueca”, dizem. Os garotos ainda riem, acham graça. Imaginam alguma aventura amorosa dali a pouco, a primeira da vida. Chegam as lutadoras para o aquecimento e pulam corda no tatame. Enquanto o evento não inicia, os garotos permanecem reclusos, vigiados pelos seguranças. As loirinhas não aparecem.

Lady B e Mel Massa não vieram lutar hoje. Ambas foram chamadas à delegacia da mulher para reconhecer o agressor capturado pela polícia. O vídeo da agressão foi exibido à delegada que, indignada, ordenou a prisão do sujeito em flagrante. Emocionada, Lady B abraça Mel Massa. Aos prantos, ambas comemoram a prisão do homem violento.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 29 (1/9/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Os meninos
consertados

Reportagem exclusiva da revista New Science, edição de novembro de 2048

Tempo de leitura: 7 minutos

QUANDO O GENE DO MACHISMO foi identificado pela dupla de cientistas Meredith Mayer e Sheronda James-Jones, a comunidade internacional vibrou com aquilo que a presidente americana Angela Streep classificou como “a libertação da humanidade”.

Isso porque, graças ao mapeamento da linha machista presente no DNA dos humanos-com-falo, seres popularmente chamado de homens, as pesquisadoras conseguiram remover com sucesso, já no colo do útero e na fase embrionária, o que se convencionou chamar de a linha indesejada.

A linha indesejada é justamente aquela que a dupla Mayer-Jones identificou com elegância e demonstrou ser possível removê-la do código genético, de modo simples e eficaz, como quem remove uma linha conflitante num código-fonte de um software ou aplicativo digital.

“Acho que consertamos um enorme ‘bug de programação’ dos humanos, quem sabe o maior deles”, disse uma emocionada doutora Mayer no discurso de premiação. Ela se referia ao fato de que, a partir da descoberta, em pouco mais de meia década todos os meninos já viriam de fábrica com a linha defeituosa ausente, o que desde então tem sido apontado pelas lideranças globais como a maior conquista da humanidade desde a clonagem da ovelha Dolly, no século passado.

A descoberta chamou a atenção da comunidade científica mundo afora, e gerou repercussão não só nos meios especializados como motivou a comissão do Nobel a laurear as geneticistas com distinção alvissareira. Após uma intensa sessão de aplausos efusivos, a dupla foi ovacionada como popstars na cerimônia de entrega do prêmio.

As primeiras correções genéticas – sintetizadas na forma de vacina de mRNA 7.0 e adquirida em massa pelos principais governos do mundo – causaram alvoroço. A procura foi enorme. A imunização em massa foi administrada em cada canto do país, de metrópoles a vilarejos, de forma ampla e gratuita. Propagandas televisivas com ídolos e influencers da internet de cada país convidavam os adolescentes e crianças a se vacinarem nas escolas, shopping centers e parques da cidade.

A ideia era imunizar cada jovem contra o “gene ruim”, as propagandas diziam, antes que a geração chegasse à vida sexual ativa. Depois, devidamente imunizada, todos poderiam ter filhas e especialmente filhos totalmente isentos de machismo na dupla hélice do código genético.

A vacinação mundo afora foi um sucesso, uma verdadeira revolução. Como previsto, em pouco tempo os resultados se mostraram favoráveis: as taxas de violência contra as mulheres caíram substantivamente. Em alguns locais, houve mais queixas de violência de mulher contra mulher do que de homem contra mulher. Nem mesmo a típica violência de homem contra homem houve como antes, exceto nos cortes geracionais renitentes e não-imunizados, a maioria a caminho da terceira idade. Mas as taxas negativas estacionaram na mediana inferior, o que levou a OMS a declarar meses atrás o machismo tecnicamente erradicado do Ocidente.

Efeito colateral
Isso foi há vinte anos. Tudo parecia ótimo desde a descoberta, até que os primeiros nascituros sem a linha indesejada atingiram a puberdade. Nessa fase, observou-se certas peculiaridades que os novos espécimes machos da humanidade, imunizados desde a gestação, traziam em relação aos equivalentes defeituosos do passado.

Os primeiros imunizados e reprogramados — de diferentes partes do globo e de variadas etnias — foram observados com perícia pela competente dupla Mayer-Jones nos laboratórios do MIT, os mais avançados do mundo. Nos testes, observou-se alguns efeitos colaterais leves, considerados de baixo risco: queda da taxa de hormônio do crescimento na glândula pituitária e ausência de pelos corporais como os espécimes de antigamente.

Além disso, a textura da epiderme e a densidade das fibras musculares dos meninos pareciam muito semelhantes ao das meninas, mais suave e adiposa. A contagem de cabelos no couro cabeludo também equivalia ao delas. Antes, o número de bulbos capilares era tradicionalmente menor nos meninos.

Os testes preliminares não apresentavam nada de muito crítico segundo as premiadas com o Nobel. Diretoras de corporações e chefas de governo, no entanto, causaram certa pressão e desconforto às geneticistas, preocupadas respectivamente com a produtividade em funções específicas destinadas aos machos (trabalhos pesados ou com risco iminente de morte). As governantes diziam não dispor de verbas públicas para destinar a algo como “saúde do homem”, como há meio século se ocupa com a saúde da mulher, termo consagrado, assentado e tradicional nas resoluções da OMS.

Conforme os primeiros anos passaram, observou-se entre os garotos imunizados e reprogramados uma retração fálica atípica, algo como um minúsculo cisto injetado logo abaixo do púbis, sem possibilidade de estender-se. O calo foi apelidado pela medicina de segundo-umbigo, algo como uma protuberância discretamente saliente. Nos testes, as vesículas seminais dos garotos não produziam qualquer substância de tipo viscosa ou seminal.

Testes de indução erógena foram realizados. Após preencherem um questionário de múltipla escolha, os garotos consertados foram submetidos a imagens de meninas atraentes em visores de realidade aumentada iVision, com graus variados de insinuação sexual até a pornografia explícita. No entanto, eles não esboçavam reação. Alguns bocejavam. No monitor, o mapa de calor não indicava mais que manchas verdes e azuis na região íntima dos meninos, o que indicava ausência de circulação sanguínea, e portanto, zero estimulação.

Questionada a respeito, doutora Mayer declarou ser aquilo algo a se observar e não deu maiores detalhes; segundo ela, os garotos do laboratório contavam de quinze anos a dezoito anos e, tudo indicava, suas taxas hormonais chegariam ao ápice entre os vinte e vinte e cinco; era esperar, portanto. Já a doutora James-Jones divergiu da colega: disse que, aos quinze anos, os garotos deviam manifestar certas inclinações psicológicas e psicomotoras que os levassem à atração sexual por meninas, “o que, no limite, garantirá a existência delas no futuro”, declarou. “Sem reprodução humana, não haverá mais meninas. A neo-humanidade estará comprometida”.

Outro lado
Dias depois, nossa reportagem conversou com doutora Mayer em Berna, na Suíça. A cientista é a estrela principal do Global Genetics Summit desse ano, encontro anual de geneticistas promovido pela Organização Mundial da Saúde. Perguntada a respeito da posição da dra. Jones, ela respondeu à nossa reportagem.

“Minha colega de Nobel exagera. Claro, existe a possibilidade de não haver mais intercurso heterossexual como nos tempos arcaicos e patriarcais. No entanto, a espécie humana e sobretudo as meninas do futuro não correm risco, a meu ver. Veja, estou aqui em Berna para acompanhar, entre outras inovações do próximo quinquênio, a reprodução assexuada feminina que hoje é apenas proibitiva por uma questão econômica. Mas os governos vão entrar de cabeça na questão nos próximos meses, e o Banco Mundial irá subsidiar o direito autofecundante das mulheres mundo afora. A autofecundação humana estará disponível a todas elas em muito breve.”

