ÀS VEZES me pergunto por que raios alguém ainda se aventuraria com literatura no Brasil. Sim, é uma pergunta clichê: tão clichê que talvez seja a terceira mais freqüente nas FLIPs da vida (as duas outras discorrem sobre política e sexo, imagino). Mas meu ponto é outro.
Literatura é item de primeira necessidade para alguém? Sim e não: para quem consome ou produz literatura, sim, sem dúvida; porém, para o Brasilzão big picture, para a massa, decididamente, não. É algo que nem lhe passa pela cabeça. E por quê?
Porque o Brasil é um país eminentemente estomacal, isto é, tem um povo cujas demandas são sempre básicas e urgentes, por exemplo, comida e moradia. Sempre haverá coisa mais importante do que literatura e, se ampliarmos o leque, do que cultura em geral — embora evite propositalmente o termo cultura, por ser facilmente confundido com diversões populares, com exposições inócuas ou performances nonsense de tipo Sesc (das quais ninguém gosta realmente, exceto quem as faz ou lucra com elas, mormente com subsídios estatais), entre outras banalidades.
Quando afirmo que o Brasil é estomacal, não significa exatamente que o povo esteja faminto, como o termo sugere. Se escrevesse em 1970, talvez. Felizmente, há anos o país não está assim, o que é uma boa notícia. Atualmente, quando favelas reivindicam wi-fi grátis ao invés de cestas básicas, o termo estomacal remete a outra coisa: significa que passamos por tantos períodos de escassez e carência, que nunca conseguimos nos sentir plenamente atendidos nas necessidades primárias, mesmo quando elas já foram razoavelmente supridas. Basta notar que o brasileiro pobre de hoje em dia é cada vez mais obeso e não um “palito” de tanto passar fome. Então, como se aplica o termo estomacal aos brasileiros?
Estomacal não mais designa uma mazela social, mas certo vício: a avidez popular para “devorar” itens de consumo que até num passado recente não lhe era acessível, fez com que seu gosto estacionasse na aquisição de itens de subsistência aliado a certo conforto. Compra-se cada vez mais comida, cada vez mais roupa e incrementa-se esse mesmo consumo, ciclicamente, em quantidades cada vez maiores, por vezes irracionais. Uma vez tendo a pança razoavelmente cheia, o brasileiro médio então parte para a segunda etapa: abrigar o sinal da Rede Globo numa tevê full hd postada à sala, soberanamente, como um troféu. Depois, vem o celular com internet, o tênis colorido com amortecimento e, finalmente, um carro e um canto qualquer onde se possa enfiá-lo. E a literatura…
Note que esses itens de consumo — tevê led, smartphone, carro — são caros, dependem de renda e crédito para se adquirir, mas estão vinculados à “pobreza” brasileira atual — especialmente nas grandes cidades — o que demonstra o quanto o pobre se sofisticou nos últimos anos. Em termos, ao menos. Por outro lado, é curioso (e lamentável) que, uma vez neste novo patamar socioeconômico, praticamente ninguém busque hábitos mais saudáveis e escandalosamente mais baratos, tal como a leitura. Sinal claro disso é o declínio das bancas de jornais e revistas, que entraram em decadência no país, justamente quando a base da pirâmide social mais prosperou, no período 2005-2012. Era de se esperar o extremo oposto: em qualquer país, o índice de leitura cresce conforme a prosperidade da população. Aqui, não. Situação ilógica, esquizofrênica.
Então, deparamo-nos com o problema cultural. Cantei essa bola para mim mesmo por volta de 2007, 2008, no auge do governo Lula. Puxando pela memória: naquele período, falava-se em nova classe média (a tal classe C). A figura emblemática na imprensa de esquerda era “pobres em aeroportos”, “pobres na faculdade” que o governo, nem um pouco demagogo, utilizava como case de sucesso. As concessionárias ofereciam carros financiados em 80 mensalidades, bastando acenar com um contracheque de mil reais para qualquer um tornar-se o feliz proprietário de um zero quilômetro.
Assistia a essa farra que o petismo vendia como revolução social, e observava que os brasileiros compravam, consumiam e engordavam, porém não estudavam, não se aprimoravam, não liam. Não melhoravam por dentro, como pessoa. Lula simbolizava essa “volta por cima dos iletrados”, sendo ele mesmo a antítese do presidente-doutor do mandato anterior, representando o “operário que chegou lá”, orgulhoso de jamais ter lido coisa alguma e símbolo maior do triunfo da ignorância.
Aquilo foi uma festa, um rega-bofe sem hora pra acabar. No meu canto, eu tinha a clara impressão de que aquilo era uma ilusão, só não sabia quando terminaria. Via a felicidade idiota, sem melhoria na mentalidade nacional. Lojas lotadas e livrarias vazias. Sebos e bibliotecas às traças, como sempre. Algo não acabaria bem.
Em 2010, quando Lula conseguiu enfiar a poste Dilma na presidência, foi o começo do fim. Foi desolador. Dilma era um signo, o significado de que íamos sem freio ladeira abaixo. Passados poucos anos, o petismo de Dilma tirou dos pobres com uma mão o que deu com a outra, feito o diabo. E enfim, a festa acabou.
O resto é conhecido: Copa em estádios superfaturados, lava-jato, petrolão, impeachment, crise político-econômica generalizada. Hoje, o Brasil, atônito, olha-se no espelho e vê como é feio. Cai em si. Volta à normal precariedade cotidiana.
Entretanto, este não é um manifesto à desesperança. Fato, o Brasilzão estomacal continua aí, devorando o quanto pode e se aguentando o quanto pode, em meio à crise. Continua inchando, engordando, mais pobre, mais violento, mais burro. As pessoas interessadas em ler ou fazer literatura mal lotam uma Kombi, como aliás sempre foi.
Mas eu insisto, por pura teimosia. Não sei quantos, dos duzentos e poucos milhões de habitantes do território, possam vir a se interessar pela arte literária — nova, antiga, contemporânea ou clássica, não importa. No entanto, sempre haverá aquela fiel meia dúzia.
Tempo houve no qual nem eu mesmo era um deles, e hoje estou aqui. Portanto, quem sabe? Para transformar um país, meia dúzia de pessoas com cabeça e coração aberto para a alta cultura basta. De uma única espiga pode nascer todo um milharal.