Doutora Mayer se mostra otimista, como de praxe. Embora, no caso dos meninos reprogramados, soube-se que os dois primeiros consertados no DNA faleceram no mês passado, em plena adolescência: um de ataque cardíaco fulminante e outro por leucemia repentina, sem qualquer histórico familiar ou fator de complicação anterior.

O fato ligou um alerta nos críticos, especialmente nos grupos gays conservadores. Nos países de Primeiro Mundo, mulheres com posses já compram, com ágio e no mercado negro, sêmens de machos arcaicos congelados. Há relatos de fazendas seminais (seminal farms) na Holanda, Bélgica e na própria Suíça onde dra. Mayer está a palestrar. Cada frasco congelado custa uma fábula estimada em milhões de dólares. O artigo ficou raríssimo.

Alguns discutem importar espécimes da África profunda ou da Índia, mas especialistas temem lidar com uma criatura desconhecida da humanidade moderna, há décadas livre do macho arcaico. “As consequências seriam imprevisíveis”, disse uma alarmada dra. Jones, “você pode ver um leão nas fotos e nos vídeos da TV e gostar, mas ninguém quer um leão no carpete da sala”, declarou.

O fato é que os dois primeiros jovens consertados morreram, e há relatos de outros meninos consertados morrendo ao redor do mundo, todos por causas semelhantes. Em certos países, alguns deles passaram a relacionar-se afetivamente entre si, assexuadamente. A repetir o padrão, a reprodução humana inviabiliza-se. Todos se afastam naturalmente das meninas do ponto de vista afetivo. Providenciais vacinas de reversão-homo têm sido administradas nas escolas para tentar mitigar o efeito, em caráter de urgência. Por enquanto, sem sucesso.

Observação de campo
Nossa reportagem foi a Palm Lake, em New Jersey, vilarejo pioneiro na imunização e correção da linha defeituosa nos meninos. Entramos num colégio público famoso por ter todos os alunos imunizados desde as primeiras campanhas. Observamos de longe o comportamento dos alunos, todos do ensino médio — adolescentes, e portanto, na fase do flerte e da paquera — e conversamos com alguns daqueles jovens.

As meninas dizem não se atrair pelos garotos consertados, embora reconheçam a segurança de estar entre amigas mesmo na presença dos meninos. Todos somos amigas, disseram. “Amigas?”, perguntamos a uma aluna. “Sim”, ela respondeu, “lidamos com amigas e amigas um pouco diferentes, nada além disso”. A escola foi emblemática no passado, com histórico de muita violência simbólica de gênero. As manchetes estamparam os jornais. Hoje, a diferença no ambiente se mostra gritante. Ou melhor, silenciante, isto é, sem grito algum.

Os garotos consertados são reservados. Ficam pelos cantos, em pequenas turmas. Alguns permanecem totalmente isolados, e todos parecem tímidos e pacatos, até um pouco amedrontados. Ao perceberem nossa presença, saem do local e se afastam. Parecem evitar uma abordagem. Numa roda, em meio a meninas vimos um menino consertado, cujo longos cabelos loiros elas alisavam e encaracolavam com os dedos, aos risos. Colocaram o garoto no meio da turma e o tratavam como se estivessem num salão de beleza, fazendo comentários a respeito de hidratações e shampoos que dão brilho capilar.

Enquanto isso, relatórios independentes dão conta de que a mortalidade masculina jovem anda numa proporção de 39:1 em relação a meninas. A prosseguir neste nível, estima-se que em duas décadas não haja mais meninos nos países imunizados.

Doutora Mayer atenua: “acho improvável. Mas digamos que aconteça, no limite? Fariam falta? Sempre digo, aquelas que quiserem podem consultar a internet e as bibliotecas e ver gravuras de quando homens arcaicos caminhavam sobre a terra. E eu diria a elas, se estivesse por perto: vocês estão bem e em segurança porque estão sem eles.”

De volta ao colégio secundário de Palm Lake, nossa reportagem notou como algumas meninas tem raspado o cabelo e imitado o visual de homens calvos do passado, uma moda propagada via TikTok. “Quero ser o Jason Statham”, disse uma delas, sorrindo. “Vejo os filmes dele e pareço com ele agora, não pareço?”

Não parece: a reportagem ia responder, quando outra menina puxa o rosto de nossa Jason Statham a si e a beija nos lábios: “está igualzinha, meu bem. Mas livre do machismo”. A turma toda gargalhou.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 25 (7/7/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O gordinho
do videogame

Tempo de leitura: 6 minutos

Na rua tinha a turma e tinha o gordinho do videogame. O pessoal falava que a mãe dele era gerente de banco e acho que era a única mulher da vizinhança que trabalhava fora. Nossas mães eram só mães mesmo, e isso não era pouca coisa não.

Mas a mãe do gordinho do videogame era a única que trabalhava fora e saía de carro para trabalhar, um carro novinho e grandão igual ao do Antonio Fagundes na novela. Quase ninguém tinha carro na rua. O pai do Binho tinha um Passat cor de pamonha que derramava óleo e o pai do Zóio tinha uma Belina que parecia abóbora descascada. Só eles tinham carro. Mas a gente nem ligava pra isso, a gente nem saía muito do bairro. Tudo era pertinho: a escola era pertinho, o mercado era pertinho, a feira, a padaria, a banca de revista, o campinho. Tudo pertinho. A gente nem pensava em carro.

Acho que a mãe do gordinho não deixava ele sair na rua pra não se misturar com a gente. Mas a gente não era moleque de rua não, a gente só brincava na rua depois da escola. Eu nunca faltava na escola e só tirava nota azul. Eu até gostava de estudar, e também meu pai que trabalhava na fábrica de geladeira dizia que, se eu repetisse de ano, tomava uma surra.

Uma vez eu vi no comercial que perto do Natal a gente podia colocar uns bilhetes na camisa do pai escrito assim, “não esqueça minha Caloi”, mas só se passasse de ano. Meu pai falou que ele trabalhava muito e que estudar era nossa obrigação, que Caloi o quê. Daí eu disse que o Fábio — que era meio bacana igual o gordinho do videogame mas brincava com a gente — o Fábio ganhou uma Caloi Cross do pai dele. Só que depois que ele ganhou, não brincou mais com a gente: só dava pinote na descida e empinava a bicicleta lá no final da rua. Acho que ele corria pra ninguém chegar perto e pedir pra andar.

*      *      *

Um dia, a mãe do gordinho do videogame começou a falar com um ou outro menino da turma. Sei lá, acho que ela queria testar quem falava o melhor oi, fosse mais educado: quem falasse o oi mais educado não ia ser moleque de rua.

Acho que venci o concurso de oi educado, porque a mãe do gordinho foi falar com a minha mãe depois — que foi atender o portão secando as mãos cheirando a cebola no avental — e a mulher perguntou se eu podia ir lá na casa dela brincar com o gordinho do videogame: “ele tem um videogame”, ela disse.

Eu já conhecia videogame, ué. Queria o Atari que vendia no Mappin, mas meu pai disse que era caro e queimava a televisão. Quando meu pai dizia não, eu nem insistia mais. Porque birra ele acertava na cintada, não tinha frescura. Quando ele dizia não, aquilo sumia da minha cabeça, puf, nem quero mais. Foi assim com o Atari.

Então minha mãe me levou no outro dia pra brincar com o gordinho do videogame na casa dele. Ó, eu não gostava daquele moleque, não queria ir lá. Falei pra minha mãe e ela me torceu um beliscão, “fica quieto, se comporta”. Então fui brincar com aquele moleque. Bosta, viu.

Sentei no sofá que quase me engole de tão mole, eu não achava jeito sentar naquilo. No começo, o gordinho parecia meio legal. Mostrou o castelo de Grayskull todo completo dele e depois a coleção do Comandos em Ação. Eu sabia, via no comercial. Caramba, ele tinha tudo que passava no comercial. Eu via aquilo tudo afundado no sofá, daí ele pegava cada bonequinho do He-Man e me explicava o nome, como se eu não soubesse. Bobão. Eu assistia o He-Man todo dia, vi todos os episódios até repetir tudo de novo, claro que eu sabia tudo. Ele até confundiu o Ciclope com o Fera. Eu nunca ia confundir isso.

Todo brinquedo que ele me mostrava eu falava “legal”. Ele nem deixava eu pegar nenhum direito, fora que eu fiquei com medo porque minha mãe avisou “não mexe em nada lá, viu?”. Quem disse que eu ia mexer? Aquela casa parecia uma loja, meu pai não deixava a gente ficar mexendo em brinquedo na loja. Depois se quebrasse ele tinha que pagar.

Depois o gordinho falou “fica aí” e foi buscar alguma coisa na geladeira bem grandona da cozinha. Pegou uma garrafinha de vidro com Toddy lá, não sei o que era, meio leite meio sorvete. Ficou tomando. Quando acabou, ele me chamou para o quarto onde ficava o videogame. Engraçado, ele tinha uma televisão só pra videogame? Eu achava que ninguém tinha outra televisão em casa, só podia ter uma. Lá em casa só tinha uma Sharp, colorida. A gente assistia de dia, a mãe de tarde e o pai de noite. Mas o gordinho tinha um Atari com dois controles e uma televisão só pra ele! Muito boyzinho…

Daí ele aperta aqui aperta ali e liga o negócio. Pega um controle e diz que o outro tá quebrado, “essa droga”. Também, ele puxava a alavanquinha parecendo que tinha raiva, tinha pressa. Lembro do joguinho que apareceu na tela, Homem-Aranha: o Homem-Aranha tinha que subir no prédio sem cair. Bem legal, viu.

Aí entendi porque o gordinho não tinha amigo. Ele falou “eu sei jogar, quer ver, duvida? Olha o que eu faço, ó, ó.” Eu nem falava nada. Até quis jogar um pouco, me chamaram, né? Teve uma hora que ele cansou, daí o videogame parou, a tela ficou preta. Aí ele tirava o cartucho e enfiava de novo com raiva. Nem era meu videogame e eu tinha medo que estragasse. Se fosse lá em casa, eu já tinha levado uma chinelada.

Daí o negócio funcionou novo, e ele todo suado falou “ô, quer jogar aí?”, daí eu falei “quero”. Eu nunca tinha jogado, nem sabia segurar o controle direito. Mas mexi com calma, devagarzinho, e consegui. Deu certinho: o jogo começou e eu fui mexendo devagar a alavanquinha, depois apertava o botãozinho vermelho, mexia, girava a alavanquinha… o Homem-Aranha começou a fazer uns movimentos diferentes, bem legal. O gordinho não gostou, tomou o controle com tudo da minha mão e disse “sai, você não sabe jogar”, aí ele tentou fazer aquele negócio que eu fiz e não conseguiu. Ele tentou várias vezes, aí deu um socão na televisão e disse “esse negócio quebrou, acho que foi você, né” e eu não entendi nada mas fiquei com medo, será que eu fiz alguma coisa? Se minha mãe ficasse sabendo e contasse pro meu pai, eu ia tomar uma surra.

Depois a moça empregada chamou a gente pra almoçar e eu não consegui comer de tanto medo. Também a comida era diferente e muito ruim, não sei o que era aquilo. Eu queria arroz, feijão, bife e batata-frita que minha mãe fazia. Aquilo ela um negócio verde enrolado que eu quase vomitei.

Daí o gordinho falou “vamos jogar bola lá fora”, aí a gente foi pro quintal dele. Eu só jogava bola na rua e no campinho, jogar no quintalzinho era ruim porque não tinha espaço. Mas nessa brincadeira eu era melhor, daí falei “então vamos fazer um golzinho aqui, ó” e coloquei uma trave de vasos lá. Ah, eu dibrava o gordinho e ele suava com aquela bochecha toda rosa, aquele cabelo caindo na testa. Botei ele de bobinho e fazia um monte de gol e ele ficou com tanta raiva que puxou minha camiseta, quase rasgou. Depois ele falou “foi você, foi você” e eu fiquei com medo de novo. A camiseta estragou, já era, minha mãe vai me bater.

*      *      *

A campainha tocou e era minha mãe. Ela só olha com cara feia pra minha camiseta e não fala nada. Ia sobrar pra mim, duvida? Ela fala um negócio com a moça empregada e me leva pra casa. Fiquei esperando a bronca, a surra, não sei. Não aconteceu nada, ainda bem.

Na outra semana, a mãe do gordinho veio falar com minha mãe de novo. Achei que o gordinho me dedou, aquele cuzão (não pode palavrão, limpa essa boca). Não foi nada, ela pediu pra ir lá brincar de novo. Minha mãe disse não, não ia dar não. Então não fui naquele dia e não fui lá nunca mais.

*      *      *

Sei lá, por isso nunca gostei muito de videogame. Depois do Atari veio o Master System, depois veio o Mega Drive, veio o Mini Game. Nem pedi nenhum pro meu pai. Também, ele me deu uma bola igual a da Copa e uma camisa do Brasil do camelô. Depois do jogo, eu jogava bola na frente de casa, eu era o Zico e o Careca às vezes.

Depois eu comecei a gostar de gibi e comecei a desenhar tipo o desenho do gibi. Eu gostava de desenhar e gostei tanto de ler gibi que nem quis saber mais de videogame. Agora eu era o John Byrne, o George Pérez e o Frank Miller.

Um dia, quando minha mãe me deixou andar sozinho no bairro, fiz questão de passar na rua do gordinho do videogame, só pra ver. Nossa… o sobradão parecia abandonado, a pintura descascando, o portão enferrujando. A casa tinha uma placa de “aluga-se” toda gasta, torta.

Eu acho que a mãe gerente de banco não morava ali faz tempo. Ah, o nome do gordinho era Jonathan, viu. O pai dele nem sei, nunca vi.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 21 (12/5/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Samuel,
nobre Samuel

Tempo de leitura: 6 minutos

Nunca fui amigo de Samuel Ribeiro, embora quisesse sê-lo no início, quando o conheci. Acompanhei seus primeiros passos nas letras por alguns anos, quando o lia nos idos de dois mil e poucos num blogue. Aliás, lamento minha nesciência — defeito do qual o Aquinate diz, com todas as letras, isentar do inferno e da perdição seu portador — e me sinto aliviado, embora um pouco constrangido. Explico: é que apesar de gostar um bocado dos escritos de Samuel à época, jamais imaginei ser ele quem era. Samuel é rebento do pai Affonso, o grande jurista e escritor Affonso Ribeiro Albuquerque, nobre, descendente direto dos barões de São Paulo de Piratininga e membro emérito da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a cadeira de número dezenove e amicíssimo de dona Lygia Fagundes Telles.

O mundo é pequeno, e meu conhecimento deveras menor: quem diria que o jovem Samuel Ribeiro tinha linhagem e seguia a tradição familiar das belas letras – embora, devo dizer em seu caso, não tão belas; diria perspicazes. Sim, pois apesar de Samuel mostrar inegável verve e picardia, e apesar de gostar um tanto além da conta da iconoclastia a ilustres, bem, eu não podia afirmar assim, com a mão na consciência, que o jovem fosse lá muito brilhante na escrita. Não como o pai, ao menos. Não, não. Mas mostrava wit, sem dúvida, talvez como talentoso jornalista. Nada que o desabone: jornalistas às vezes tornam-se homens de letras, Euclides da Cunha não me deixa mentir. De sorte que era deixar Samuel a cargo do tempo. Estava jovem ainda, como eu, seu fã; fã em termos, sem ardor; fã um pouquinho.

Ora, o tempo acomete a todos, a juventude inclusive. E eu, levado por mil circunstâncias as quais seria enfadonho elencar, afastei-me dos textos de Samuel por uns tempos. Vicissitudes. Anos depois, quando acesso o blogue novamente, vejo que está fora do ar. Pena: passados alguns anos, queria saber em que pé andava a formação literária de nosso jovem prodígio, em que pese naquele tempo próximo passado eu já ter descoberto sua origem nobiliárquica, soube ser filho de quem era.

Deixei estar, paciência. A vida e seus desencontros.

Então, certo dia, fiquei feliz ao tomar conhecimento de que Samuel Ribeiro saiu de seu blogue amador para um grande portal, o maior do país: surpreso, constato que o talento que eu identificara lá no início não foi apenas senso de desbravador, de olheiro. Mais alguém lia Samuel, tudo indica; alguém importante. Sim, e que bom para ele. O bloguezinho rendeu frutos…

Volto a lê-lo, agora no grande portal da internet. Noto que o tempo fê-lo adquirir alguma gravidade, olho sua expressão séria na foto preto e branca que o identifica. Abaixo da assinatura, consta mestre nalguma coisa, de modo que ele avançou também na vida acadêmica. Não sabia do mestrado. Segue uma carreira bem trilhada o jovem Samuel, agora não tão jovem: anda aí pelos trinta e uns e está casado. Ocupa um espaço merecido, suponho, em que pesem a fidalguia e o renome. Repenso, não fui feliz na colocação: a malícia quer insinuar contatos paternos a pessoas certas, algo que tornasse a trajetória de Samuel algo mais fácil. Maldade. Era ler Samuel e ver sua argúcia ainda ali, patente em cada sarcasmo, em cada ironia; não fina ou machadiana, mas ironia ainda assim, sem dúvida.

Firme na grande mídia, Samuel trocou a perspicácia do início por outro tom, bem-pensante e fundamentado: escreve como quem se profissionalizou e absorveu as sensatezes recomendadas e as vertia agora ao texto. Jamais se opunha aos grandes consensos, mas os conciliava com compreensão de jovem esclarecido, feito um irmão mais velho que explica as decisões do pai ao caçula rebelde. De todo modo, Samuel concordava: rodeava e rodeava, mas sempre concordava. Jamais arriscava uma originalidade, um nome incomum, um atrevimento leve de quem bebe de outras fontes. Em seus artigos, transforma uma prevenção temerosa em esperta manutenção da carreira: arroubos nunca, jamais, sob pena de chocar o respeitável público que agora paga para lê-lo. De sorte que ele vertia o latim sempre com os pés no chão e sem jamais elevar o espírito.

*      *      *

Quanto a mim, a milhas da fama e sem qualquer nesga de fidalguia, busquei na literatura que admirava e na contemplação das artes que me eram acessíveis aquilo que me livrasse da média de cafezinho de escritório. Achei algo que me mostrou algum escape para além do ramerrão corporativo, das ordens sem justificativa dadas a meros técnicos como eu.

Não fosse a literatura — pela qual me apaixonei como se a mulher da minha vida — viveria a mesma vidinha besta de cidadão comportado e bem criado pela família operária: iniciaria e terminaria os dias (semanas, meses, anos, décadas) do mesmo jeito: trabalha, cansa, descansa, trabalha, cansa, descansa. Tudo isso no mais insignificante anonimato, na mais miserável irrelevância.

Não que eu buscasse o arrivismo; como poderia, sem nem estar nos salões? Só queria um espírito mais cultivado por dentro e uns meios de expressão por fora. Contudo, nem mesmo isso é fácil como se supõe (se alguém supusesse; ninguém supõe nada que envolva literatura referindo-se a técnicos; não há tal mistura de quesitos na média classe-média.)

Então penso o quão bem faz um sobrenome. Ora, ninguém negue, facilita muito. Digam logo inveja, não importa; mas se tivesse a linhagem de um Samuel Ribeiro, se como ele fluísse a nobreza nas veias, certamente não me faltariam canais para verter os vislumbres a que chegava ao ler o filósofo num trem ou o romancista num ônibus.

Samuel podia isso e muito mais. Ainda pode e, no entanto, nunca demonstrou um enlevo, um único que fosse. Nada o consegue surpreender, nada o encanta, nada o fascina. Agora em áudio e vídeo, suas falas sempre rastejam no pedestre esclarecido, no banal bem alimentado que se sabe especial, no fundo; jamais cita o poema belo, o trecho sublime, como se não os houvesse (ou soubesse).

Quando perguntado, autores de primeira grandeza descem à normalidade de um zé-das-couves em sua boca, exceto se o consenso instruir o contrário. Tudo lhe parece trivial e perfeitamente ignorável a princípio, tudo, tudo. O meu ótimo é apenas o passável dele e o meu excelso apenas seu razoável. Nada merece a admiração de Samuel, na melhor das hipóteses um reconhecimentozinho, quiçá uma concessão – ele jamais passa da oficialidade uniforme e da opinião de carimbo.

*      *      *

Não acho que eu seja o exato oposto de Samuel, mas estou paralelo a ele. Não nos oporíamos frontalmente, apenas nos separamos na bifurcação das paixões: seguimos diferentes trilhas do destino que jamais se cruzarão, tudo leva a crer. De cá, à distância — e obviamente sem ter circulado nos meios em que ele circula desde menino, quando decerto fazia reinações nos ilustres jantares do pai —, dediquei-me a uma carreira recente e incerta de escritor, e pus o ponto final num manuscrito há coisa de três meses.

Publiquei o livrinho, caprichadinho, um pequeno orgulho. Guardo uma esperança ingênua de autor novato e não escondo um sonho de que um mecenas sensível consiga me achar por aí. Seria um belo acaso do destino. Todavia, tivesse um Ribeiro Albuquerque nos registros, um simples telefonema escancararia as portas, e eu andaria nos tapetes vermelhos, a receber boas-vindas e sorrisos receptivos. Uma vantagem que a nobreza dá a poucos eleitos.

O que me resta? Como predica o apóstolo, ter fé, esperança e amor – o quinhão dos pobres. Caprichei no trabalho, agora é esperar a colheita: uma década de desânimos, reânimos e abnegações, condensadas em três centenas de páginas. Deus me ajude.

*      *      *

Um dia, vejo Samuel num vídeo da internet. Com aquele ar de eterno vestibulando, com aqueles all-star nos pés e jeans surrado de quem disfarça ser quem é, ele comenta a respeito de meu livro numa entrevista. Não é possível! Como chegou a ele? Ouço tudo com calma, volto o trecho várias vezes. Guardo bem na memória o melhor adjetivo que ele me concedeu: “esforçado”.

Esforçado? Puxa…

Não reclamo do elogio nem digo que é mentira. Realmente foi um esforço escrever o romance; embora fosse mais que esforço, foi algo do coração, houve um derramar da alma ali. Eu disse alma, coração? Duas palavrinhas que jamais vi Samuel Ribeiro Albuquerque pronunciar, me dou conta agora. Pois não seria a primeira vez aquela, justo quando falava de meu modesto – e esforçado – livrinho publicado há poucos dias.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica edição 19 (14/4/2024)



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Clarice e o
claricismo

Tempo de leitura: 2 minutos

Por volta de 1975, por aí, chegou ao conhecimento de dona Clarice Lispector que três escritoras do território nacional inauguravam o gênero literário claricismo. O claricismo consistia numa escrita toda calcada em epifanias, porém de segunda mão, baseada nos livros da autora.

Epifanias em nada parecidas com as reais de dona Clarice, que à altura não era nenhuma mocinha e já andava meio irritada com tudo e mais um pouco (“cansaço”, mentia, se perguntada; no climatério, queria mesmo é que não lhe enchessem os pacovás).

Os tais livros de claricismo irritavam a autora, pois continham apenas anacolutos com pontuações de soluço e alegorias fracas (“minha dor não tem nome” etc). Dona Clarice, então, disseram, ficara tão pê da vida por tentarem imitá-la sofregamente — justo ela que detestava se ler, imagine ler cópias ruins de si —, então ela ficou tão pê-da-vida que decidiu sentar-se com sua Olivetti verdinha no sofá e escrever uma novela sem epifania de coisa nenhuma, uma novela de macho narrada por macho, uma novela bem da machista com final decepcionante, não só trágica como besta, ou trágica de um jeito besta.

Dona Clarice então criou um narrador fictício Rodrigo S. M., que contava a história de certa alagoana vinda ao Rio de Janeiro só para sofrer, menina bobinha de nome Macabéa. Dona Clarice mal coloca o ponto final e intitula seu livro A abestalhada, mas depois o editor lhe telefona, aconselhando para ser aquela mesma Clarice de sempre, pelo menos no título, posto que ela vendia bem e coisa e tal.

Então dona Clarice pensou “vou dar um título meloso e tapear essas fulanas da cópia barata”, e ela dá ao livro o título de A hora da estrela — que de estrela mesmo não tinha nada —, só para enganar as plagiárias, e este foi seu último livro publicado em vida.

Bem, essa história jamais existiu. Porém o claricismo existe e perdura até hoje. Inventei a lorota, inclusive para dizer que dona Clarice narrando como homem fez foi muito bem e, creio eu, melhor que muito homem com agá. Se viva, certamente ela faria mais do gênero e daria uma guinada na carreira, isso se antes a vida não lhe desse outra guinada logo à frente, guinada sorrateira, guinada traiçoeira e guinada lamentavelmente triste.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/07/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A lição de
João Cabral

Tempo de leitura: 5 minutos

Trabalhei na famigerada Faria Lima entre 2013-15, no departamento de marketing de um banco não muito famoso. Como minha hora de almoço fosse mais prolongada (1h30, mas se passasse um pouco não tinha problema), eu aproveitava o intervalo para, além de obviamente almoçar, caminhar um pouco.

Andar sozinho não era problema para mim, pelo contrário. Aproveitava a caminhada para refletir e observar ao redor, algo que adorava e adoro fazer. Foi assim que descobri a biblioteca Anne Frank, meio escondidinha ali no bairro: toda murada com tijolos aparentes, o predinho térreo tem uma bonita arquitetura dos anos 1960 e, com charme peculiar, resiste discreta aos espigões envidraçados das redondezas.

Pois ali repeti um feito da puberdade, aos 12 anos: fiz uma carteirinha da biblioteca pela segunda vez na vida (agora aos 34), não sem antes assinar a entrada no livro de presença da recepção. Aquilo me trouxe certa emoção do passado.

Eu pegava livros de poesia emprestados para ler no Parque do Povo, a poucos metros dali. Certo dia, resolvo levar uma antologia de poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto, cuja obra não conhecia até então, só ouvira falar o nome.

Quando me aproximo do balcão da recepção, lembro bem a cara de espanto do bibliotecário, um senhor de cabelos brancos chamado Sérgio, “Seu Sérgio”. Ele disfarça a surpresa — com toda razão, imagino —, pois nenhum farialimer, mesmo técnicos do baixo escalão como eu, costumava entrar naquela biblioteca pública municipal para levar emprestado qualquer livrinho, quanto mais um volume de poesias.

Mas lá estou eu a ler o João Cabral no parque, quando este breve poema chamou-me a atenção:

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Como tivesse de devolver o livro dali a uma semana, fotografei o poema com o smartphone e o guardei. Tenho até hoje a foto nas clouds da vida e ainda o releria outras vezes. Não sei, aquilo de certo modo ficou na minha cabeça, pelo seguinte: no período, eu começava a tomar umas notas que me vinham à mente — alguns versos de pé quebrado, umas reflexões; frases, epigramas, máximas; às vezes, anotava impressões a respeito de certas situações da vida e do cotidiano; tudo muito pessoal e subjetivo. Mantinha uma espécie de diálogo interno por meio daquelas anotações, também com a intenção de treinar a escrita.

Passado um tempinho, o material se avolumou, ganhou corpo; e eu ficava pensando se aquilo não serviria para algo mais sério, para publicar de algum jeito. Mas logo me retraía, pois lia gente bem melhor e mais experiente que eu a publicar ótimos textos em blogs e a ganhar popularidade nas redes sociais, com mérito justificado.

Embora chegasse a arriscar um bloguezinho de poesia e outro de prosa com aqueles textos, não dizia a ninguém, pois no fundo não me achava muito no direito de sair divulgando aquilo. Achava que fazer uns versos e uns textinhos pretensamente inspirados e sair compartilhando por aí só aborreceria aos outros, quase ninguém se interessaria pelas tentativas de um anônimo. O mundo não precisa de mais um diletante, pensava.

E não nego que ainda penso assim, vira e mexe o pensamento volta. Essas coisas nunca desaparecem totalmente. Aquele retraimento ainda ocorre hoje, embora de modo diferente. Varia de dia para dia, ora mais, ora menos, conforme o humor e o astral, digamos assim.

Voltando ao poema, imagino que o diplomata João Cabral — já imortal da ABL à altura da publicação, em 1975 — tivesse rabiscado aqueles versos em sua mesa de trabalho, como quem não quer nada; e, meio involuntário, fez uma peça importante (para mim, ao menos), enquanto aguardava na embaixada em Mauritânia um possível telex da capital federal — que decerto não mandavam tanto a terras tão ermas.

Mas que tem o poema de especial, em cujo sentido refleti depois de ler e reler algumas vezes?

Que toda arte ou mesmo tentativa de arte que fazemos, não importa o quão amadores sejamos, nunca será à toa, em vão; que aquilo que com sinceridade e entrega escrevemos — ou pintamos, desenhamos, compomos, cantamos, enfim —, tudo que expressamos artisticamente, uma vez divulgado, servirá de algum modo a alguém, nalgum momento e lugar; e que, justamente isso de chegar ao outro, ainda que somente a uma pessoa, valerá a pena este esforço do fazer, como diz o poeta recifense, mesmo que para criar algo tenhamos de abrir a fórceps o tempo diário e conjugar o trabalho criativo com outras tarefas a comprimir as horas do dia.

Pois costuma ser assim: de tantas prioridades aparentemente mais importantes que a criação artística livre e espontânea — sempre sujeita ao desânimo e ao abandono, pois demandada por absolutamente ninguém exceto nós mesmos —, deixamos de lado o registro de nossa expressão autêntica (que vale muito, mesmo que ninguém dê a menor pelota), e os anos passam, a vida passa… e deixamos o potencial artista em nós simplesmente morrer. É o caminho mais natural, que mais ocorre todos os dias com tanta gente, em variadas partes do Brasil. Tenho certeza.

O poema cabralino se dirige ao “artista inconfessável” — epíteto que o poeta atribuía a si, inclusive. Claro que, no nosso caso, embora quem sabe sejamos inconfessáveis por justas razões, não somos nem devíamos ser isentos de interesses. Temos em nós todos os sonhos do mundo, já dizia outro poema. Quem não gostaria de viver de sua arte, de sua criatividade e ofertá-la de bom grado a quem possa interessar? Quem não queria ver-se livre das contingências, da esterilizante responsabilidade diária, do trabalho alienado, e dedicar-se a algo belo, significativo, relevante?

Sim, queremos tudo isso. Sobretudo porque pouquíssimos nesta sombra do Ocidente podem viver da própria obra e dedicar seu tempo a ela, enquanto contempla a vista de sua bela casa campestre. No dito mundo civilizado, tal privilégio não costuma ser tão raro como aqui.

Bem, mas nada de lamúrias: sonhemos, que sonhar não custa nada, diz o chavão. Como João Cabral e seu “artista inconfessável”, sejamos impelidos a criar e fazer, apenas por fazer, apenas porque sim; pois a obra nunca será vã ou dirigida a ninguém, diz o poeta. Ela será útil a alguém — ainda que se chame Ninguém —, e sempre chegará num lugarzinho diferente de onde partiu, mesmo que jamais saibamos disso.

Ora, a prova está bem aqui, não? O poeta-embaixador nunca pensaria que certo fulaninho leria seu poema no século vindouro, tirasse lições dele e tratasse dele no futuro, divulgando-o para mais gente, numa corrente de transmissão invisível e dinâmica. Pode não parecer, mas afinal isso denota um poder grandioso e sutil, o poder contido no simples ato de criar.

Logo, significa que não há arte verdadeira que seja inútil, pelo contrário; se impelido, se chamado, o artista inconfessável deve somente fazer e deixar o resto com Deus e com o destino.

Mãos à obra, pois.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/06/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Zé Lins ensina
a ironizar

Tempo de leitura: 5 minutos

Ainda leio jornal que suja a mão, no bom e velho papel. Faço isso desde guri, quando meu pai lia o Diario Popular (sem acento no “a”, mesmo) ou a Gazeta Esportiva, ambos de São Paulo, extintos. Pouco mais tarde, na adolescência, minha irmã mais velha encasquetou de ser jornalista e, em busca de referências, muniu-se de periódicos mais chiques: a Folha e o Estadão. Lembro especialmente das edições dominicais desses jornais, que pesavam por volta de um quilo cada exemplar. Era leitura para a semana toda. A partir de então, aprendi a ler colunistas, não sei porquê. Não parei mais. Eu devia ter o quê, uns onze, doze anos.

Leio colunistas hoje em dia: malgrado exceções muito honrosas, na maioria remanescentes do cenozóico, há uma entressafra no colunismo de dar dó. Dó do leitor. Sobe-me uns pudores por dizer o que direi, contudo é preciso: tem gente a assinar colunas que eu sinceramente não sei bem o que faz ali, para além do eventual ganho monetário. Não falo de concordância ou discordância de ideias: leio com frequência gente de quem discordo, desde que maneje bem a língua de Camões; aliás, ganham-me assim. Mas da tal entressafra, a imagino caída de paraquedas, encaixadas no veículo de imprensa por coincidências incríveis ou espertezas inimagináveis. Não sei bem.

Recentemente, dois desses privilegiados queixaram-se no Twitter de que fizeram colunas irônicas e foram mal interpretados. “Onde está a compreensão textual?”, pareciam dizer, expoentes da clareza e do bom estilo que são. Aham. A julgar pelas réplicas de leitores nervosinhos, diziam, o pessoal não entende uma simples ironia. Será? — pensei com meus botões. Porque, sendo ambos produtos da entressafra, eles não são lá muito hábeis na arte de ironizar. A figura de linguagem é coisa fina, reservada a mestres. Quero dizer: souberam eles trabalhar o recurso para que o pobre leitor entendesse, de bate-pronto? Porque, suspeito, o problema talvez fosse outro. Talvez fossem maus textos, aqueles. Eis a dura verdade.

Sustento a tese de que figuras de linguagem bem aplicadas, a ironia em especial, são captadas de imediato pelo leitor médio. Por avançados, nem se fala. Digo captados no efeito, não na definição semântica. Também quereria explicar que ironia não é sarcasmo — que é exagero carregado e amargo; nem galhofa, que é o atropelo da sutileza. Entretanto, não me dou a didatismos. Não sou professor de estilo, nem me arvoro a tal.

Para tirar a limpo, replico abaixo um texto do escritor José Lins do Rego, a que tive acesso recentemente. Não apontarei ironias: veja por si a gentil leitora, o gentil leitor, como o autor de Menino de Engenho, Fogo Morto, Riacho Doce e grande elenco maneja o idioma. E aproveite para deleitar-se com a verve do mestre, assaz melhor que a desta irrelevância, e elemento faltante à nova geração do colunismo. Volto em seguida:

Carta a Escorel

“Recebi, meu caro crítico, a sua carta onde volta a tratar de clássicos e românticos. É pena que eu não disponha de espaço para transcrevê-la, pois se trata de missiva muito bem escrita, embora não tanto bem pensada.

Em princípio não afirmei que as suas preocupações anti-românticas fossem caminho em rota batida para o reacionarismo político. Temi, somente. E temor de quem já vira outras grandes vocações como a sua tomarem por estradas perigosas. Sei de sua honestidade intelectual e me alegro em sentir em mocidade tão vibrante, e generosa, desejo de debater e, sobretudo, de compreender.

Agora, meu caro Escorel, vou lhe ser franco, muito franco: o seu horror ao romantismo, isto de querer colocar a questão entre liberdade e licença, isto de falar de anarquia, tudo isto não me agrada. Os déspotas sempre que se depararam com o problema fundamental da liberdade vinham logo com esta palavra de licença, para confundir e meter medo. Para todo aquele que se batia pela liberdade, o déspota tinha a chave: “estes que gritam pela liberdade só desejam a licença para destruir a ordem”. Confesso-lhe que não gostei de ver a sua mocidade com palavras de raposas sabidíssimas.

Outra coisa também, com que não me conformo, em sua carta, é querer você atribuir ao romantismo os crimes do nazismo. E querer botar em cima de Wagner e de Nietzsche as culpas desta guerra. Por que confundir o crime com o romantismo? O que existe no nazismo não é uma exasperação romântica como você diz, o que existe ali é somente fúria assassina. E fúria assassina ordenada, conduzida com o maior rigor, dentro de normas, ao compasso de marchas de gansos, tudo elaborado com a mais requintada gramática latina. Hitler é filho germânico de César, criação política de Roma. Wagner e os duendes da floresta negra são somente cenário para o sonho de mais um criador do império mundial. Mas isto é outro conto, como diria o inglês.

Cita você André Gide, fala de disciplina clássica como de conduta essencial à criação literária. Está tudo muito certo. Mas Gide fala para literaturas de maturidade, e nós no Brasil, meu caro Escorel, andamos em perigosa adolescência. O que é remédio para quem já deu um Montaigne não será dieta para quem carece de terra, de sol, de substâncias outras que organismos saturados repelem. Estamos nós brasileiros em tempo de muito precisar de viver, à grande. Para o homem que tem rios para atravessar, árvores para derrubar, terras virgens para lavrar, não se vai obrigar a tomar professor de ginástica sueca. A ginástica sueca fica para Gide, que cultiva rosas.

Em todo caso eu lhe diria, caro Escorel, é preciso não temer românticos. Fala o grande Valéry, tão da ordem clássica, que “toul classicisme suppose un romantisme antérieur”. E este mestre chega a estabelecer um quadro onde o romantismo aparece como o espírito pioneiro, a força que desbrava, a energia que conquista. E que, para completar esta obra, viria o clássico como a polícia de costumes, como a lei que impõe cartas de posturas, etc.

Sucede, meu caro Escorel, que nós no Brasil ainda estamos em plena selva. Ainda há muito trabalho para bandeirantes, para desbravadores, para gente dura e rude. Por isto, Escorel, eu ainda prefiro escutar os Sarmiento, os Euclides da Cunha, os Hernández, os Castro Alves. Estes sabem os segredos da mata, os perigos dos bichos, as asperezas da terra. E Gide, com todo o seu gênio de jardineiro, e Maurras, com toda a sua sabedoria da antigüidade, não saberiam nos conduzir na “bandeira”. É tudo quanto lhe diz o seu admirador.”¹

E então, ironias captadas? Se sim, minha tese há de estar certa: o bom leitor entende o bom texto; o mau escritor reclama do leitor. Possível objeção: “mas há gente que não entende mesmo, caspita! Você não sabe do analfabetismo funcional?” Sim, decerto. Mas ninguém que escreva profissionalmente o faz para incapazes de entender. Daí o problema dos moçoilos queixosos ser outro, com licença: falta muito Zé Lins e companhia limitada na cuca.

Portanto, pessoal: treino e aprendizado. C’est fini. Sem caô.


¹ REGO, José Lins do. Dias Idos e Vividos (Antologia). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981. pp. 113–114.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Diálogo com Odeque

Tempo de leitura: 4 minutos

Cesare Pavese escreveu Diálogos com Leucó, um clássico; eu arranho um Diálogo com Odeque, um pastiche. Antes, o dito-cujo: Odeque é O. de C., Olavo de Carvalho. À guisa de preâmbulo, autorizo-me a dialogar com este Odeque de minha criação mental, pois apesar de ter sido seu aluno durante uma década, o mestre propriamente dito não me conhecera em pessoa. Andei ali pela escolinha entre 2006 e 2015, meio às escondidas, num tempo em que o máximo de fascismo que um petista podia conceber encarnava-se na acabrunhada figura do dr. Geraldo Alckmin. Bons tempos.

Pois bem antes de o coisa-ruim Bolsonaro lançar gratuitamente o país num inferno astral, estava eu ali, cândido e oculto, na turma do fundão do olavismo cultural; daí que o professor jamais me conhecesse. Contudo, libertei-me e sobrevivi àquilo, vale dizer. Estou limpo. Entretanto, não estive no fundo da sala por ser um dos alunos arruaceiros, como reza a tradição dos fundões. Os alunos arruaceiros tornaram-se os queridinhos do mestre, soubemos depois, quando aqueles subiram ao palco e tomaram conta do show de 2018 em diante. O resultado está aí.

De minha parte, eu ficava lá acanhado, casmurro; aquele aluninho que até estuda um bocado mas guarda tudo consigo, não se projeta, não se manifesta; um esquisito que entra e vai ficando, inofensivo. Ninguém mexe com ele, ele não mexe com ninguém. Pois assim estive lá, a ouvir, anotar, refletir. Depois, debatia tudo intensamente com meus botões, com pedras e plantas.

Findo o preâmbulo, vamos ao assunto.

Em certa entrevista antiga, Odeque afirma com sarcasmo típico que o Brasil jamais teria um Dostoiévski, que nunca chegaríamos a tanto: o tipo da frase desmoralizante que leva o vira-latismo brasuca ao clímax, dado que não há esporte mais estimulante ao complexado vira-lata brasuca que amassar bem amassado a estima brasileira e condená-la ao fracasso antecipado, à frustração preventiva. Antes garantir a derrota líquida e certa que expor-se a lutas, a esforços ou a vãs competições. Leva o troféu, estrangeiro-qualquer-um, toma logo o que é teu. Gastar tempo com disciplinas e melhorias? Abrace logo o fracasso e seja infeliz, pensa o vira-lata. Dá menos trabalho.

Mas divago. O fato é que, mais uma vez, Odeque teve razão. Certamente ele folgaria em saber disso, por novamente diagnosticar a vida como ela é. Todavia, seu acerto deu-se por outra via, de um jeito que ele não esperava. Chutou torto e acertou sem querer. Claro, naquela entrevista — amarga à época, pois Lula acabava de vencer de novo as eleições — ele quis cumprir seu papel e missão de vida, qual seja, polemizar, espezinhar e ofender o brasileiro e a brasilidade, do qual tinha e ainda tem bronca até a medula, embora sirva-se dela. O intento original saiu pela culatra, porém.

De fato, nunca teremos um Dostoiévski porque já tivemos um Machado. Constatei isso na prática quando, em 2016, vi um mendigo na rua a sorrir e a fazer troça não sei de quê. Ao observar aquela cena singela tive um lampejo. Descobri ali certa substância brasileira, no mendigo que ri. Algo que escapa à lógica. Que pode haver de mais nosso que aquilo?

Evidente que, como na Rússia do Fiódor, não nos faltam humilhados e ofendidos; não obstante, nossos oprimidos guardam no lugar da melancolia uma esperança viva dentro de si. Constantemente os índices de felicidade colocam o Brasil numa posição de destaque, até com certo exagero. É comum repórteres da tevê chegarem a pessoas que tiveram a casinha alagada numa enchente, as quais perderam tudo do pouco que tinham e que, sabemos, ninguém irá ajudá-las, e elas dizerem, esperançosas, “podia ser pior, vamos em frente com fé em Deus”. Dia desses vi uma entrevista assim. Quase submerso, o homem sai de sua casinha alagada com documentos nas mãos e sorri: “consegui salvar o RG”. Um forte.

O caso é que o brasileiro não dá muito ibope a seus infortúnios, nem moral demais a estacas zero. Ele sorri — não por alienação nem irresponsabilidade, muito menos por insanidade. Naquele sorriso mora uma centelha, uma fagulha íntima a apontar que o pior já passou, passa, passará (salve, Nelson Ned). Deus há de ajudar. Ele sempre ajuda.

Daí que a escrita soturna de um Dostoiévski não caberia mesmo no Brasil, Odeque. Nossa natureza é outra. Nosso sofrimento foi sublimado pela ironia machadiana, que foi a forma elegante — do bruxo e a nossa, por extensão — de rir das mazelas todas. Rir e lutar, é claro. Com isso não digo que a melhor literatura daqui seja feita apenas de gargalhada e gozação. Temos drama de sobra na praça. Mas sempre sobra uma forcinha residual, um último fôlego guardado para o instante seguinte, para quando a tempestade acabar — e ela sempre acaba. Então, a fibra toma o lugar do desânimo e o brasileiro sobrevive para contar. Além disso, não descemos a subsolos; não nos entregamos a ridículos; não deixamos que o niilismo more em nós a ponto de matar velhinhas usurárias ou engendrar revoluções que traumatizem nosso destino por décadas. Até nossa violência é uma enorme brincadeira (embora de péssimo gosto, bem entendido). Em tudo somos lúdicos e crédulos.

No fundo, nossa aparente fraqueza é um tipo diferente de força. Porque o Brasil é indomável, veja: tirano algum consegue manter nas mãos nossa índole escorregadia, sem aderência. Aqui está um segredo brasileiro. A inexatidão de nosso temperamento e a imprevisibilidade de nossas reações não permitem a ninguém um domínio perfeito e duradouro do país, como quem segura uma maleta pela alça. Ditadores desorientam-se conosco, cedo ou tarde. Nós sempre os driblamos, feito uns pelés.

A história comprova: quem tentou domar o país perdeu-o pouco depois e sempre de um modo estúpido em vez de sangrento. Mesmo na vigência daquele pretenso domínio, o tiranete da vez bambeia, segura-se para não estatelar no chão mole de nossa complexa indefinição e sofrer um vexame que o faça arrepender-se do golpe inicial. Ele queria nossa melancolia, nossa depressão; porém, consegue nosso humor. Assim enfrentamos os dissabores. Se o hoje é triste, o amanhã será diferente, sobretudo porque o tiranete está excluído de nosso amanhã. Saber disso o perturba desde já. Poder no Brasil é pau-de-sebo: tenta-se o topo, escorrega-se em seguida.

Portanto, sim: não temos um Dostoiévski, Odeque. Você está certo do jeito errado. E por tal ilogicidade provas que, embora a contragosto, também és mui brasileiro. Não que o Brasil faça lá muita questão disso. Fazemos questão de Machado e de Pelé. Quem não vive sem a gente é vossa senhoria.

De resto, é como bem disse outro escritor nosso que também não foi Fiódor: viva o povo brasileiro.

A literatura no
Brasil estomacal

ÀS VEZES me pergunto por que raios alguém ainda se aventuraria com literatura no Brasil. Sim, é uma pergunta clichê: tão clichê que talvez seja a terceira mais freqüente nas FLIPs da vida (as duas outras discorrem sobre política e sexo, imagino). Mas meu ponto é outro.

Literatura é item de primeira necessidade para alguém? Sim e não: para quem consome ou produz literatura, sim, sem dúvida; porém, para o Brasilzão big picture, para a massa, decididamente, não. É algo que nem lhe passa pela cabeça. E por quê?

Porque o Brasil é um país eminentemente estomacal, isto é, tem um povo cujas demandas são sempre básicas e urgentes, por exemplo, comida e moradia. Sempre haverá coisa mais importante do que literatura e, se ampliarmos o leque, do que cultura em geral — embora evite propositalmente o termo cultura, por ser facilmente confundido com diversões populares, com exposições inócuas ou performances nonsense de tipo Sesc (das quais ninguém gosta realmente, exceto quem as faz ou lucra com elas, mormente com subsídios estatais), entre outras banalidades.

Quando afirmo que o Brasil é estomacal, não significa exatamente que o povo esteja faminto, como o termo sugere. Se escrevesse em 1970, talvez. Felizmente, há anos o país não está assim, o que é uma boa notícia. Atualmente, quando favelas reivindicam wi-fi grátis ao invés de cestas básicas, o termo estomacal remete a outra coisa: significa que passamos por tantos períodos de escassez e carência, que nunca conseguimos nos sentir plenamente atendidos nas necessidades primárias, mesmo quando elas já foram razoavelmente supridas. Basta notar que o brasileiro pobre de hoje em dia é cada vez mais obeso e não um “palito” de tanto passar fome. Então, como se aplica o termo estomacal aos brasileiros?

Estomacal não mais designa uma mazela social, mas certo vício: a avidez popular para “devorar” itens de consumo que até num passado recente não lhe era acessível, fez com que seu gosto estacionasse na aquisição de itens de subsistência aliado a certo conforto. Compra-se cada vez mais comida, cada vez mais roupa e incrementa-se esse mesmo consumo, ciclicamente, em quantidades cada vez maiores, por vezes irracionais. Uma vez tendo a pança razoavelmente cheia, o brasileiro médio então parte para a segunda etapa: abrigar o sinal da Rede Globo numa tevê full hd postada à sala, soberanamente, como um troféu. Depois, vem o celular com internet, o tênis colorido com amortecimento e, finalmente, um carro e um canto qualquer onde se possa enfiá-lo. E a literatura…

Note que esses itens de consumo — tevê led, smartphone, carro — são caros, dependem de renda e crédito para se adquirir, mas estão vinculados à “pobreza” brasileira atual — especialmente nas grandes cidades — o que demonstra o quanto o pobre se sofisticou nos últimos anos. Em termos, ao menos. Por outro lado, é curioso (e lamentável) que, uma vez neste novo patamar socioeconômico, praticamente ninguém busque hábitos mais saudáveis e escandalosamente mais baratos, tal como a leitura. Sinal claro disso é o declínio das bancas de jornais e revistas, que entraram em decadência no país, justamente quando a base da pirâmide social mais prosperou, no período 2005-2012. Era de se esperar o extremo oposto: em qualquer país, o índice de leitura cresce conforme a prosperidade da população. Aqui, não. Situação ilógica, esquizofrênica.

Então, deparamo-nos com o problema cultural. Cantei essa bola para mim mesmo por volta de 2007, 2008, no auge do governo Lula. Puxando pela memória: naquele período, falava-se em nova classe média (a tal classe C). A figura emblemática na imprensa de esquerda era “pobres em aeroportos”, “pobres na faculdade” que o governo, nem um pouco demagogo, utilizava como case de sucesso. As concessionárias ofereciam carros financiados em 80 mensalidades, bastando acenar com um contracheque de mil reais para qualquer um tornar-se o feliz proprietário de um zero quilômetro.

Assistia a essa farra que o petismo vendia como revolução social, e observava que os brasileiros compravam, consumiam e engordavam, porém não estudavam, não se aprimoravam, não liam. Não melhoravam por dentro, como pessoa. Lula simbolizava essa “volta por cima dos iletrados”, sendo ele mesmo a antítese do presidente-doutor do mandato anterior, representando o “operário que chegou lá”, orgulhoso de jamais ter lido coisa alguma e símbolo maior do triunfo da ignorância.

Aquilo foi uma festa, um rega-bofe sem hora pra acabar. No meu canto, eu tinha a clara impressão de que aquilo era uma ilusão, só não sabia quando terminaria. Via a felicidade idiota, sem melhoria na mentalidade nacional. Lojas lotadas e livrarias vazias. Sebos e bibliotecas às traças, como sempre. Algo não acabaria bem.

Em 2010, quando Lula conseguiu enfiar a poste Dilma na presidência, foi o começo do fim. Foi desolador. Dilma era um signo, o significado de que íamos sem freio ladeira abaixo. Passados poucos anos, o petismo de Dilma tirou dos pobres com uma mão o que deu com a outra, feito o diabo. E enfim, a festa acabou.

O resto é conhecido: Copa em estádios superfaturados, lava-jato, petrolão, impeachment, crise político-econômica generalizada. Hoje, o Brasil, atônito, olha-se no espelho e vê como é feio. Cai em si. Volta à normal precariedade cotidiana.

Entretanto, este não é um manifesto à desesperança. Fato, o Brasilzão estomacal continua aí, devorando o quanto pode e se aguentando o quanto pode, em meio à crise. Continua inchando, engordando, mais pobre, mais violento, mais burro. As pessoas interessadas em ler ou fazer literatura mal lotam uma Kombi, como aliás sempre foi.

Mas eu insisto, por pura teimosia. Não sei quantos, dos duzentos e poucos milhões de habitantes do território, possam vir a se interessar pela arte literária — nova, antiga, contemporânea ou clássica, não importa. No entanto, sempre haverá aquela fiel meia dúzia.

Tempo houve no qual nem eu mesmo era um deles, e hoje estou aqui. Portanto, quem sabe? Para transformar um país, meia dúzia de pessoas com cabeça e coração aberto para a alta cultura basta. De uma única espiga pode nascer todo um milharal.